Alvor-Silves

segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

Tratado das Ilhas Novas (de Francisco de Sousa, 1570)

Pelo interesse que ainda parece claro, transcrevo aqui o Tratado das Ilhas Novas, uma obra que surgiu em 1570, e que depois de se julgar perdida após o Terramoto de 1755, foi encontrada cópia nos Açores, de que se fizeram 100 exemplares impressos em 1877.

Deixei esta publicação de lado, durante estes últimos dez anos, porque não é suficientemente fiável, dado os grandes erros de datação, ou de localização, que não são minimamente concordantes com o que se sabe hoje. Falar do reino visigodo como se tivesse finado há 300 ou 400 anos antes de 1570, é entrar por um dissonância total com o que é aceite. Falar de ilhas inexistentes no meio do Oceano Atlântico, também.
Assim, dadas essas incongruências irresolúveis, e havendo tanto outro material, optei por deixar cair este pequeno texto. No entanto, e como trata da presença portuguesa na América, mesmo antes de Colombo, não deixará de se considerar uma obra incontornável neste contexto.  



 TRATADO DAS ILHAS NOVAS

POR
FRANCISCO DE SOUZA
TRATADO DAS ILHAS NOVAS
E DESCOBRIMENTO DELLAS E OUTRAS COUZAS,

FEITO POR
FRANCISCO DE SOUZA,
FEITOR D'ELREI NOSSO SENHOR NA CAPITANIA DA CIDADE DO FUNCHAL 
DA ILHA DA MADEIRA E NATURAL DA DITA ILHA
É assym sobre a gente de nação Portugueza, que está em huma grande Ilha, que n'ella forão ter no tempo da perdição das Espanhas, que ha trezentos1 e tantos annos, em que reinava ElRei Dom Rodrigo.

DOS PORTUGUEZES QUE FORÃO DE
Viana e das Ilhas dos Açores
A POVOAR A TERRA NOVA DO BACALHÁO, VAY EM SESSENTA2 ANNOS, 
DO QUE SUCEDEO O QUE ADIANTE SE TRATA
ANNO DO SENHOR DE 1570


Ponta Delgada--S. Miguel
AÇORES
1877


N.o 11

Imprimiram-se unicamente cem exemplares, e todos levam n'esta pagina o competente numero, os quaes serão distribuidos gratuitamente pelas principaes Bibliothecas da Europa e America.
PONTA DELGADA Typ. Minerva Insulana, rua do Valverde (1.o andar)- 39 1877

