Alvor-Silves

segunda-feira, 28 de julho de 2014

Cem anos

As razões para a 1ª Grande Guerra são normalmente ligadas ao assassinato do herdeiro do trono Austro-Húngaro, Franz Ferdinand(*) por um nacionalista sérvio, mas a guerra que se iria travar entre a Sérvia e a Áustria, em 28 de Julho de 1914, dificilmente teria consequências globais apenas por isso. 
Uns dias depois a Rússia, aliada Sérvia, declara guerra, a que responde a Alemanha, e em menos de uma semana, estão envolvidas a França e a Inglaterra, por alianças declaradas.

Encontrar uma causa ou dizer que se trata de uma soma de vários factores, é só parcialmente informativo.

A ideia de uma causa estruturada, e que basicamente se resume à disputa de hegemonia entre Alemanha e Inglaterra, é mal vista, e até nalguns casos, alargando-se o seu âmbito, passa por "teoria da conspiração". Prefere-se assim algo mais politicamente correcto - distribuir culpas por diversas causas, respeitando as razões dos vencedores fora de um plano hegemónico global de longa data e extensão até ao presente. 
No entanto, convém lembrar o nexo estabelecido por Engdahl em "A Century of War", que neste ponto aponta para o abastecimento petrolífero alemão, pela via férrea Berlim-Istambul-Bagdade.
A via começou a ser construída em 1903, e em 1904 a França e a Inglaterra estabeleciam a Cordiale Entente, como oposição ao crescimento alemão.

Assim, se podemos ver a crise começar na vontade independentista da Sérvia face à Áustria, com a chamada "Guerra dos Porcos"... um problema de tentativa de independência económica sérvia, apoiada pelos franceses (1906-08), a crise dos Balcãs seria apenas um dos vários pontos de tensão, tal como o foram as crises marroquinas, pelo apoio alemão à independência de Marrocos face à França.

Desde a vitória de Waterloo, em 1815, a França abdicara de combater a única potência de cariz global - a Inglaterra... mas da reunificação alemã-prussiana surgira outro pretendente a essa hegemonia mundial - a Alemanha de Bismarck, que infligira em 1870 uma pesada derrota à França.

A 1ª Guerra seria o conflito europeu global que sucedia quase 100 anos após o término do outro - levado por Napoleão. A diferença de posições é que a Alemanha que se substituía à França. Do outro lado, estavam ainda a Rússia e a Inglaterra, como aliadas... situação que se vai repetir na 2ª Guerra.

Portanto, o poderio inglês foi desafiado primeiro pela França de Napoleão, e cem anos depois pela Alemanha, em duas guerras mundiais. Ora, desde a Guerra dos Cem Anos que a França era rival de eleição da Inglaterra, e só perdeu esse estatuto com a derrota napoleónica, entrando-se num período de paz relativa, cimentada por vários tratados de partilha das colónias.

No entanto, este equilíbrio do Séc. XIX parecia algo instável, e foi desafiado no Séc. XX, com o renascer de movimentos nacionalistas. O nacionalismo foi sempre visto como a maior ameaça ao imperalismo. O imperialismo é uma conformação à pax imperial, e o nacionalismo é visto como motivação imediata para disputas territoriais, e um constante confronto das nações.
Porém, ou a pax imperial satisfaz as nações, ou estas irão gerar movimentos que a questionarão.

A 1ª Guerra Mundial é ainda a primeira guerra tecnológica, e isso é importante.
Ou seja, de alguma forma poderia ser questionado se um domínio maior da técnica criaria uma vantagem tal que esmagasse os adversários rapidamente. Antes as guerras viviam mais de estratégia com armas algo convencionais. 
É na 1ª Guerra Mundial que passam à acção todo o tipo de invenções:
- submarinos, aviões, tanques, guerra química, etc...
Curiosamente, se um lado aparecia com uma invenção, ela nunca era suficientemente decisiva, e o opositor tinha tempo de desenvolver algo semelhante, ou mais eficaz.

O tempo de interlúdio dos anos 1930 foi algo diferente, porque o secretismo nazi permitiu sofisticar o armamento, e aparecer logo em vantagem na Blitzkrieg da 2ª Guerra Mundial.

