Alvor-Silves

sábado, 14 de dezembro de 2019

Descoberto e Encoberto (3)


O Encoberto e o Descoberto
Aspectos da História dos Descobrimentos

(continuação) 

Capítulo 3 - Cartas de Marear

Para além da Carta de 1485 (já mostrada), na Biblioteca de Munique está a Carta “Pedro Reinel a fez”, com data atribuída de 1504, que apresentamos conjuntamente com a cópia de Cantino, um mapa cuja data é confirmadamente 1502.

Carta "Pedro Reinel a fez" (1504?)  

Cópia de Alberto Cantino (1502) - espião do Duque de Ferrara


- O que faria Reinel dois anos depois publicar uma Carta de inferior qualidade?... se não houvesse segredos no seu mapa? - Na Carta de Reinel é ignorada a Gronelândia, onde teria havido expedições conjuntas em 1472 com os Dinamarqueses, no reinado de Afonso V, que se podem ter estendido à Passagem Norte, pelo Canadá, conforme a tese de Sofus Larsen (apresentada em 1925). No mapa do espião Cantino, e depois de novas viagens pelos irmãos Corte-Real em 1500, temos este contorno para a Gronelândia:

Detalhe da Gronelândia, no mapa de Cantino e no Google...

Não parece fazer sentido Reinel piorar a sua carta do "Atlântico Norte" em 1504, havendo essa informação mais detalhada em 1502. 

Ora, uma possível hipótese é que a carta "Pedro Reinel a fez" tenha sido a "carta de trabalho" para o Tratado das Tordesilhas... toda a ênfase está colocada no(s) meridiano(s), e assim a datação 1494 é a mais provável. Este formato de Reinel parece ter feito escola, havendo uma repetição posterior de Lopo Homem em 1550, que deverá já incluir um maior conhecimento, por exemplo, na extensão escandinava (antes omitida). 

Sendo uma carta referente a 1493-94, como explicar a bandeira adicional em Melilla? Poderá ter sido uma cópia do próprio Reinel, posterior a 1497 (data de conquista espanhola de Melilla). Por isso Reinel escreve "a fez" (passado) e não "me fez" (presente). 

Eventualmente o original teria sido escondido... nem o próprio D. Manuel saberia onde estava, e terá pedido então a nova cópia, provavelmente em 1497-98, ou talvez mesmo em 1504... mas a carta não se reportará a essas datas.  

3.1. “Pedro Reinel a fez” 
A Carta de Reinel levanta ainda outras questões: 
- Como vimos, começa pela datação: 1504... mas aparece uma Ilha Brasil. Que sentido faria isso? 

- Depois há pormenores minuciosos correctos simultaneamente com erros grosseiros, na Europa e não só, mesmo na zona do Labrador! Na Europa é talvez mais “escandalosa” a representação da península dinamarquesa enquanto ilha. Pedro Reinel foi considerado o maior cosmógrafo do seu tempo, recebeu uma proposta milionária de Carlos V, e portanto estes “erros” não devem ser considerados como tal. 

- Há dois meridianos, que sugerem uma tentativa de deformação para uma projecção Mercator, mas que não é acompanhada pelas linhas paralelas constantes do mapa. 

- Múltiplos sinais de "ilhas artificiais" e "pontilhados artificiais"... que permanecem noutras cartas posteriores (e não se referem necessariamente a baixios ou recifes). Vemos nomes inscritos para leitura norte-sul, mas também sul-norte, etc... 

- Há um aparente detalhe do Labrador, mas porquê saltar a Terra Nova, por onde se deveria passar ao largo antes de chegar ao Labrador? Conforme vimos no Tratado da Ilhas Novas, de 1570, a Terra Nova seria habitada por descendentes portugueses e como tal foi omitida.