DUAS PALAVRAS DE PREFAÇÃO

As legendas, bem cedo formadas, sobre a existencia de importantes ilhas no vasto mar fronteiro ás costas do seu paiz, foram o mais poderoso incentivo que determinou os portuguezes, durante todo o seculo decimo quinto e já desde o anterior, a fazerem explorações no Atlantico septentrional.
Foram essas explorações a mais ampla e proficua escola de navegação que tiveram.
Uma das suas mais proximas consequencias, foi o reconhecimento dos Açores, que ficaram servindo de estação para ulteriores investigações ao occidente do seu meridiano.
A lista dos emprehendedores n'esta direcção não é muito escassa.
Annos antes da primeira viagem de Colombo ás Antilhas, já em Portugal havia conhecimento da existencia de parte das costas da America do Norte.
Os Cortes Reaes, ultimos d'aquelles emprehendedores, tornaram apenas mais positivo e extensivo esse conhecimento.
Os factos, porem, de serem essas navegações filhas de iniciativa particular, de serem seus resultados reaes sempre inferiores á espectativa e aos que offerecia a costa occidental d'Africa e promettia a passagem por longo d'ella, para o Oriente, tornaram quasi ignorados e deturpados por uma historia official os esforços dos portuguezes n'aquella direcção.
Por outra parte, a grandeza epica da empreza de Colombo, o explorador das regions da America Central por elle descobertas, as riquezas immediatas d'ellas auferidas pelas conquistas de opulentos imperios, a solidariedade reconhecida do novo continente fiseram quasi obliterar a memoria das nossas explorações no sentido indicado, e referir ao grande navegador genovez a gloria exclusiva da descoberta do Novo Mundo.
Desviado o genio portuguez por uma direcção suprema e systematica para as navegações e conquistas do Oriente, quando o cyclo da sua actividade ali estava quasi fechada, elle volta de novo a sua attenção para o campo em que por tanto tempo o detiveram as suas crenças legendarias; embora já então perlustrado por outros povos e sem fundamento para taes crenças.
Foi n'estas circunstancias que foi escripto o presente opusculo, cujo pomposo titulo, dá idea d'um trabalho muito mais importante do que na realidade é.
Uma noticia contem elle importantissima, qual é a do estabelecimento de uma colonia portugueza na ilha do Cabo-Bretão, nos fins do primeiro quartel do seculo decimo sexto.
Conhecido apenas pelo que d'elle diz a «Bibliotheca Lusitana», era julgado perdido desde o terremoto de Lisboa.
Felizmente, porem, havia mais exemplares nas bibliothecas das Provincias.
No deposito de livros provenientes das livrarias de alguns dos extinctos conventos, e hoje encorporados na Bibliotheca da Universidade, appareceram dois. Nos papeis politicos e historicos, ms., n.o 620 da actual numeração, e 175 do antigo deposito; e tambem na Miscellanea, ms. n.o 135 do antigo deposito.
Tendo conhecimento deste facto, o nosso fallecido amigo e illustre açoriano, José de Torres, fez-nos d'elle communicação em maio de 1865.
Logo nos dirigimos ao nosso conterraneo, então estudante em Coimbra, o sr. doutor Manuel Ignacio da Silveira Borges, pedindo-lhe uma copia d'elle; em breve nol-a remetteu tirada pela sua propria mão.
Destinava-mos effectuar a sua publicação, como annotação, na Memoria sobre Gaspar Corte Real, que pertendemos dár á luz; porem tendo-se casualmente sabido da sua existencia na nossa mão, fasemol-o agora em separado para satisfaser-mos a certa espectação e instancias d'amigos.

ILHAS DE SANTA CRUZ DOS REIS MAGOS

SÃO THOMÉ, BOM JESUS, S. BRANDÃO, SANTA CLARA, DA GRAÇA, 
E A DE S. FRANCISCO OU DAS SETE CIDADES.

A oeste da Ilha da Madeira 65 ou 70 legoas, está uma grande Ilha que se chama Santa Cruz dos Reis-magos, que tem de comprido trinta legoas, e de largo no mais estreito quinze legoas, e pola banda do sul está em 32 graos, e corre athé 34 ao norte, e corre-se noroeste susueste, e tem por todas as faces grandes Bahias e enseadas, grandes arvoredos, e Ribeiras, e boas agoas, como d'isto mais largamente tenho informações dos antigos, e se arruma pola maneira aquy posta em uma carta Franceza, que tenho onde está aluminada, e presumesse que tem gado.
Allem della a oeste, obra de 45--50 legoas, em 32 graos pouco mais ou menos, está outra Ilha que se chama São Thomé, que tem de Leste Oeste, de comprido, passante de doze legoas, e largo cinco, uma formoza Bahia ao Sul com um Ilheo, e na face do Norte uma Roca de Baxio, como me constou das ditas informações, e aluminação da dita Carta Franceza.
Allem mais a oeste 75--80 legoas está outra Ilha que se chama o bom Jhus, em altura de 33 graos, pouco mais ou menos, e tem de Leste Oeste, de comprido, quinze legoas, e de largo melhor de 7, com formozas Bahias por todas as faces e pola banda do Sul sobre a bahia dous Ilheos, e da banda do Sudueste, afastado della, um grande Ilheo, como me constou das informações, e da dita carta aluminada.
No meridiano da Ilha do Porto Santo, pola banda do norte, em 35 está uma Ilha que se chama São Brandão, tão larga como comprida, redonda, que tem uma legoa e meia para duas, e arriba della em 35 graos e dous terços está outra ilha, que se chama Sancta Clara, que tem de comprido para o Norte quatro legoas, e de largo de Noroeste--Sueste tres legoas, e estão assim enfiadas uma na outra com o Porto Santo pelo Ilheo da Fonte da Arêa ou do ferro, e abaixo d'ellas em 33 2/3 de gráo está uma ilha debaixo d'agoa com baixio em redor, que algumas vezes se vê da Ilha do Porto Santo a arrebentação do mar n'ella, segundo as informações que tenho e aluminação da dita carta, e pola maneira aqui posta; a qual a lugares tem 6, 7 braças na cr'oa; e p'ra credito das informações que tenho fui sobre ella, e tem grande roda com muito baixio, a lugares grande musgo do mar, onde vi muitas diversidades de peixe, e a sondei por minha mão, e fui na Barca de Manoel Bayão, que Deus tem, e está a Noroeste--Sueste pela banda do Ilheo da fonte d'arêa, que está ao longo do dito Porto Santo, e está afastada d'ella duas legoas pouco menos.