Assim, a 1ª Guerra Mundial é caracterizada por um estranho equilíbrio, que se saldava num número incontável de mortes, numa frente de batalha que mal mexia. O equilíbrio é tal que os EUA só entram na Guerra em Abril de 1917 para compensar a saída da Rússia em Março de 1917. Uma entrada antecipada dos EUA teria decidido o evento mais rapidamente, quando o afundamento do Lusitania em 1915 teria servido o pretexto, na morte de civis americanos.
Lusitania - afundado por um submarino alemão em 1915

Curiosamente, o Lusitania será ainda usado como pretexto de entrada em guerra pelos EUA, mas com dois anos de atraso...

No uso da guerra química, podemos ver uma característica típica dos beligerantes.
Havia tratados que impediam o uso de armas químicas, na forma de projéctil. A Alemanha para não ser acusada de quebrar o acordo, decide mesmo assim libertar químicos, mas aproveitando os ventos... 
A certa altura, quebrada a restrição dos químicos, já se enviavam mesmo os projécteis.
A atitude é muito diferente, porque no lado anglo-saxónico deu-se valor ao espírito da lei, enquanto o lado alemão foi-se à sua letra... isto é recorrente, em várias circunstâncias.

Interessa talvez mais notar que o grande resultado da 1ª Guerra Mundial foi ver que a tecnologia não seria exclusivo de uma parte, e não iria alterar tão dramaticamente o resultado do confronto.
Agora, é claro que após as duas Guerras Mundiais, a paz obtida foi ainda assim intermitente, mantêm-se questões insanáveis, prontas a servir de desculpa para novas aventuras. De um lado, porque não se quer ficar inferior, do outro lado porque não se quer perder a superioridade... e esse medo é o principal rastilho para criar razões de "ataques preventivos".

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(*)... que curiosamente, é também nome de banda.

sexta-feira, 25 de julho de 2014

Raio ou Corisco

Quando D. João II protesta ao Reis de Espanha, sobre a viagem de Colombo, diz que tais descobertas pertenciam aos seus "domínios da Guiné" e logo prepara Francisco de Almeida uma armada para ir às Caraíbas esclarecer o assunto... 
Podemos ver que a noção da palavra "Guiné" foi evoluindo, passando a circunscrever-se à zona do Golfo da Guiné (que provavelmente seria nome primeiro do Golfo do México, por analogia às paragens caribenhas a que D. João II se referia). 
Finalmente hoje há apenas três países que partilham o nome Guiné acrescido dos sufixos Bissau, Conacri, e Equatorial.

Não vou falar aqui da polémica política actual sobre a Guiné Equatorial e a CPLP.

No entanto, é interessante a informação que surgiu recentemente (desde 2006, altura em que a Guiné Equatorial pediu a adesão): 
- D. João II teria usado em 1493 o título de "Primeiro Senhor de Corisco".
Não encontro outra referência, a não ser a divulgação na internet, começada provavelmente na Wikipedia. Por isso, não sei se tal informação é verdadeira ou não... apesar de ter aspecto de ser.

Corisco é suposto aqui referir-se a uma das ilhas da Guiné Equatorial, próxima de São Tomé, e parece tão pouco importante, que seria improvável D. João II lhe querer dar destaque especial, face às múltiplas posses que acumulava. Assim, se Guiné tinha um sentido lato, Corisco é natural que se referisse a algo diferente da pequena ilha... por muito importante que viesse a ser aí o negócio de escravos feitos nas "razias" dos Bengas, e depois propósito de comércio da Companhia da Ilha do Corisco, fundada após a Restauração em 1648.

Por outro lado, "corisco" é uma designação alternativa para "raio, relâmpago", e se alguém se poderia designar como "Senhor do Corisco" era Zeus, pela sua capacidade divina.
Assim, é compreensível que tanto se queira reduzir o assunto à pequena ilha, descoberta por Fernando Pó, algumas décadas antes, como se poderá pensar que o título que D. João II usava poderia referir-se a maior ostentação... provavelmente de poder de fogo semelhante aos coriscos. 
É até natural que a ilha não tivesse esse nome, e por necessidade de associar o título a uma paragem, na habitual política de ilusionismo, optou-se por designar uma ilha pelo Corisco de D. João II... tal como a ilha do Princípe lhe está associada.

Por outro lado, será bom não esquecer que o Carro dos Deuses, já aqui mencionado a propósito do Alinhamento Piramidal, alinha-se com aquelas ilhas de Ano Bom, Fernando Pó, S. Tomé, etc.
Ora esse Carro de Deuses, mencionado na antiguidade, e associado ao vulcânico Monte dos Camarões, é também uma referência apropriada para Corisco. 
E, se interessam as coincidências nos Camarões, o símbolo do Camaroeiro foi usado por D. Leonor e D. João II, pois o Príncipe seu filho, Afonso, acabou envolto num camaroeiro, ao ser retirado morto da margem do rio Tejo, em Santarém.