As "terras verdes" junto ao Labrador, no canto superior ocidental, cumpriam outro propósito!
De facto, rodando a carta, obtemos como detalhe (a parte norte aparece agora a sul):

Detalhe da Carta de Reinel, após inversão e rotação, comparação com detalhe no Mapa de Cantino. 
(Zona da Bacia Amazónica, assinalada de forma semelhante - baía com ilhas internas)

Ou seja, é preciso inverter o mapa, para ver o Brasil, e não falo da Ilha Brasil... O importante em discussão no Tratado de Tordesilhas seria ver que terras seriam cortadas pelo meridiano. Na imagem no quadrado (à direita) vemos parte do Brasil no mapa de Cantino, e comparamos com uma parte da “terra verde” inclusa no quadrado preto. A semelhança geométrica do contorno poderia ser perfeitamente acidental, mas a isso acrescenta-se em ambos os casos uma enseada com várias ilhas, e um Meridiano de Tordesilhas (que ao longo dos anos foi sendo reajustado). Isto serve apenas para levantar a hipótese de que terá sido uma carta semelhante que o copista do mapa Cantino viu.

Assinalada num losango verde, está uma outra perspectiva do mapa, com base no outro meridiano mais pequeno... esse meridiano tem no topo uma "Ilha Santa Cruz" (conforme referido no Tratado das Ilhas Novas) que assim só existirá para designar as Terras de Santa Cruz, ou seja, a América do Sul.

A outra ilha mítica, a "Ilha Verde", designaria (em posição correcta, face à América) o Cabo Verde: 
Após rotação do mapa de Reinel (norte-sul acertando o meridiano de Tordesilhas): 
à esquerda: inclinação das "Antilhas" em ambos os mapas, Cantino e Reinel; 
à direita: posição relativa de Cabo Verde no mapa Google, face à ilha Verde de Reinel

Ou seja, as Ilhas Míticas - nunca encontradas, poderiam não passar de marcações em mapas! 

Há mais detalhes, mas bastará notar que as Antilhas apresentam na cópia de Cantino uma inclinação próxima à que encontramos em Reinel, se considerarmos que Reinel coloca as Antilhas coladas ao "Labrador". 

A escolha do meridiano torna-se mais evidente com os Açores. Aí não faz sentido considerar o meridiano principal, já que algumas ilhas apareceriam sob território espanhol... No mapa de Cantino isso está já corrigido, e um "Labrador artificial" e toda a Gronelândia aparecem do lado Português, conforme conviria às pretensões portuguesas!

Pedro Nunes explica melhor os problemas e vantagens das cartas de marear:
(...) a carta não é nenhum planisfério; que nos faça quanto a vista aquela imagem e semelhança do mundo, que fazem os de Ptolomeu e outros que aí há, nos quais há somente paralelos e meridianos. Porque se bem olharmos, que releva a quem navega para saber por onde andou, ou onde está, que uma ilha ou terra firme esteja pintada mais larga do que é, se os graus forem tantos quantos devem ser de leste a oeste. Porque a mim, que faço a conta, me fica resguardado : saber que esses graus são na verdade menores do que a carta por ser quadrada amostra, e ver quanto menos léguas contém, e isto por tábuas de números ou instrumento, como é o quadrante que para isto costumo fazer. De forma que quero concluir: que mais proveito temos da carta por serem os rumos equidistantes, do que prejuízo, porque sendo assim fique quadrada, e quem por isto a repreende não sabe o que diz (...)

3.2. Ilha Brasil 
Falta explicar a razão de uma Ilha Brasil junto à Irlanda, e também das Ilhas Maydas... começamos por apresentar uma Carta Catalã (da "escola judaica" de Maiorca) de 1439: 

Carta catalã de Gabriel Valseca (1439), colocando ênfase na rotação de um círculo com a Eurásia –África (castanho-branco).