A oeste das Ilhas dos Açores está uma Ilhêta que se chama a Ilha da Graça, e desta Ilhêta indo a oeste dusentas legoas e outras dusentas da ilha das onze mil virgens em altura de 39, 40 e 41 gráos, pouco mais ou menos está uma grande Ilha que se chama São Francisco, que tem melhor de quarenta legoas de comprido de Norte--Sul, e de largo vinte e tantas, com grandes Bahias, Ribeiras d'agoas e arvoredos, segundo as informações que tenho d'ella e por via de França tive as mais das informações por os francezes continuarem á Terra Nova á pescaria, e á Costa do Brazil e Guiné, e navegam por fóra das nossas derrotas por causa das nossas armadas; e estas ilhas estão em partes donde os Portuguezes não navegam se não fôr algum esgarrado, de que tambem ouvi informação, porque os navegantes se vigiam disso muito pelos rumos porque navegam de não darem guinadas; quanto mais irem por rumos fóra de seus caminhos donde estas ilhas estam, e principalmente Ilhas que estam cobertas de nevoas grossas por causa dos arvoredos e humidades do viço d'elles e vontade de Nosso Senhor.

No tempo que se perderam as Espanhas, que reinava El-Rei Dom Rodrigo, que vai para quatro centos annos1 que com as sêcas se despovoaram as gentes, e pereceram com a grande esterilidade e da entrada dos Mouros, como mais largamente se trata nas Escripturas antigas, por a qual causa do Porto de Portugal os mareantes e homens Fidalgos tendo noticia que para o Ponente havia terra que até então não fora descoberta, sómente pelas informações dos antigos e dos Espiritos tinham d'ella informação, determinarão de se embarcarem em sete náos com toda sua familia, e de hirem correndo ao Ponente confiados na misericordia de Nosso Senhor navegarão; e pela altura do Porto que está em 41 gráos correrão tanto que forão por barla-vento das Ilhas dos Açores, que inda não erão descobertas, e forão aportar na Ilha de S. Francisco que está pela dita altura, onde dizem as informações que tenho, que foram n'ella dar: e eu por rasão da nevegação acho ser sua derrota assim; queira Nosso Senhor permittir se descubra esta Ilha como atraz fica dito onde ella demora; e por irem em sete náos disem as informações que cada capitão com sua náo, tanto que aportarão, se repartirão cada um em sua parte da Ilha, e os antigos lhe chamão a esta Ilha as sete Cidades; mas outros por via de França lhe chamão a Ilha de S. Francisco, o qual, por quem é, queira rogar a nosso Senhor dêmos com ella para valermos á salvação da gente que n'ella está, pois procede de Christãos: e achei mais que é terra de boa habitação por ser grande e de muito proveito; e por rasão da virtude dos climas acho está situada no 5.o clima, que dado que seja mais frio que as Ilhas dos Açores não o é tanto como França, Inglaterra, porque é Ilha do mar a que o mar aquenta, e mais, que nas faces do sul é habitavel os dois terços d'ella debaixo de boas zonas.

