Alvor-Silves

quinta-feira, 28 de julho de 2011

Sapiens Sapiens

Por vezes chego a ter quase 100 janelas abertas, que poderiam dar para uma meia-dúzia de temas, e acabo por escolher um tema diferente... é o caso hoje, retomando uma conversa de há um ano atrás, com a Maria da Fonte.

Na estória da evolução humana, faz-se uma distinção entre Homo Sapiens e Homo Sapiens Sapiens.
Normalmente evito falar aqui de aspectos filosóficos, mas como neste caso são importantes na história, é conveniente clarificar algumas coisas, de que ninguém fala.

A matéria associou-se em diversas estruturas, mas podemos considerar apenas três grupos.

(1) Não animal. Inclui-se aqui tudo o que é mineral e vegetal. A estrutura interna destes corpos não define nenhuma acção própria. Não há nenhuma estrutura de decisão interna, por falta de qualquer sistema nervoso.

(2) Animal (não sapiens). Um animal define-se pela existência de sistema nervoso interno, que lhe permite assimilar informação externa, e com base nisso decidir uma acção internamente... que se transforma numa acção, normalmente num movimento.

Antes de passar ao terceiro grupo, é importante dizer algo acerca desta diferença, já que isto está longe de ser uma divisão biológica simples. Junta-se no mesmo grupo insectos, peixes, aves, répteis, mamíferos, etc... Este problema é normalmente varrido para debaixo do tapete, mas o próprio Darwin o terá reconhecido como objecção à sua teoria de evolução, dado que havia uma evidência de um grande salto entre o período pré-Câmbrico, onde não havia animais, e o súbito aparecimento de animais nos registos fósseis. Isto é conhecido como a "Explosão" Câmbrica... já que, tal como "a vida", os animais parecem ter surgido "do nada".

Formação da blástula nos animais, que dará a pele externa,
segue-se a formação da gástrula, que produz a pele interna, e o tubo digestivo.

A necessidade de sistema nervoso está ligada a uma mudança topológica importante... o corpo dos animais desenvolve-se em torno de um tubo - o tubo digestivo. Isto só é possível em 3 dimensões... se existissem apenas duas dimensões, um tubo digestivo partiria o animal em duas partes desconexas!

Nos animais a necessidade de alimento está ligada à necessidade de acção no sentido da sua procura... digamos que não bastaria que o animal estivesse à espera que o alimento "lhe viesse parar à boca"! Seria mais eficaz deslocar-se, e controlar esse movimento... isso requeria um processo de decisão interna, que ficou definido por um sistema nervoso (do mais simples ao mais complicado).

Esse processo de decisão interna poderia ser inicialmente simples e até simulável computacionalmente. Há nos animais conjuntos de acção-reacção que são previsíveis, mas nem sempre. Digamos que estamos ainda longe de reduzir a acção de muitos animais a simples leis matemáticas. Aliás, a simulação computacional ainda deixa a desejar mesmo no que diz respeito ao crescimento dos vegetais.

Há uma outra diferença dramática que terá ocorrido. Uma coisa é os animais alimentarem-se de nutrientes ou outros vegetais, outra coisas é os animais passarem a alimentar-se de animais... 
Isto terá complexificado muito os sistemas nervosos. Para além de decisões baseadas numa simples procura de alimento, os sistemas nervosos entraram em competição de sobrevivência. Teriam que prever modos de ataque/defesa relativamente a outros animais.

Para prever as acções de outros animais, não bastaria um sistema nervoso, é preciso simular internamente uma realidade, e ajustar as acções com base nessa simulação. Começando nos predadores, mas também estendido às presas, houve necessidade de um cérebro.
O cérebro, com base nos dados dos sentidos, construía a sua própria simulação de realidade, com vista a antecipar o passo seguinte. Essa simulação simplificada constituía a base para uma realidade por antecipação. As acções dos animais deixaram de reflectir apenas a realidade, passaram a reflectir ainda a sua previsão da realidade futura, e para isso seria necessária uma memória. 
Não necessariamente uma memória literal, mas comprimida pela interpretação. Distinguimos ainda esta memória que requer aprendizagem individual, de um processo de interpretação inato que pode reflectir uma aprendizagem da espécie, plasmado nos genes. A aprendizagem individual será feita pela experiência de vivência particular, e é especialmente notada em animais que têm ainda uma infância acompanhada pelos progenitores.
Cognição simples nos animais, que não requer memória individual.
Cognição nos animais, em que a memória individual influi na interpretação.

