Alvor-Silves

sábado, 21 de maio de 2016

Discurso do mééé - todo! (4)

Já perdemos algum tempo a falar sobre o 1, e iremos agora falar sobre o 2.
Sobre o 1, que é o solipsismo, há ainda mais a dizer, mas para não bater na mesma tecla, passamos ao 2, que é um dualismo, mas não é o dualismo corpo-espírito. 
A quantidade 2 que aqui interessa notar, resulta da diferença entre o próprio e tudo o resto, ou seja, da diferença entre o "eu" e o "não-eu". Este "eu" não diz respeito ao corpo, porque mesmo quando sonhamos não deixamos de evidenciar um "eu" que é o nosso personagem no contexto do sonho, e que é confrontado com um "não-eu", ou seja é confrontado com um desenrolar de acontecimentos, que não controla.
Características idealizadas dos 2 hemisférios cerebrais (imagem)
Indo para um contexto que será mais simples, como se entende que o cérebro tem 2 hemisférios, poder-se-ia admitir que um hemisfério estava encarregue de fazer o papel do "eu" enquanto o outro hemisfério tinha a cargo construir o cenário do "não-eu", no sonho. Ou seja, o hemisfério do "não-eu", o subconsciente, ficaria encarregue de construir a ilusão que apresentaria ao hemisfério do "eu", o consciente... e que este aceitaria como realidade momentânea, só depois entendida como sonho. Isto pode até ser uma teoria psicológica, se alguém se tiver lembrado dela.
Não interessa. Interessa sim que há dois, e apenas dois... observador e observado.
No solipsismo estes 2 são induzidos a serem encarados como 1, porque por influência social se remete ao próprio o duplo papel. Ou seja, não só se admite que o próprio sonhou, como se remete a si a construção do sonho; usando a personagem mágica do "subconsciente" para varrer a contradição para debaixo do tapete. E é uma contradição porque o "eu" não pode ser identificado ao que não controla.
Por isso, considerarei apenas como "eu" a parte consciente, sobre a qual o próprio tem algum controlo, no sentido em que percebe o nexo de causalidade que leva às suas acções. A ideia da autoria do sonho ser remetida ao próprio não faz qualquer sentido, ou digamos faz tanto sentido quanto depois o próprio achar, enquanto solipsista, que é autor ou criador de toda a realidade, quando praticamente não controla rigorosamente nada.

Ora um sonho pode ser suficientemente complexo, e somos confrontados com cenários onde há mais que um personagem inteligente que interage connosco. Portanto esse "não-eu" que constrói o sonho, ainda que seja apenas um criador, pode manifestar-se como diversos personagens. 
No entanto, ao invés de pensarmos como habitualmente, não atribuímos a cada personagem que nos aparece no sonho uma individualidade própria. Ao contrário, somos induzidos a pensar que todos os personagens são apenas criação de uma única entidade - o tal "subconsciente". 
Curiosamente, em situação inversa, sendo confrontados com diversos personagens na realidade, ou seja diversas pessoas, desde familiares, amigos ou desconhecidos; ninguém sequer conjectura que todos esses personagens sejam apenas resultado de uma única entidade; que se manifesta de diversas formas. Quando falamos de realidade deixa de haver qualquer "subconsciente" a criar e controlar diversos personagens. Ou seja, por semelhança, assumimos que os outros são iguais a nós, e só em raras situações alguém pensará como os gregos - que consideravam que os deuses se poderiam manifestar como humanos.

Descartes, reconhecendo a sua falta de controlo, e a existência de inteligência que não é sua, remete rapidamente todo o seu "não-eu" para a noção de Deus. Portanto, é como se Deus fosse identificado ao papel de "subconsciente", em completo controlo da criação e do desenrolar do sonho... que no caso divino seria toda a realidade.
Descartes não diz isso, mas dificilmente poderia argumentar saber distinguir o discurso do padeiro do discurso divino... afinal, enquanto ser omnipotente na criação e controlo, Descartes nunca poderia negar a Deus a possibilidade de se manifestar sob que forma fosse. Há ainda registo de quem tivesse identificado o discurso de estranhos a um discurso divino, porque simplesmente a complexidade do discurso não fazia sentido naquele personagem - acontece por vezes com crianças.
Portanto, a dualidade manifesta-se pela existência do "eu" e do "não-eu", mas é algo ilusório pretender separar o "não-eu" em diversos personagens, cada um com identidade diferente. É claro que cada um sabe que é diferente, mas não tem forma de garantir a um terceiro que está nas mesmas circunstâncias.
Por exemplo, podendo ter aqui diversos comentadores, objectivamente não tenho qualquer forma de concluir que há mais do que um, já que um apenas basta para se fazer passar por muitos.