Haverá 45 annos ou 503 que de Vianna4 se ajuntarão certos homens fidalgos, e pela informação que tiveram da terra Nova do Bacalháo se determinaram a ir povoar alguma parte d'ella, como de feito foram em uma náo e uma caravella, e, por acharem a terra muito fria, donde ião determinados, correram para a costa de Leste Oeste té darem na de Nordeste--Sudoeste, e ahi habitaram, e por se lhe perderem os Navios não houve mais noticia d'elles, sómente por via de Biscainhos, que continuam na dita Costa a buscar e a resgatar muitas coisas que na dita Costa há, dão destes homens informação e dizem que lhe pedem digam cá a nós outros como estão ali, e que lhe levem sacerdotes, porque o gentio é domestico e a terra muito farta e boa, como mais largamente tenho as informações, e é notorio aos homens que lá navegam; e isto é no cabo do Britão5 logo na entrada da costa que corre ao Norte em uma formoza de Bahia donde tem grande povoação; e ha na terra coisas de muito preço e muita nóz, castanha, uvas, e outros fructos, por onde parece ser a terra boa e assim nesta companhia foram alguns casais das Ilhas dos Açores,6 que de caminho tomaram como é notorio: Nosso Senhor queira por sua misericordia abrir caminho como lhe vá soccorro, e minha tenção é hir á dita costa de caminho quando fôr á Ilha de S. Francisco, que tudo se póde fazer d'uma viagem.
Porque ao tempo que os antigos dão informação d'estas ilhas a navegação ainda não era apurada como agora e, deve-se de buscar nas ditas partes, ou por mais um gráo ao Norte ou ao Sul, e para oeste e Leste, resolvendo-se, como os mariantes melhor o saberão fazer, se Nosso Senhor não for servido que eu o faça, porque alem de saber a navegação tenho outras regras das sciencias Mathematicas e bom engenho para todo o necessario ao dito descobrimento; e Nosso Senhor ordene o que for mais ao seu Santo serviço. E escrevi isto, e o mais que em meus papeis tenho escripto, porque não sei o que o Senhor Deus fará de mim; e por tanto se isto a alguem prestar, peço rogue a Deus por minh'alma como eu faço pelas dos que fizeram as informações que tenho; porque esta é a obrigação do bom proximo e dos meus; e tudo póde ser assim como foi e é o mais que está habitado.

ROTEIRO DO DESCOBRIMENTO DAS ILHAS NOVAS,

feito por João Affonso, francez7 o qual esteve n'ellas e em uma emmastreou uma náo sua, e tomou altura e fez roteiro

A oeste da Ilha que se chama da Madeira, 60 ou 70 legoas, está uma grande Ilha que se chama--Santa Cruz dos reis Magos, que tem de comprido 30 legoas, e de largo no mais estreito 15 legoas; e da banda do sul está em 32 gráos e 3/3;--sic--e corre-se 34 ao Norte, e corre-se Noroeste Soeste, e tem por todas as faces grandes Bahias e enseadas, e grandes Ribeiras de boas agoas, e arvoredos, e tudo isto affirmo como quem esteve n'ella, e tenho uma carta, aonde está por mim aluminada com outras que aqui direi; e esta primeira, de que faço menção segundo signaes que vi n'ella, tem muito gado.
A oeste, alem d'ella obra de 45 legoas, em 32 gráos pouco mais ou menos, está outra Ilha que se chama S. Thomé, que tem de Leste Oeste passante de 12 legoas de comprido e de largo 5, e tem uma formoza Bahia da banda do Sul com um Ilheo, e na face do Norte uma roca de Baixio, como está aluminada na dita carta por mim feita.
Alem mais a oeste 75 legoas d'esta Ilha São Thomé está outra Ilha que se chama o Bom Jhus, os quaes nomes foram postos por mim mesmo por serem os mesmos dias em que as descobria em altura de 33 gráos; e tem de Leste a oeste ou Sueste de comprido 15 legoas, e de largo mais de 7 conforme as alturas que para isso tomei, e com formozas Bahias por todas as faces, e pela banda do Sudoeste afastado d'ella um Ilheo grande como consta da aluminação da carta que tenho feito, em que se achará tudo isto que digo muito certo.
FIM