Este Carrilhão dos Deuses dos Camarões, tem à sua frente o Golfo dos Mafras.
A opção de usar Carrilhão em vez de Carro é minha, mas Mafras e não Biafras é assim explicado:
Bight of Biafra será em todo este trabalho substituído por golfo dos Mafras. Fizemos um exame bastante rigoroso a tal respeito, e tivemos occasião de ler : golfo de Biafára, golfo de Biafra ou golfo de Biaffra, golfo dos Mafras, das Mafras ou Maffras. 
Que discordâncias ! 
A porção de mar que fica entre o cabo Lopo Gonçalves e o cabo Formoso deve chamar-se golfo dos Mafras. 
A porção de mar que fica entre o cabo Formoso e o cabo de S. Paulo tem o nome de golfo de Benim. 
Tal texto é de Manuel Ferreira Ribeiro, num Relatório de Serviço de Saúde Pública de S. Tomé e Príncipe de 1869, onde justifica a opção porque 
        "O distincto escriptor Alexandre de Castilho formou uma longa lista de nomes portuguezes que os estrangeiros alteraram ou substituíram por outros"

Aquela área da Guiné Equatorial esteve sob administração portuguesa, mas por via das sucessivas derrotas do Marquês de Pombal face aos espanhóis, quer na fronteira portuguesa, quer na fronteira brasileira, acabou por ser cedida ao reino de Espanha, tal como o Uruguai, no Tratado de St. Ildefonso de 1778, por troca com a ilha brasileira de St. Catarina. Assim, não deixa de ser curioso que a parte do Golfo dos Mafras seja perdida por via da política desastrosa do Marquês, quando tanto se pretende remeter as suas falhas para D. João V.

Do tempo da dúvida entre raio ou corisco, relativamente à designação de D. João II, vamos passando sucessivamente a tempos de "raios e coriscos", recentemente alimentados a petróleo, para uma combustão rápida.

Informação Adicional:
A designação "Primeiro Senhor do Corisco" tem a seguinte origem interessante do que pude apurar:

2002 (Fevereiro): Num artigo sobre a Ilha do Corisco, Fernando Garcia Gimeno, escreve a certa altura:
Fué don Juan II de Portugal "Señor de Guinea" , el primer Señor de Corisco, 
>por el año 1493, y el primer español Don Felipe II, que recibió informes de 

... ou seja, apenas diz que D. João II, Senhor da Guiné, foi o primeiro senhor de Corisco, assim como diz que foi depois Filipe II. Não diz que usa o título, apenas diz que tomou posse.

2005 (Março): Numa página aparentemente semi-oficial da Guiné Equatorial surge então algo diferente:
Hacia 1493, don Juan II de Portugal se proclamó 
como Señor de Guinea y el primer Señor de Corisco.
Certamente com origem no texto anterior, é dito agora que D. João II se proclamou Senhor de Corisco, o que altera bastante o significado anterior.

2006 (Abril): Na Wikipedia espanhola aparece esta mesma referência, que depois vai passar na tradução para a Wikipedia portuguesa.... e está feito o caminho de uns se repetirem aos outros.
Neste momento há até livros que já escrevem isso como factual, e quase sempre da mesma forma, respeitando algo do original (a data 1493, Senhor da Guiné, Senhor do Corisco).

Quando se chega a este ponto, de um facto surge um erro de interpretação e daí pode surgir toda uma lenda justificativa.

Uma boa parte da informação é habitualmente papagueada sem cuidado de confirmação.
E o problema é muito velho... quem conta um conto acrescenta um ponto!

Esta sequência que verifiquei não impede ainda assim que D. João II possa ter usado tal título, mas fica muito mais difícil de acreditar dado o registo histórico da internet guardado pelo Google.

segunda-feira, 7 de julho de 2014

As estórias e a História dos vencedores

É habitual ver escrita uma frase batida, atribuída a Orwell:

A citação completa é esta, foi escrita no final da 2ª Guerra, e vale a pena ser lida na íntegra...
During part of 1941 and 1942, when the Luftwaffe was busy in Russia, the German radio regaled its home audience with stories of devastating air raids on London.  Now, we are aware that those raids did not happen.  But what use would our knowledge be if the Germans conquered Britain?  For the purpose of a future historian, did those raids happen, or didn't they?  The answer is:  If Hitler survives, they happened, and if he falls they didn't happen.  So with innumerable other events of the past ten or twenty years.  Is the Protocols of the Elders of Zion a genuine document?  Did Trotsky plot with the Nazis? How many German aeroplanes were shot down in the Battle of Britain?  Does Europe welcome the New Order?  In no case do you get one answer which is universally accepted because it is true: in each case you get a number of totally incompatible answers, one of which is finally adopted as the result of a physical struggle.  History is written by the winners. (...)
The really frightening thing about totalitarianism is not that it commits 'atrocities' but that it attacks the concept of objective truth; it claims to control the past as well as the future. 

Avanço dos tanques alemães para recuperar na batalha de Kursk, em Junho de 1943. 
A partir desta derrota, a Alemanha não pararia o avanço russo na frente oriental.  

Como citação é curiosa a sua atribuição a George Orwell, não havendo dúvida que a tenha escrito em 1944, numa altura em que os Aliados já se estariam a preparar para a sua história, com as vitórias decisivas do exército soviético, primeiro um ano antes, em Fevereiro de 1943, em Stalinegrado, e depois em Julho ao deter nova tentativa em Kursk.

Seria daquelas frases que se diria atribuída a algum pensador da antiguidade, a Cícero, a Sun Tzu, enfim... ninguém esperaria termos que esperar até ao Séc. XX para ver isto escrito. Temos um registo proverbial 
"dos fracos não reza a história" (ver p.ex. Brava Dança dos Heróis)
.. mas não é exactamente o mesmo.

Bom, isto vem a propósito de um comentário da Amélia Saavedra, a que respondi muito laconicamente com o outro lado: "a História será escrita pelos vencedores".

Ou seja, é claro que os vencedores ocasionais vão escrevendo "estórias"... a seu belo prazer, consoante os equilíbrios e os tratados que vincularam vencedores e vencidos. 
No entanto, há outro ponto... a verdadeira História essa só poderá ser contada pelos vencedores finais.
Os vencedores ocasionais precisam da ilusão, porque é necessária ao seu poder.

Assim, uma boa medida para ver a fragilidade de um poder é ver até que ponto ele se baseia nas mentiras e contradições mais disparatadas. A menos que consideremos que é natural uma sociedade humana permanecer indefinidamente envolta em ilusionismos, ou seja, algo dopada com artes circenses, ou senão, haverá sempre um ponto de ruptura em que essas mentiras têm que cair.

O único fiel desta balança é averiguar da consistência do discurso. Se é um discurso que procura ser honesto e verdadeiro, ou se é um manta de retalhos, mal justificada, onde as contradições podem existir porque houve tratados de paz que assim o impuseram... apenas porque os vencedores preferiam uma estória à História.
Enquanto verificarmos que os vencedores actuais insistem em manter-se no caminho das "estórias", então é porque estes não parecem ser os vencedores que vão escrever a História.
Porque, vencedores há muitos, mas História sem contradições, só haverá uma.

sexta-feira, 4 de julho de 2014

In hoc signo vincis

Em 1546, dá-se o Segundo Cerco de Diu, quando era vice-rei D. João de Castro, e estava como governador da cidade, João de Mascarenhas. 
Jerónimo Corte Real, contemporâneo de Camões, vai escrever um épico a propósito deste cerco, assim como também irá decorar o texto com gravuras suas.
In hoc signo vinces  (por este sinal vencemos) 
Sucesso do 2º Cerco de Diu, 

