Alvor-Silves

domingo, 21 de abril de 2019

Ser humano. Ser o mano.

Os dois últimos postais foram sobre os manos e sobre humanos.

Se há coisa a que os seres humanos não são poupados, é à perspectiva de um pior horror.

Relembro aqui o postal Casanova e as velhas causas, que também tratava dos dois assuntos, e em particular da penosa execução que sofreu Damiens, acusado de tentativa de regicídio em 1757. Também em Portugal, o nosso bom maçónico Marquês decidiu exercer a sua crueldade pública nos Távoras, logo de seguida, em 1758.
O que podemos ver é que o aumento do conhecimento científico não serve para maior empatia, serve também para infligir maior sofrimento. Se Brunilda pode ter sido poupada ao uso de ácidos, Damiens não foi porque a ciência os vulgarizara.

Alguém soube de algo que tivesse inibido a crueldade latente?
- Não me parece. Se o exemplo cristão procurou ensinar a resposta não violenta contra a violência, isso não inibiu a Igreja de ser crédula na crueldade, trazendo mais inferno sob pretexto de nos querer livrar dele.

Creio que a Divina Comédia, de Dante, ficou famosa porque abriu novos níveis de inferno.
Uma tentativa de explicitar maiores horrores, nesse caso eternos, para que aos párocos cristãos não faltasse imaginação tenebrosa para converter fiéis pelo medo. 

Na arte, de Bosch a Munch, com quinhentos anos de diferença, vemos uma mesma tentativa de impressionar, de tornar desconfortável, a posição do espectador.

 
O grito. Edvard Munch (1893). A visão de Tondalys por Hieronimus Bosch ou seguidor (c. 1485)

Da literatura ao cinema, sempre que houve oportunidade, foi dada toda a liberdade ao horror, ao terror, à sua presença no nosso imaginário, até das formas mais sinistras que foram pensadas. Nem sequer as crianças eram a isso poupadas, com contos infantis onde as mais desprevenidas tanto podiam ser o repasto de lobos como de bruxas.

Poderá dizer-se que fomos poupados a alguns registos ainda mais tenebrosos, mas esse é sempre o epílogo do horror - afirma-se poder ser pior que o pior conhecido. No fundo, uma trivialidade também aplicável à ignorância dos intelectuais. 
Ou, como no filme "Contacto", não se fala dos horrores que conhecemos, fala-se dos horrores que desconhecemos, isto acerca da cápsula de cianeto (supostamente dada aos astronautas):
«There are a thousand reasons we can think of for the occupant of the machine to have this with them [cyanide pill] - but mostly it's for the reasons we can't think of.»
As religiões cobram na Terra a entrada para o Paraíso celeste.
Como factor persuasivo, ameaçam com infernos mais tenebrosos que os terrenos.
A perspectiva infernal serviu como seguro de obediência e bom comportamento terreno.
Repare-se como a morte foi excluída, enquanto saída intermédia, proibindo o suicídio.

Nada seria mais socialmente perigoso do que alguém sem medo de morrer. 
Assim a religião não serviu apenas para combater o medo da morte, serviu para combater a falta de medo perante a morte, com a promessa de castigo eterno.

Enfado, em fado
Aquilo que é negligenciado, por falta de reflexão, é que o pior fado é o enfado.
A pior situação não é uma de que podemos sair, vivos ou mortos, é a aquela de que não podemos sair.
O pior Inferno é condenar alguém a ser Deus.
O Deus idealizado ficaria no permanente enfado de conhecer o seu fado.

O problema destas questões teológicas ou filosóficas, é que as falhas e contradições evidentes são varridas para baixo do tapete. Uma retórica grande e nula vai servindo para evitar a simples lógica.
"Alguém que conhece tudo..." é uma noção inexistente, porque inevitavelmente essa entidade desconheceria o desconhecimento. "Alguém que pode tudo..." seria outra, porque nesse caso nunca provaria ser capaz de se tornar eternamente impotente. 
A religião cristã poderá ter pensado resolver estes problemas óbvios, com uma dualidade homem-deus em Cristo, e a sua junção num mistério da trindade. Enquanto homem teria exeprimentado o desconhecimento e a impotência. Mas ninguém experimenta ser impotente sabendo a priori que não o é. Quanto a identificar dois a um, confundir a diferença na igualdade, é o mesmo que recusar o raciocínio. Chutar tudo isso para mistério é apenas a retórica na sua plena nulidade.