NOTAS


1 Oito centos e tantos, deveria o autor dizer.
2 Sessenta--Barbosa na Bibliotheca Lusitana diz--setenta.
3 A chronologia indicada no titulo do presente opusculo é clara e positiva, mas como concilial-a com esta do texto? Como explicar tal divergencia em obra de tão pequeno folego? Em todo o caso, esta é a preferivel por mais explicita e naturalmente mais pensada. Assim teremos para data da colonisação referida o anno de 1525, aproximadamente.
4  O padre Antonio de Carvalho na sua Corographia portugueza, tom. 1.o pag. 182, (2.a edic. Braga 1868) e tom. 1.o pag. 205 da 1.a edição tratando da Comarca de Viana, diz, a proposito da freguezia de S. Julião de Moreyra, concelho de Ponte de Lima, o seguinte:
«N'esta freguezia é a casa do Outeiro, solar dos Fagundes, cuja familia tem dado pessoas grandes de que descendem muitos fidalgos, e foram os primeiros que com gente de Viana descobriram a Terra Nova, e que n'ella tiveram fortificação de que eram senhores, e por sua conta corria a pesca do bacalhau em quanto Inglatterra a nao tomou.» 
Conforme o mesmo autor, os Fagundes alliaram-se com os Pereiras Pintos de Bretiandos. A pag. 14 do Theatro Geneologico de D. Tivisco Nazáo Zarco etc. igualmente se diz João Alvares Fagundes, Capitão da Terra Nova.
A representação d'estas familias está hoje no senhor conde de Bretiandos.
Existirão ainda no archivo d'esta casa memorias ou documentos relativos aos factos que aponta o autor supracitado?

5  Sem pertender-mos alterar a denominação actual d'esta ilha, nem a esta indicar nova origem, lembraremos comtudo a proposito da palavra britão a seguinte passagem da Azurara, na Chronica de Guiné, pag. 304:
«E porque em terra eram tantos d'aquelles Guineus, que por nenhum modo podiam sahir em terra de dia nem de noite, quiz Gomes Pires mostrar que queria sahir entre elles por bem; e poz na terra um bollo e um espelho e um folha de papel no qual debuxou uma cruz. E elles quando vieram, e acharam alli aquellas cousas britaram o bollo e lançaram-no a longe, o com as azagaias atiraram ao espelho até que o britaram em muitas peças e romperam o papel, mostrando que de nenhuma d'estas cousas não curavam.»

6 Ainda que o autor só genericamente diz que reforçaram a colonia alguns casaes tomados de passagem nas ilhas dos Açores, parece-nos que o seriam unicamente na ilha Terceira, pelas estreitas relações de familia e de commercio que então havia entre ella e Viana.
A provincia do Minho foi das que mais concorreram para a colonisação d'aquella ilha. Sam diversas as antigas familias terceirenses procedidas e ligadas com familias de Viana. D'ali veio Rodrigo Affonso Fagundes, da propria casa do Outeiro, e delle procedeu larga e mui distincta posteridade. Sua terceira neta Beatriz Fernandes de Carvalho, casou em 1546, com Pedro Pinto, de Viana; casa depois ali denominada da Carreira, e hoje representada pela exm.a senr.a D. Maria Izabel Freire d'Andrade, de Lisboa, que por via d'aquella alliança ainda hoje possue n'aquella ilha e na de S. Jorge uma grande casa.
O mesmo sr. conde de Bretiandos ainda hoje possue casa na Terceira, procedida de D. Maria de Souza mulher de Damião de Souza de Menezes, irmã de Gonçalo Vaz de Souza instituidor sem geração filhos ambos de Antonio de Souza Alcoforado e de Cecilia de Miranda da Ilha Terceira.

7.

João Affonso. É este nome bem conhecido na historia maritima de França, como marinheiro, hydrographo e geographo. Deixou uma Hydrographia ms., hoje existente na Bibliotheca Nacional de Paris. D'ella se publicou um extracto em 1559, tempo em que já era morto o autor, com o titulo de--Voyages aventureux du capitaine Jean Alphonse, Saintongeois.--Foi em Saintonge, perto de Cognac, que elle estabeleceu o seu domicilio; d'ahi o appellido de Saintongeois com que o vemos tratado depois de sua morte, qualificação que ficou servindo de titulo á pertenção franceza de o haverem por seu conterraneo.