Um dos factos mais interessantes deste cerco foi o papel guerreiro de um batalhão de mulheres, lideradas por Isabel Madeira. No Séc. XIX, encontrámos uma breve descrição do seu papel:
 Por este motivo se formou uma grande Companhia de Mulheres, para que unido um e outro esforço, masculino e feminino, pudesse mais fortemente resistir à fúria dos inimigos. Entre aquelas ficaram em memória os nomes de Grácia Rodrigues, Isabel Dias, Catharina Lopes, e Isabel Fernandes, governando a todas como Capitão Isabel Madeira. Estas, de tal sorte se houveram neste memorável cerco, que não só acudiam aos reparos dos muros e baluartes, senão que, ajudando aos mesmos Soldados, a elas se deveu o não ser rendida aquela Fortaleza. 
No referido cerco de Diu, deu uma mui distinta prova do seu valor Catharina Lopes. Foi o caso, que querendo ela rechaçar o orgulho de um combatente inimigo, que se tinha avançado aos muros, caiu deles abaixo juntamente com o Soldado. Quis este fartar a sua ira, empregando todas as suas forças para suprimir as da valorosa Matrona. Esta porém, depondo a fraqueza natural, se revestiu de um tão varonil espírito, que vindo com ele à luta, o derrubou em terra, e não tendo arma alguma com que o ferir, se valeu das que o próprio furor lhe ministrava (porque como lá disse um Poeta: Furor arma ministrat. Virgil.) E assim metendo-lhe os dedos nos olhos, lhos arrancou; e depois socorrida dos seus escapou à raiva dos inimigos, que já com mão alçada corriam a vingar o insulto cometido.   "Heroínas Portuguesas". O Recreio (jornal das famílias) nº8, 1842. 
Voltando ao texto épico de Jerónimo Corte Real, o assunto é colocado de forma algo simples...
Diu era uma fortaleza com pouco mais que um milhar de habitantes, e segundo as suas contas, a totalidade dos portugueses na Índia seria pouco superior a 5 milhares de indivíduos.

Frontispício do Sucesso do Segundo Cerco de Diu

Portanto, estas fortalezas em solo alheio, eram vistas como uma afronta aos poderes locais, desde os antigos marajás, xás, ou os cãs mógois. Acrescia a isso a presença de europeus doutras nações, colocados no conselho dos regentes locais. 

Neste caso, entra um renegado italiano, chamado Coge Çofar (ou Coge Sofar, Cogeçofar)... que teve direito a nome num prato de lulas (a gastronomia portuguesa guarda muita memória). A questão basicamente começa com a tentativa do Sultão de Gujarate, Mamude, de vingar a memória do avô, Bahadur, derrotado e morto em Diu. 
Diu tinha sido cedida pelo próprio Bahadur, dada a ajuda militar fornecida pelo vice-rei, Nuno da Cunha (filho de Tristão da Cunha), em 1535, pela ajuda em batalha contra o imperador Mogul de Deli.
Só que Bahadur arrependeu-se da oferta, e quis recuperar Diu... foi nessa tentativa que foi morto, e sucedeu-lhe o neto. Em 1538 Coge Çofar, senhor em Cambaia, tinha já convocado os turcos de Solimão Pachá (Suleiman Pasha) para um primeiro cerco, repelido por António Silveira.

Logo na altura do primeiro cerco de Diu, uma mulher tinha merecido destaque, da mesma revista:
Barbara Fernandes ostentou no cerco de Diu o maior valor, pois recebendo em seus braços a um filho morto, nem uma só lágrima derramou, mostrando a mesma, ou maior constância com a noticia da morte de outro, que também morrera no conflito. E enterrando a ambos, disse para os circunstantes: Não resta mais que morrer a mãe; e dito isto tomou armas, e com elas foi ajudar os combatentes, militando com tal distinção, que, a seu exemplo, os mesmos covardes obravam proezas singularíssimas. Vendo a necessidade que havia de Soldados, formou um luzido esquadrão de mulheres, com as quais fez acções tão ilustres, que nelas poucos a imitaram, nenhum a excedeu.
Sobre o primeiro cerco de Diu, defendido por António Silveira, há um livro

Em 1546, volta a ser Coge Çofar, com o sultão Mamude, o neto de Bahadur, que vai convocar diversas nações locais para o segundo cerco de Diu.

Para além de um extenso texto em verso heróico, Jerónimo Corte Real acrescenta 8 interessantes desenhos, que quase são uma primitiva tentativa ilustrativa do texto, conforme podemos ver de seguida:

terça-feira, 1 de julho de 2014

Monarchia Lusitana de Bernardo Brito (1)

No campo do que é hoje chamado "História Alternativa", Bernardo de Brito, monge cisterciense escreveu em 1597, o primeiro volume da "Monarchia Lusitana" dedicada a Filipe II de Espanha, então rei de Portugal. 
Pelo teor algo fantasioso, a obra foi sofrendo várias críticas externas, principalmente francesas, até à sua exclusão completa de consideração ou até menção após o Séc. XIX, com Alexandre Herculano.

De qualquer forma, desde 1597 até 1750, poderia considerar-se a obra de referência, a "História Oficial" de Portugal.