Há com efeito um eterno perigo, que é o perigo do enfadamento.
Quando o espírito começa a desprezar o detalhe, ao ponto de não se interessar por nada, então começará a aparecer uma sede do desconhecido. Porque se tudo passar a ser entendido como previsível e óbvio, então a falta de imprevisibilidade começará a aparecer como uma seca no espírito. 
Até neste ponto, a língua portuguesa ao usar a expressão "... isso é uma seca!" revela um aviso de sede, que normalmente é remetido ao emissor, ou que também pode ser falta de abertura do receptor para a novidade ou para a complexidade.

O enfado ocorre, por exemplo, quando mesmo que um emissor mude muito a emissão, considera o que recepciona como sendo praticamente o mesmo. É a situação típica em que há sucessivas reclamações contra uma prepotência, sem qualquer efeito. Por muita razão que o reclamante tenha, o sistema ignora-o sucessivamente. Nalguns casos, o reclamante exaspera ao ponto de recorrer a medidas mais drásticas, que podem incluir terror.
Por exemplo, os judeus zionistas reclamavam pelo estado de Israel, e não o conseguindo de outra forma, recorreram a atentados terroristas. Depois, de forma similar, os palestianos reclamaram contra Israel, e considerando que não estavam a ser ouvidos, recorreram a atentados terroristas...

Quando o indivíduo se dedica e concentra num objectivo, tende a tomar toda a recepção interpretada nesse propósito.
Se não consegue ser ouvido por via pacífica, tende a usar cada vez acções mais drásticas.
Numa sociedade que quer ignorar ou descartar discordâncias, esse será um caminho frequente.


Necessidade de horror?
Será pergunta no passado, porque a continuação parece opcional.
A pergunta pode ser colocada no sentido oposto... ou seja, poderia não ocorrer?

elencámos situações em que a natureza exerce o seu horror de forma cruel, quando serve uns animais como repasto a outros, ou como os faz perecer de fome, sede, etc. Sabendo o que sabemos, a esta possibilidade bastava ser possível, para nada haver que a impedisse de acontecer.

O espírito humano ao adquirir a possibilidade de fabricar coisas positivas, nada tinha que o impedisse de aproveitar essa fabricação, essa mesma genialidade, para o lado negativo, para o lado sombrio.

Podemos requerer uma empatia humana sempre presente, mas a natureza desafia toda a empatia, quando a ausência dela é uma possibilidade igualmente viável.
Aliás, houve casos em que uma maneira de combater o horror foi ficar completamente insensível a ele, foi aprender a viver com ele. Simplesmente essa falta de empatia para com o próximo, acaba por não ter sucesso social, porque é uma recusa de entendimento social.

A irmandade da humanidade, apesar de ser falsificada, com objectivos apaziguadores e inibidores para uns, e proveitosos para outros, teve a virtude de se tornar uma noção consensual no politicamente correcto.
Simplesmente essa irmandade será sempre desafiada, enquanto for aquilo que é... um projecto utópico localizado sem qualquer substrato ou vontade de implementação global.

Enquanto o uso de terror ou horror continuar a funcionarn uma lógica de causa-efeito, não há qualquer razão para desaparecer. Se nem tão pouco poderia desaparecer como fenómeno pontual, ilógico, e imprevisível, muito menos irá desaparecer enquanto fenómeno produtivo que pode provocar uma reacção quando outra não tem viabilidade de acontecer.

Ou seja, a necessidade de horror será tanto maior quanto a sociedade, dominada por alguns "irmãos" se for tornando cada vez mais cega e surda às mensagens enviadas pelos outros.

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