Alvor-Silves

sexta-feira, 28 de junho de 2019

Do Cavalo ao Cavaleiro e ao Cavalheiro

Não consta terem os homens tentado deslocar-se em cima de mamutes, nem em cima de leões, tigres, ou rinocerontes. Consta ainda que os primeiros cavalos eram pilecas pouco eficazes, parecidos com zebras, ou mesmo com burros.

 
Um cavalo primitivo desenhado numa parede da gruta de Niaux
Garrano no Parque Nacional da Peneda-Gerês.

Os desenhos nas grutas francesas, de Lascaux ou Niaux, estão longe de exibir a elegância que vemos hoje aos cavalos modernos, porque os mais altos e robustos parecem ter resultado da primeira engenharia genética. Curiosamente é raro vermos cavalos primitivos nas grutas espanholas, onde o mais habitual serão os bois/touros. Quanto às grutas portuguesas, por enquanto estamos limitados a saber dos desenhos equestres do Vale do Côa.

Domesticação
A domesticação animal terá seguido as seguintes vertentes principais:
- Bovina. Que levou de selvagens auroques, ou similares zebus, a pacíficas vacas.
- Outra vertente bovina, que é caprina e ovina. Poderá resultar da cabra selvagem ou muflão.
- Suína. Que terá resultado dos javalis.
- Equina. Que sairá de zebras e garranos afins. 

Quanta paciência e quanto tempo terá demorado este processo de domesticação?
Será uma tarefa ocasional de poucas gerações, ou um processo prolongado de muitas gerações?
Colocados no meio de uma África selvagem, quantas espécies conseguiríamos domesticar de raiz, por exemplo, ao ponto de usar como cavalos os descendentes de um grupo de zebras?

Alguns estudos apontam que a domesticação bovina poderá ter começado com um grupo de auroques criados na Mesopotâmia, há 10 mil anos, dos quais foi traçada alguma ascendência genética, para todos os bovinos (bos taurus) actuais. Parece-me uma grande simplificação do problema, que tende a esquecer a inundação provocada pelo degelo seguinte à Idade do Gelo, ou seja, de forma simplificada, tende a esquecer o dilúvio e a arca de Noé.

Há ainda a questão da domesticação de canídeos e felinos, que terá sido diferente. Os lobos eram já gregários com hierarquia social, e a colocação do homem como lobo-alfa poderá ter facilitado o processo. Será o caso mais antigo de domesticação, remontando a 15 mil anos, na Europa (ver cão de Oberkassel). 
A domesticação de gatos terá sido inversa e não terá sido procurada pelo homem... o mais natural é que os próprios felinos tenham procurado no homem um parasitismo de subsistência, após a agricultura, devido à grande presença de roedores no armazenamento de cereais. Alguns leopardos são igualmente simpáticos para os homens (por exemplo, as chitas). 
Numa família, enquanto os cães identificam o dono, os gatos identificam o escravo - aquele a que permitem que lhe faça festas, etc. Os cães exibem um raciocínio directo masculino, de utilidade, enquanto que os gatos têm uma inteligência indirecta, tipicamente feminina, que visa mais o aproveitamento.

Houve outras domesticações, uma delas a aviária, nomeadamente de galos, de que já aqui falei, e creio que a sua origem é claramente da região indonésia, tendo sido trazida para Europa pelos celtas, gaulos da Gália, da Galícia, de Gales, da Galécia ou da Galácia. 

Do cavalo ao cavaleiro... e do porco ao porqueiro
Qual a diferença?
A diferença seria entre ter um cavalo ou ter um porco, não considerando a sua criação.
Tivesse sido o cavalo um animal destinado ao consumo da sua carne e não haveria provavelmente grande diferença entre uma coisa e a outra. 
No entanto, o cavalo passou a ser crucial no combate.
Cavaleiro passou a ser uma faceta da nobreza, enquanto o porqueiro uma faceta popular. Isto pelo menos até ao momento (fim do Séc. XX) em que alguns porqueiros ficaram mais capitalistas, na venda de carne de porco, do que os cavaleiros na preservação da tradição equestre. 
Com pequeno desvio, lembrança da tradição medieval da cavalaria, ficou-nos ainda o Cavalheiro.