No entanto, há uma outra entidade que nos é oferecida, e que só negamos se quisermos ser cegos.
Essa 3ª entidade é composta por todas as coisas imutáveis... que não dependem do nosso controlo, nem do controlo de mais ninguém. A 3ª entidade é a linguagem, ou melhor as noções abstractas onde assenta a nossa linguagem.
Podemos duvidar de tudo, mas nesse caso podemos duvidar dessa dúvida?
Temos a noção dos números, e então quem se atreve a dizer como se termina com a existência do número 1, 2 ou 3? Ou mesmo, quem ousa negar que 1+2=3 é uma relação imutável?
A partir do momento em que essas noções abstractas se formaram, nunca mais será possível terminarem... mesmo que se proíba a linguagem, ou que se liquidassem todos os seres pensantes, estas noções uma vez pensadas não têm forma de terminarem.

Por estranho que pareça, aparece normalmente quem ouse questionar o inquestionável... Descartes sente necessidade de justificar mesmo a sua existência com o pensamento. 
Górgias favorecendo a sua tese níilista, ao duvidar de tudo, argumentou que isso não implicaria que essa dúvida existisse... porque não poderia ser partilhada! Ora, isso só mostraria que Górgias tinha uma estranha noção de existência que dependia da partilha... nada mais.

Acontece que o pensamento dominante é (quase) sempre o pensamento exterior, onde o indivíduo se vê induzido a aceitar tudo o que é exterior, e a duvidar de tudo o que é sua verdade interior.
Esse pensamento exterior não tem outra forma de se manifestar que não seja forçando cada indivíduo a pensar em nome desse exterior. Assim, a visão externa, que reduz o indivíduo à sua máxima insignificância, como ponto minúsculo num universo imenso, como um espirro num tempo infinito, só consegue captar a atenção do indivíduo retirando-o do mundo interior, onde não se veria ameaçado por nada, e ameaçando-o com as vicissitudes deste mundo.
O nosso "eu" é o "não-eu" do "não-eu", ou seja somos o complemento, ou opositor natural a si. E se o "não-eu" evidencia a todo o momento que pode terminar connosco num simples colapso cardíaco, dispomos de toda a racionalidade para duvidar que isso seja assim... porque simplesmente também não sucumbimos quando o famoso "subconsciente" nos coloca um sonho em que deveríamos concluir a nossa morte. Simplesmente acordamos de um pesadelo, nada mais.

Ora, o mais importante neste acordo do acordar, é que aceitamos uma realidade comum, mas com regras... não se trata de dar a um qualquer Autor a simples faculdade de inventar de uma peça ou um filme, sem nexo, por mais cor-de-rosa que se prometa ser o final. 
Essas regras limitam profundamente a necessidade de um criador de conteúdos, para não dizer que dispensam totalmente esse papel. Dispensaria por completo, se o universo fosse determinista, mas como o universo admite um caos residual, significativo, haverá um espaço de imprevisibilidade cuja origem não se poderá atribuir, e cada um pintará esse espaço em branco com as cores que quiser.

No entanto, como referi, na dualidade haverá sempre a tentação de reduzir as condicionantes objectivas a zero... e o argumento é simples - quanto menos regras físicas, maior liberdade criativa. Só que essa relação a dois entre o "não-eu" e o "eu" deixa a parte mais fraca completamente nas mãos da parte mais forte. Assim, tal como no convite de uma droga que promete experiências inolvidáveis, o percurso desse sonho "a dois" tende a ir parar em ressacas cada vez piores.


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