Léon Guérin, tratando de João Affonso no seu livro intitulado--Les Navigateurs Français,--não occulta que Charlevoix «por falta de estudo a este respeito, e depois d'elle muitos autores francezes, dizem ser nascido em Portugal ou na Galliza, asserção esta, de que os estrangeiros e em particular os portuguezes, altivos por sua antiga gloria maritima, se assenhorearam para juntar este navegador aos que illustraram o seu paiz.»
Charlevoix viveu nos annos que decorreram de 1682 a 1761. As suas obras sobre as colonias e marinha de França demonstram bem que lhe não faltou estudo sobre a historia maritima do seu paiz. Não era elle homem que ignorasse a publicação das Viagens aventureiras de João Affonso, nem o tratamento de Saintongeois que no titulo d'ellas lhe deu o editor, e que de leve privasse a sua patria da maternidade de tão illustre filho.
Um escriptor mais recente, o sr. Pierre Margry, no seu trabalhado livro--Les navigations françaises--consagra a este navegador uma boa parte da sua obra. Nem um palavra, porém diz sobre a questão da sua nacionalidade. Para o autor, João Affonso é seu e todo seu.
Teve, porém, o sr. Pierre Margry o cuidado de informar de espaço os seus leitores da Hydrographia de João Affonso, exhibindo extratos e offerecendo juizos, que acceitamos, sobre os logares que João Affonso descreveu por observação propria. Por ali vemos que quanto diz respeito ao Mar Roxo, costas do Malabar e de Malaca, e mesmo além d'esta, foi felizmente percorrido, examinado, e descripto por João Affonso.
Ora, é de notar que João Affonso escreveu o seu livro nos annos de 1544 e 1545.
Até áquelles annos os nossos escriptores das cousas da India apenas mencionam a ida áquelles mares e regiões de tres navios francezes, no anno de 1527, procedidos de Dieppe; um aportou na ilha de S. Lourenço (Madagascar); outro commandado por Estevão Dias, o Brigas de alcunha, portuguez, que por travessuras que havia feito no Reino se havia lançado em França, chegou a Diu na entrada de junho d'aquelle anno, onde depois de obter seguro do mouro capitão da cidade, foi com todos os seus prezo e mandado ao Sultão Badur, acabando ali miseravelmente, como contam Barros, e Mendes Pinto na sua immortal «Peregrinação,» cap. 16 e 20.
A terceira, commandada por outro portuguez, o Rozado, natural de villa do Conde, foi perder-se na costa occidental de Çamatra em uma bahia perto de Panaajú, cidade do rei dos Batas, que d'elle houve alguma artilharia.
Nota a historia de França ainda, no anno de 1529, uma segunda expedição áquellas regiões, a qual sahida de Dieppe tambem, tinha por termo as Molucas, e por commandante João Parmentier que foi morrer na mesma costa do sul de Çamatra, pelo que ficou mallograda a expedição e o navio voltou d'ali a França.
Se a historia da nossa dominação no Oriente não fosse bastante, apontariamos o occorrido em Diu ao Brigas, para mostrar o perigo de qualquer navegação europea isolada e trato com os povos d'aquellas regiões, por aquelles tempos.
Por outra parte o zelo e vigilancia do Governo Portuguez em repellir d'ali o concurso de qualquer outra nação da Europa não podião então ser excedidos; as instrucções secretas e verbaes dadas a Nuno da Cunha ao ir governar a India assás provam o que levamos dito. Veja-se Sousa, nos Annaes de D. João III.
A passagem de Portuguezes conhecedores das nossas navegações e conquistas ao serviço de França era então mui frequente, uns por despeitados e mal premiados se passavam; outros captivos por corsarios francezes, que desde o reinado de D. João II, e por todo o de D. Manuel e D. João III infestaram as costas do reino e os mares dos Açores.
O governo Francez (em nome da liberdade dos mares!!) favorecia desfaçadamente taes actos.