Figura inscrita na capa da Monarchia Lusitana (1597)

Bernardo de Brito tem o cuidado de justificar a maioria das suas afirmações, remetendo para autores da Antiguidade. Por isso, a obra é sustentada, e tem esse valor. Por outro lado, há todo um misticismo religioso associado a registos históricos, que foi sendo alvo de crítica severa com a ascensão Iluminista. 
O domínio ibérico nos descobrimentos levou a uma procura pouco objectiva de registos. Foi pretendido uma elevação da história ibérica a níveis míticos, especialmente nos tempos filipinos, e surgiram assim versões iberocêntricas, que davam um relevo maior ao papel da Hispania na história mundial.

Com a expulsão pombalina dos jesuítas, era já quase insustentável manter tal História de Portugal, enredada em registos fabulosos. Passaram a vigorar versões afrancesadas, em que os autores, em contraponto, basicamente reduziam a história nacional a pouco mais que zero.
Tal situação agravou-se no liberalismo com a dissolução das ordens monásticas.
Para evitar uma total secundarização da história nacional, Alexandre Herculano tomou uma decisão que seria muito aplaudida - tomou a seu cargo expurgar todo o conteúdo místico anterior, e começar a história portuguesa com o nascimento de Afonso Henriques. 
A história anterior, escrita por estes monges fervorosos, seria remetida ao esquecimento - nem sequer lhe era dado o estatuto de lenda. Seriam apenas mentiras... e como mentiras, seriam apagadas.

Ora, essa decisão de Alexandre Herculano pode ser compreendida pela necessidade à época de trazer objectividade ao registo histórico, mas foi uma completa lapidação da própria história.
Porquê?
Porque não há forma de apagar uma história que fez história durante pelo menos 150 anos, e por outro lado, esqueceu que o esforço dos monges ia beber a historiadores clássicos, que para outros registos eram ainda usados e considerados credíveis.
Assim, a censura do absurdo foi também ela absurda... pela simples vontade de "não contaminar os espíritos das gentes".
Por mais que uma vez se tem visto que é pior a emenda que o soneto... e o registo de Bernardo de Brito foi história oficial, tal como o passou a ser o registo de Alexandre Herculano.
Ocultar uns, para dar relevo a outros, é mera censura simplista. 
O que se deve fazer é mostrar as versões, e criticá-las à luz da razão.
Se têm falhas, então elas devem ser tornadas evidentes - quais são e por que razão são erradas.

Se o registo de Bernardo de Brito me parece algo fantasioso, podendo ir beber a fontes de mentiras, também noutros pontos pode mostrar que ainda hoje permanecem muitas fontes de mentiras, convenientes aos vendedores das ilusões dos tempos modernos.

Segue o índice dos primeiros capítulos da Monarchia Lusitana, cujos títulos são de alguma forma auto-explicativos.

