Alvor-Silves

sexta-feira, 20 de maio de 2016

Discurso do mééé - todo! (3)

Convém dar o devido destaque a uma guerra não declarada entre a visão externa e a visão interna. Desde que nasce que o indivíduo é esmagado pela visão externa, em que se vê forçado a agir em resposta às condicionantes exteriores. O mundo existia antes de si, existirá depois de si, e o seu papel no processo será ínfimo ou diminuto.
Isso contrasta profundamente com a sua visão interna - o seu universo interior roda em torno de si, onde é o elemento mais importante, e afinal tudo o resto é medido em função da importância que lhe dá. O solipsismo pode parecer o extremo dessa visão auto-centrada, em que só o próprio existe, mas nada tem a ver com o egoísmo... e até se lhe opõe, de várias formas.
O egoísmo é uma resposta interior de quem adopta a visão externa. O egoísta tem uma visão limitada de si no contexto exterior, e no esforço de ganhar importância, reduz a importância de tudo o resto. Mas não reduz a importância de tudo o resto por não acreditar na sua existência, fá-lo numa tentativa frustrada de ganhar importância, por admitir que não a tem. Isso opõe-se claramente ao solipsismo, onde o indivíduo centrou em si todo o destaque, e portanto é-lhe indiferente o destaque externo que tem. Não reduz importância ao restante, porque vê esse restante também como produto seu. Nesse desvio de visão interna, atribui ao que não controla um produto do "seu subconsciente", usando uma nomenclatura moderna.

Essa noção de subsconsciente é directamente importada da visão externa. Porquê? Porque a versão exterior dos acontecimentos imputa os seus sonhos, as suas ilusões, a um produto do próprio. Portanto são os outros que convencem o indivíduo que ele é dono e autor dessas ilusões. Porém, como o próprio sabe que não o é conscientemente, delegou-se a autoria numa entidade chamada subconsciente, onde foi arrumada toda a autoria dos sonhos. Também num sonho o indivíduo é confrontado com uma realidade que o circunscreve e domina, em tudo análoga à habitual realidade. Assim, por influência social, o solipsista aceita-se como autor e dono dos sonhos que presencia, e logicamente não vê razão objectiva para que seja diferente o que se passa com a realidade.

As coisas passaram-se de forma diferente na sociedade oriental, especialmente hindú, ou de influência budista, e na sociedade ocidental. Na sociedade indiana é razoavelmente fácil encontrar pessoas com um discurso solipsista, até porque o budismo convidou a essa reflexão interior, desligada do exterior - cujo extremo levou aos ascetas.
Na sociedade ocidental isso foi combatido... houve sempre a tentativa de combater a visão interna, solipsista, porque seria altamente contra-produtiva. Aliás, o que se descobriu no ocidente é que socialmente havia interesse em fomentar uma visão egoísta... especialmente após a Idade Média. Os indivíduos querendo exibir os seus méritos para ascensão social, fomentavam o aparecimento de produtos e ideias para o bem comum, ou melhor para o bem dirigente, ainda que tivessem como motivo apenas o bem próprio.
No hinduísmo, surgiram assim vertentes monistas, solipsistas, como o Advaita Vedante, ensinado por Sankara, um guru do Séc. VIII, que visava uma unidade da realidade como "Brahma" em oposição às ilusões aparentes, denominadas como "Maya" (também uma divindade hindú, e o nome da mãe de Buda, para além de múltiplas atribuições ocidentais ao mesmo nome - mãe de Hermes, divindade ligada à agricultura, etc.).
 
Na filosofia oriental Maya corresponde ao ilusório. 
"Maya - o espelho de ilusões";  suástica - símbolo do Jainismo, que combate Maya - a ilusão. 

Sobre a dualidade entre ilusão e realidade, os filósofos gregos entretiveram-se abundantemente.
Como extremo do solipsismo, encontramos Parménides, que chega ao ponto de negar a própria existência do tempo. E, é claro, em última análise é contado que os opositores lhe atiravam pedras para contrariar experimentalmente a sua oposição ao movimento. No entanto, e num notável esforço de sistematização, Zenão de Eleia, discípulo de Parménides, enunciou uma série de paradoxos, que demoraram mais de dois milénios a serem esclarecidos matematicamente. Basicamente a questão da inexistência do tempo foi depois rebuscada no Séc. XX por McTaggart, na sequência do idealismo de Hegel. Mais uma vez, como em tantas vezes, foram retomadas teses anteriores, milenares, com novas noções, que pouco ou nada mudavam o problema ou a discussão original.

A questão de Parménides é muito mais facilmente perceptível no contexto do solipsismo, porque um problema solipsista imediato tem a ver com a origem do próprio e a sua mudança no tempo.
Ou seja, o solipsista pode fiar-se tanto na memória, como em qualquer outra coisa... afinal também a memória facilmente nos engana. Um reduto final consiste então em argumentar que só existe o conhecimento do momento presente, e assim negar a mudança, o tempo.
Levado noutro extremo, o sofista Gorgias, também tido como solipsista, argumentaria que nada existia, porque nada de objectivo poderia ser comunicado a outros, o que poderá ser entendido como uma forma de níilismo.

Indo ainda mais atrás, vemos Pitágoras, ou os pitagóricos, afirmando que a vida nada mais era do que um espectáculo que se desenrolava, e que estávamos condenados a assistir como espectadores. Não participaríamos como actores, entendendo que as nossas acções fariam parte do enredo já escrito.
Curiosamente, aquilo que se nota é que quanto mais regredimos no tempo, mais sabedoria vemos... já que muito provavelmente os que se seguiram não perceberam o que os anteriores tinham dito, e serviram praticamente para lançar a sua confusão no que seria claro. Afinal a própria conclusão pitagórica não é diferente de uma noção, certamente muito anterior - a noção de destino.

Tendo feito este enquadramento, irei agora expor o que vim concluindo aqui neste espaço.
Conforme já referi, o meu solipsismo militante, ao estilo de Parménides ou Pitágoras, não resultou deles, ao contrário, o processo mais simples foi sempre inverso... só depois de tirar as minhas conclusões é que as entendi como análogas a conclusões alheias - ainda que essa questão de autoria não interesse para nada - basta notar que para um solipsista, a autoria seria sempre sua, seja pelo consciente ou inconsciente.

Para o que interessa, a conclusão de Pitágoras é a correcta, só que abreviando o escrito, ele não nos deixou explicados convenientemente os muitos porquês. Essencialmente tudo parte do paradoxo do pensador, que enunciei há uns cinco anos. Ou seja, num caminho completamente oposto ao solipsismo, fui forçado a concluir que nem o nosso pensamento nos é interno... aplicando-se isso a qualquer ser pensante.

Afinal, o primeiro passo para ficarmos livres é percebermos o que nos prende, e porquê!

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