O caso occorrido com D. Pedro Castello Branco e com Francisco I de França, narrado por Couto, mostra bem as ideas d'este monarca sobre taes actos. D. Pedro roubado por corsarios francezes ao voltar da India, foi a França reclamar a sua fazenda. Francisco I não teve pejo de uzar á vista d'elle d'umas estribeiras e d'uns anneis pertencentes á fazenda que fôra roubada. D. Pedro á vista das negativas e despejo d'el-rei, o teve tambem de lhe dizer que aquellas estribeiras de que elle usara no dia anterior, e aquelles anneis que elle tinha nos dedos, os mandara elle D. Pedro fazer e eram fazenda sua.
Por estes meios foram os francezes, desde o começo das nossas navegações longiquas, senhores dos nossos roteiros, cartas e diarios maritimos, marinheiros e pilotos.
Como dissemos, o sr. Pierre Margry reconhece que João Affonso descrevera por observação propria, o que o mesmo João Affonso confessa nos extractos offerecidos por aquelle sr., o Mar Roxo, as costas do Malabar e de Malaca.
Ora, perguntaremos em boa consciencia ao sr. Pierre Margry, fez João Affonso esses exames n'aquelles mares e regiões ao serviço de França? O que o levaria ao Mar Roxo, onde os nossos capitães só então iam com fins puramente militares? Acaso já teria então o seu Governo vistas sobre o córte do Suez e a navigabilidade d'aquelle mar?!!
Quem lhe daria a audacia de examinar no serviço de França, as costas do Malabar e as de Malaca, então os logares mais frequentados pelos portuguezes?
Nós não hesitamos, nem comnosco os que tiveram alguma idéa da nossa dominação na India por aquelles tempos, em affirmar que as navegações de João Affonso por aquellas regiões só poderiam ter logar ao serviço do Portugal, sua patria, e nunca jamais ao de França, onde depois se lançou. Tão longa, minuciosa, feliz e então ignorada e não sabida navegação ao serviço de França é inadmissivel e insustentavel.
João Affonso foi um portuguez lançado em França; assás o temos demonstrado.
A historia vem ainda em auxilio da nossa argumentação, mas a historia irrefragavel.
Não é nenhum escriptor vaidoso das nossas glorias maritimas que se aproveitasse da sinceridade de Charlevoix, quem nol-o affirma. É, nem mais, nem menos, o nosso querido frei Luiz de Sousa, escriptor muito anterior a Charlevoix, quem nol-o diz nas seguintes palavras, fallando, em suas memorias e documentos para os Annaes de D. João III, ao anno de 1533. «Por carta de Elrey, de 3 de fevereiro de 1533, consta de um João Affonso que andava levantado com francezes; e que no mesmo tempo andava Duarte Coelho com armada na costa da Malagueta, e que el-rei lhe mandava que viesse a esperar as naus da India».
Por aqui vemos mais que João Affonso se tinha ao serviço de França tornado respeitavel a Portugal. Na verdade as queixas do nosso Governo contra elle, chegaram a obrigar o Governo Francez a tel-o por algum tempo preso em Poitiers.
Fique, pois, João Affonso d'hoje em diante havido por portuguez, porém não na lealdade, e sirva a qualificação de Saintongeois, que elle jámais usou, mas que lhe foi dada depois de morto, apenas para indicar que elle tomára por patria adoptiva Saintonge; ou então sirva para mostrar o quanto os francezes de então, como os d'hoje, o ambicionavam seu, e o pouco escrupulo em forjar os meios de prova com que podessem sustentar suas aereas pertenções.
Terminando este artigo da presente carta, lembraremos a grande possibilidade de encontrar na propria Hydrographia manuscripta de João Affonso a confissão da sua qualidade de portuguez.
O silencio do sr. Pierre Margry, no extracto que d'ella offerece, á cerca dos portos e costas de Portugal, confessamos que nos parece bem suspeitoso.

Extracto da carta ao ex.mo redactor do--Jornal do Commercio--José Maria Latino Coelho, por João Teixeira Soares. Sobre a qualidade de portuguezes de tres grandes navegadores do seculo XVI; João Affonso ao serviço de França, João Fernandes e Pedro Fernandes de Queiroz, ao de Hespanha. Publicado nos folhetins do--Jorgense--n.os 90 e 91 de 1875.

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