Primeiro Livro
  • Cap. 1: Da criação do mundo e do que nele sucedeu até à morte do nosso primeiro pai Adão.
  • Cap. 2: Do nascimento do patriarca Noé e do dilúvio geral, com as mais coisas que houve no mundo até à divisão das gentes.
  • Cap. 3: De como as gentes de dividiram por várias partes do mundo e como Tubal, neto de Noé, veio povoar nosso Reino de Lusitania, e fundou nele a povoação de Setúbal.
  • Cap. 4: De Ibero, filho de Tubal, e do tempo que reinou em Lusitania, e nas mais partes de Espanha.
  • Cap. 5: Do reino de Jubalda em Espanha e do que se fez neste tempo em Lusitania.
  • Cap. 6: Do rei Brigo, Senhor de Espanha, e do particular amor que teve aos Lusitanos.
  • Cap. 7: De Tago, quinto rei de Espanha, e do que em seu tempo fizeram nossos Lusitanos.
  • Cap. 8: Do rei Beto, sexto rei de Espanha, e do que sucedeu em seu tempo em Lusitania.
  • Cap. 9: De como o tirano Gerião se apoderou do Reino de Espanha, e do que em Lusitania sucedeu até à sua morte.
  • Cap. 10: De como os filhos de Gerião reinaram em Espanha, e da vinda de Hércules Líbico contra eles, e como o mais que se passou até sua morte.
  • Cap. 11: De Hispalo e Hispano, reis de Espanha, e do que sucedeu no tempo de seu reinado em Espanha.
  • Cap. 12: Do tempo em que Hércules reinou em Espanha, e dos favores que sempre fez aos Lusitanos.
  • Cap. 13: Do tempo em que na Espanha reinaram Hespero e Atlante Italo, das guerras que entre si tiveram, e da fundação de Roma, feita por gente Lusitana.
  • Cap. 14: Do tempo em que reinaram em Lusitania Sic Oro (Sicoro), filho de Atlante Italo, e seu neto Sic Ano (Sicrano), com algumas coisas particulares, que em seu tempo sucederam.
  • Cap. 15: Do reino de Sic Celeo (Siceleu) e de Luso em Espanha, e de como esta parte Ocidental se começou a chamar Lusitania, como muitas outras particularidades acerca desta matéria.
  • Cap. 16: De como Sic Ulo (Siculo) começou a governar o reino de Lusitania, e das coisas que lhe sucederam, durando seu Império, dentro e fora de Espanha.
  • Cap. 17: Do que sucedeu em Lusitania, reinando Testa nas outras partes de Espanha, com a relação de certa gente estrangeira, que passou nestas partes.
  • Cap. 18: Do que sucedeu em Lusitania, reinando em Andaluzia um rei chamado Romo, e da vinda de Baco à Espanha, com outras particularidades a este propósito.
  • Cap. 19: De Licínio, capitão dos Lusitanos, e das batalhas que teve com Palato, rei da Andaluzia, até que Hércules Grego chegou a Espanha, com favor do qual Licínio ficou vencido, e Palato seguro em seu reino.
  • Cap. 20: Do rei Eritreu, senhor de Espanha, do que em seu tempo fez a gente Lusitana com alguma opiniões acerca da Ilha Erytreia.
  • Cap. 21: De Gorgoris, rei de Lusitania, do que em seu tempo sucedeu neste reino, com algumas coisas particulares, que os autores referem deste tempo.
  • Cap. 22: Da vinda de Ulisses a Portugal, e da fundação da famosa cidade de Lisboa, feita por este capitão, com algumas coisas a este propósito.
  • Cap. 23: Como Abidis começou de reinar em Lusitania, e nas mais partes de Espanha, e das coisas que sucederam em seu reinado.
  • Cap. 24: De certa esterilidade que os autores contam, que aconteceu em Espanha neste tempo, e da verdadeira e menos duvidosa opinião que há nesta matéria.
  • Cap. 25: De várias coisas, que sucederam em Lusitania, depois desta esterilidadade acabada, principalmente da vinda de Homero a estas partes, e dos Franceses Celtas, que povoaram muita parte do nosso reino.
  • Cap. 26: Da vinda de muitas nações estrangeiras a Espanha, e das terras, que em Portugal se povoaram com a vinda delas e dos Franceses Celtas.
  • Cap. 27: Das guerras e descontos, que a gente de Andaluzia teve com os Fenícios, que viviam em Cadiz, e como os Lusitanos foram em socorro dos Espanhois.
  • Cap. 28: Das guerras que houve em Lusitania, entre os Celtas e Turdulos, e da vinda a Espanha de Nabucodonosor.
  • Cap. 29: De como a gente Portuguesa, que foi em socorro de Cadiz, tomou as armas contra os Fenícios, por lhes negarem o soldo.
  • Cap. 30: De como os Turdulos, que viviam na costa marítima de Portugal, se estenderam pelo sertão contra o nascente, e da origem dos povos Transcudanos.
Cronologia da Monarchia Lusitana, por Bernardo de Brito
  • 3962 a.C. - Criação
  • 2306 a.C. - Diluvio
  • 2161 a.C. - Tubal - 2009 a.C. 
  • 2009 a.C. - Ibero - 1970 a.C. 
  • 1970 a.C. - Jubalda - 1906 a.C. 
  • 1906 a.C. - Brigo - 1855 a.C. 
  • 1855 a.C. - Tago - 1825 a.C. 
  • 1825 a.C. - Beto - 1795 a.C. 
  • 1794 a.C. - Gerião - 1760 a.C. - Jupiter Osíris
  • 1760 a.C. - 3 Lomínios - 1718 a.C. - Hercules Lybico
  • 1718 a.C. - Hispalo, Hispano - 1669 a.C.
  • 1669 a.C. - Hercules Lybico - 1628 a.C.
  • 1628 a.C. - Sic Oro - 1584 a.C.
  • 1584 a.C. - Sic Ano - 1553 a.C.
  • 1553 a.C. - Sic Celeo - 1509 a.C.
  • 1509 a.C. - Luso - 1476 a.C.
  • 1475 a.C. - Sic Ulo - 1415 a.C.
  • (1415 a.C. - Testa - 1344 a.C. - Romo - 1311 a.C.)
  • 1332 a.C. - Baco, Lísias - 1309 a.C.
  • 1309 a.C. - Licínio vs. Palatuo - 1239 a.C. - Hercules Grego
  • 1239 a.C. - Eritreio - 1179 a.C.
  • 1156 a.C. - Gorgoris - 1079 a.C.
  • 1079 a.C. - Abidis
  • - - fuga pela seca e esterilidade na Hispania - -
  • 999 a.C. - entrada dos Celtas franceses no Alentejo
  • 932 a.C. - gregos de Rodes em Roda (Andaluzia)
  • 923 a.C. - grande incêndio dos Pirinéus
  • 752 a.C. - exploração dos Fenícios das minas de ouro e prata
  • 604 a.C. - nova chegada de gregos
  • 589 a.C. - vinda de Nabucodonosor a Espanha
Que crédito dar à Monarchia Lusitana?
Em 1493, Annio de Viterbo disse ter encontrado em Viterbo manuscritos que se julgavam perdidos, nomeadamente um registo do caldeu Beroso, que explicaria grande parte da história que faltava.
As suspeitas sobre a autenticidade dos registos de Viterbo começaram a ser questionadas nas décadas seguintes, e o próprio Bernardo de Brito em várias passagens lhe retira algum crédito, mas não o deixa de mencionar. Mas, só quase um século mais tarde é que Scaliger declara a completa falsificação da obra de Viterbo.
Entretanto, já ilustres académicos tinham compilado as suas histórias com os dados de Viterbo, nomeadamente o espanhol Floriano de Ocampo ou João Vaseo. Aparentemente a receita de Viterbo agradava em vários aspectos... a toponímia - nomes de rios, cidades, terras, ligava-se directamente a antigos reis. Não só, fazia-se uma ligação entre várias lendas, antes desconexas. Por exemplo, Jupiter e Osiris seriam o mesmo personagem, Hercules e Horus também, etc...