Esta inclusão de memória permite ao animal prever uma situação funesta, por ausência de soluções na sua interpretação e no resultado de qualquer sua acção. Há ainda uma capacidade de interagir com outros elementos, e o desenvolver rudimentar de uma linguagem. Essa linguagem reflectirá informações directas sobre a sua interpretação - uma das acções pode ser justamente a vocalização.
Há, no entanto, um aspecto importante... o próprio indivíduo não é objecto de interpretação.

(3) Animal sapiens.
O terceiro caso reflecte justamente a situação em que o intérprete (ou o interpretado) pode ser alvo de adicional interpretação. Aqui o único caso conhecido será o do Homem, mas é indiferente se for ou não único... e estabelecemos o mesmo esquema:
A novidade (mais uma vez misteriosa... e exclusiva do Homem) é a colocação de um nível de interpretação sujeito a interpretação.
A interpretação final, que determina a acção, tem em conta que há um interveniente (o próprio) que interpreta a informação actual em conjunto com a que está armazenada na memória.
Na prática são colocadas ao mesmo nível todas as informações, mas o indivíduo tem consciência do seu processo interpretativo, tendo consciência de si (do eu) na formação do raciocínio.

Não vou entrar em mais detalhes. É fácil perceber que colocar um novo nível de interpretação não adianta nada ao processo cognitivo... mas pode ter consequências.

O Homem foi classificado como Sapiens, mas não apenas... para designar a nossa subespécie (a única sobrevivente...) foi denominado Sapiens Sapiens! Ora, conforme eu referia há um ano, isto sugere conhecimento sobre o conhecimento... o que seria correcto, se atribuíssemos a outros animais a sua capacidade de conhecimento.
Porém, pode tratar-se doutra coisa. Quando temos a capacidade de misturar a interpretação com a informação da realidade e memória, podemos transmiti-la de forma distorcida. Como a linguagem é apenas resultado de uma interpretação individual, ela pode passar a criar uma farsa, em substituição da realidade. 
Para elementos numa sociedade, excessivamente dependentes da sua interacção por via da linguagem, a realidade pode passar a ficção se a fonte for falsa. Passam a viver numa realidade criada pelos elementos que difundem a informação. 
Conforme referimos aqui, há um ano, a alegoria da caverna de Platão(*) alertaria apenas para a ilusão sensorial? Não procuraria ser antes uma mensagem sobre a ilusão política, avisando sobre a nossa credulidade na informação e formação social?

Como terminar com esse ciclo vicioso de mentiras, em que as acções são determinadas pela deformação informativa? O ponto principal será sem dúvida restabelecer uma fonte informativa que não se destine a condicionar os cidadãos a uma ficção, ou a transmitir mensagens codificadas para determinados intervenientes. Isso não é acção individual isolada, cada interveniente tem que ter capacidade de assinalar de onde provém a fonte que revela, e até dar a sua honesta opinião sobre ela.
Caso contrário... ficamos atónitos à espera de ver até onde é que a farsa tem capacidade de nos levar!


Nota:
(*) Na linha de Platão, segue-se como discípulo Aristóteles que foi tutor de Alexandre Magno. Por isso, é mais ou menos claro que o problema tinha sido colocado a Alexandre, e que a sua ofensiva contra o Império Persa, e depois na Índia, pode ter tido como objectivo uma resolução tempestiva. Tão tempestiva quanto a duração do seu reinado... aliás nenhum dos sucessores retomou esse desígnio.

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