Isto serve apenas para enfatizar que já nessa "escola judaica", de onde Cresques é suposto ter chegado a Portugal no final do Séc. XIV, haveria uma ideia de esconder informação numa carta, através das suas várias possibilidades de rotação, conforme parece ser explícito na Carta de Valseca. Ou seja, em grande medida só algumas coisas na Carta de Marear serão uma originalidade portuguesa, como aliás Pedro Nunes reconhece. 

Neste mapa de Valseca aparece também a Ilha Brasil - um círculo junto à Irlanda. Vejamos o que acontece com o Portulano de Pizigano, 1424 (1ª figura seguinte), quando consideramos essa ilha como uma marcação para centros de onde partem meridianos locais. Para o caso da ilha Brasil há um centro que permite projectar essa localização para uma zona próxima da bacia amazónica (conforme vemos na 2ª figura seguinte), através da linha cor-de-rosa. Situação semelhante para o caso da outra ilha assinalada como uma lua, no prolongamento azul na direcção da península maia. 

Para o caso dos agrupamentos de ilhas, assinalados no mapa a azul escuro (Satanazes) e a vermelho (Antilhas), se usarmos o centro colocado no interior da península ibérica, obtemos direcções que nos levam à zona das ilhas da Terra Nova e Nova Escócia (delimitada a azul, conforme 2ª figura), e por outro lado à zona das Antilhas (delimitada a cor-de-laranja, conforme 2ª figura).

Portulano português, feito por Pizzigano (1424) ao serviço do Infante D. Henrique. 
As nossas linhas artificiais são colocadas também no mapa seguinte.
As inclusões dos pontos de referência no Google Maps, mostram as
direcções correspondentes no continente americano.

A escolha do centro não é a priori justificável... mas é interessante um centro corresponder a Madrid (o que se verifica pelas posições relativas face à Costa da Gasconha e posição das Ilhas Baleares). Ainda que aqui a coincidência seja essencialmente geográfica...

Neste caso há menos informação neste portulano, poderá ser mais fácil interpretar esta Carta mais antiga... conforme refere Pedro Nunes, o que interessava aos navegadores era saber a direcção a tomar, e depois definir o rumo até encontrar terra!

Isto coloca a datação para a descoberta portuguesa destes territórios americanos, pelo menos antes de 1424... Mas, conforme o Tratado das Ilhas Novas, será mesmo anterior às invasões mouras. No entanto, só depois, após Gil Eanes, e com o Infante Dom Pedro, houve uma boa cartografia, um comércio regular com este novo mundo, usando as rápidas caravelas, o que levou a um efectivo desenvolvimento português no quadro europeu.


Capítulo 4 - Hespera Mundi
As armas, as divisas, os motos, procuraram resumir os grandes objectivos perseguidos pelos seus detentores. Desde o “por bem” de D. João I, seguiram-se várias divisas que têm algum relevo na história seguinte.

4.1. Talant de bien faire
O Infante D. Henrique usava esta frase como divisa (antes de Tanger, terá usado IDA... iniciais de Infante Dom Anrique, pela sua vontade de conquistar - Tanger... ou melhor, Jerusalém?). 
Divisa do Infante D. Henrique 

Frei Luís de Sousa (séc. XVII) classificou os símbolos como "duas pirâmides dos antigos reis do Egipto", e encontram-se no livro perdido de Zurara (só recuperado no séc. XIX, em França...).

Talant de bien faire, significaria vontade de bem fazer, mas o "e" falta em talent. Há de facto dois hemisférios... poderá ver-se uma pirâmide em cada um deles. Considerando as inscrições como anagramas (o que não era invulgar):
 TALANT >> ATLANT       ||       FAI'RE >>AFRI'E 

Num hemisfério, uma pirâmide atlântica, no outro uma africana. Mas, para o Infante Dom Henrique, o bien era simbolizado pela opção Oriental, pelo lado da Cruzada, contornando África. 