Mostrando-se falso esse registo, a obra de Bernardo de Brito ficaria como uma ficção desprovida de sentido, poderia ser apenas uma ficção literária... só que Bernardo de Brito vai mais longe.
Descobre, nos arquivos do Mosteiro de Alcobaça, uma crónica de Laimundo Ortega, monge do Séc. X.
É essa crónica que Bernardo de Brito vai seguir principalmente... e nalguns aspectos pareceria coincidir com o tal registo falso de Beroso.
O que acontece de seguida? 
- Já no Séc. XVIII é questionado que essa obra de Laimundo seja autêntica, e portanto, mais uma vez, perante novas acusações de falsificação, a Monarchia Lusitana sofre novo ataque.

Parece-me bastante provável que, quer Viterbo, quer Bernardo de Brito, tenham encontrado documentos antigos, provavelmente feitos no Séc. XI ou XII, que visavam criar essa história mirabolante unificadora. 
No fundo, havia necessidade disso.
Sendo a Bíblia a única referência, e dando apenas conta da história judaica, faltavam registos que não fossem apenas gregos ou romanos. Se não existiam, podem bem ter sido inventados, com maior ou menor inspiração em factos conhecidos, para satisfazer uma história das restantes paragens europeias.

Assim, se Bernardo de Brito pode ter bebido em fontes impuras, também é verdade que não segue apenas estas duas fontes. Segue centenas de autores antigos, muitos dos quais os clássicos, a partir dos quais se organizou toda a história greco-romana. 
O que acontece é que de Plínio, Estrabão, Heródoto, e outros, apenas se tem tirado o que se considera ser "politicamente correcto", e à sua maneira, a história oficial foi fazendo a sua censura, escolhendo o que interessava e não interessava. 
Nesse aspecto, a obra de Bernardo de Brito junta múltiplas fontes, numa ficção que ele considerou ser consistente, à luz do pensamento católico vigente, e com base numa extensa documentação de suporte.

Não é menos do que uma história mítica de Artur, Merlin, Lancelote, Parseval, e tantos outros personagens que, sendo míticos, não deixaram de ser apresentados a público como tal. Foram igualmente resultado de obras de monges do Séc. XII, como Geoffrey de Monmouth, e a sua relação com eventos reais ou míticos não foi prejudicada pela divulgação.
Porém, a censura às obras ibéricas teria um objectivo de evitar estabelecer o mesmo aspecto mítico, que ilude populações, e não era já conveniente que os reinos ibéricos tivessem ideias de grandezas perdidas... muito menos que competissem no tempo com a Bíblia e a família judaica.