4.2. Désir
O irmão, Infante Dom Pedro, grande promotor das Ordenações Afonsinas, durante a sua regência (1439-1449), deixou-nos como divisa uma Balança, equilibrada... e um desejo - DÉSIR...

Havia uma motivação ambivalente entre um projecto oriental, de cruzada, e um projecto ocidental, mais evangelizador. Portugal dividia-se entre estas opções no seu tempo. Os feitos orientais seguiram o seu rumo, mas os prováveis grandes feito ocidentais foram encobertos.

O Infante Dom Pedro é motivado por um sonho ocidental, “americano”, colonizador... tendo deixado esse nostálgico sentimento, que o povo foi cantando ou mantendo em tradições (tão antigas como a tradição da espiga). Tradições que se vão perdendo, alienando património importante de forma quase irremediável. Teria existido uma fonte com o seu nome em Coimbra, pelos amores que lhe tem, conforme dirá Camões, que a isso adicionou ninfas do Mondego;

Moto do Infante Dom Pedro, com a balança

4.3. Pro Lege, Pro Grege
D. João II tentou seguir o projecto do seu avô, o Infante D. Pedro, procurando algum equilíbrio. De um lado, para equilibrar a balança estaria o seu sangue de Pelicano, que retira do corpo, para alimentar os seus filhos, a grei, o povo... o seu moto será “Pro Lege, Pro Grege”, pelas leis, pelo povo. Ao seu sucessor D. Manuel irá legar uma divisa com duas esferas armilares, uma com a inscrição Mundi, virada a ocidente, e outra com a inscrição Spera (já usada por D. Manuel, antes de ser rei), virada a oriente:
Divisa que D. João legou a D. Manuel, com as duas esferas armilares, 
das quais apenas se manteve a virada a Oriente.

Também aqui se invoca um equilíbrio, mas para que esse equilíbrio seja reposto a nomeação Mundi Spera, antes proposta, deveria passar a Hespera Mundi. De facto, o que nos foi mostrado foi o lado oriental, onde uma estória ocidental terá ficado oculta. Apesar de múltiplos sinais, temos sido incapazes de ver o lado ocidental, do Jardim das Hespérides, conforme designa Camões. Por isso mais que uma Espera, o désir do Infante D. Pedro deveria transformar-se numa Hespera. 

4.4. Serena Celsa Favent 

Serena ~ tranquilidade/esclarecimento, Celsa ~ grandeza, Favent ~ favorável 
Moto d’el rey Dom Sebastião 

Camões, nuns tercetos incluídos no livro de Pêro de Magalhães de Gandavo invoca o mítico espartano rei Leónidas. Aparentemente são dirigidos a Lionis Pereira, pela sua vitória em Malaca contra o Rei do Achém, mas seria mais adequado a Dom Sebastião, que tal como Leónidas, terá lutado contra um adversário incomensuravelmente superior:  

Vos Ninfas da Gangética espessura, Cantai suavemente em voz sonora Hum grande Capitam, que a roxa Aurora Dos filhos defendeo da noite escura. Ajuntou-se a caterva negra & dura, 
Que na Aurea Chersoneso afouta mora, Pera lançar do caro ninho fora Aquelles que mais podem que a Ventura. 
Mas hum forte Lião com pouca gente, A multidam tam fera como necia, Distruindo castiga, & torna fraca. Pois ô Ninfas cantay que claramente Mais do que fez Leonidas em Grecia O nobre Lionis fez em Malaca. 
Neste breve apontamento, de uma Estória maior, "o Encoberto" contrário "do Descoberto", é ainda a mensagem que fica presa a um nevoeiro, de onde só nos chegam pequenos sinais... 
Há só uma História?.. ou há apenas a Estória que deixa e apaga registos. 

São pontas soltas, até que apareça alguém a assinalar, depois voltando-se tudo a colar, durante mais alguns séculos. Neste momento, será importante reenquadrar a História, colando as coincidências de forma mais verosímel. 


Referências Bibliográficas: 

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