A grande diferença é que quando o homem conseguiu domesticar o Cavalo ao ponto de meio de transporte, capaz de tornar a sua deslocação quase 10 vezes mais rápida, todo o enquadramento social teria que mudar.

Para mostrar que tal coisa nem sempre é fácil, bastam 8 segundos nos rodeos americanos, para ser colocado fora do dorso de um touro, ou de um cavalo (bronco). Portanto, será de prever que a criação de cavalos e equitação tenha sido fruto de imensa paciência e estabilidade. Houve a capacidade de conduzir cavalos, elefantes e camelos. Isto permitiu uma vantagem considerável ao proprietário de tal espécime.
Para colocar as coisas em perspectiva, suponhamos que queremos domesticar uma variante de urso, de tal forma que seja possível chegar ao ponto de o montar e conduzir nas suas capacidades guerreiras. Quanto tempo demoraria esse projecto, supondo ser realizável? Que se saiba não houve grande sucesso na domesticação de ursos, mas sendo tão comuns nas florestas europeias, certamente que foi tentado.

De forma notável, e mostrando algum contacto e comércio global primitivo, o mesmo tipo de animais que foi domesticado numa parte do mundo foi semelhante ao que foi domesticado na restante, com possível excepção na domesticação de cobras (um assunto algo submerso). 
Note-se que há um foco que aponta origem de domesticação de bovinos, suínos, caprinos e ovinos, para uma zona central Euro-asiática, entre 10 e 8 mil a.C. o que coincidirá com uma provável inundação de toda a orla marítima pelo menos até 300 metros de profundidade, e que terá atingido áreas hoje com 200 metros acima do nível do mar. Os sobreviventes desta inundação seriam residuais de uma fictícia arca de Noé.

O cavaleiro
A presença de cavaleiros em figuras rupestres é rara, mas foi encontrada em Bhimbetka, na Índia, com uma datação até 2000 a. C. A presença de cavalos em batalha é atestada desde o confronto com os Povos do Mar, e em particular o uso de carros puxados por cavalos, em combate, está presente nas inscrições relativas à Batalha de Kadesh, entre egípcios e hititas.
A figuração de cavaleiros montados, que requer uma técnica equestre mais cuidada, aparece posteriormente, como por exemplo neste friso assírio (onde quem dispara o arco, não é quem conduz o cavalo - sugerindo o uso de parelhas de cavalos).
 Friso assírio (séc. VIII a.C.) mostrando o uso de cavalaria.

O registo mais comum era quase sempre o de tropas apeadas, e mesmo na Grécia, até que as tropas macedónias ganharam protagonismo, com Filipe e Alexandre Magno, era raro saber-se de tropas montadas.
Aliás, a esse propósito recordamos o texto de Calisto Barbuda,

onde se elabora sobre a hipótese de na Ibéria ter aparecido a técnica equestre:
"Em nenhum outro local existem evidências da existência de cavalos montados há tanto tempo. Embora noutras paragens, como na Grécia ou no Egipto, também já se utilizasse o cavalo na guerra, essa utilização era sempre feita como animal de tiro, puxando os carros de combate. Isto permite-nos colocar a hipótese da origem ibérica da própria equitação. A confirmar-se, o cavalo Peninsular seria, então, o primeiro cavalo de sela conhecido."
De facto é remetida uma certa fama existente entre gregos e romanos de que os cavaleiros e a cavalaria ibérica seria particularmente apta no combate, tal como aconteceu com a cavalaria numida (de origem maura-africana que é posterior).

Equites
O nome equites refere à classe patrícia romana, cuja principal característica era a posse de cavalo, e que em termos hierárquicos apenas estaria abaixo da classe senatorial de Roma, que era eleita de entre os seus membros. 
A equidade entre os seus membros era a "egualdade", no sentido em todos seriam "eguais", possuindo "éguas", ou cavalos. Portanto, falamos de uma igualdade elitista, tal como depois foi entendida no quadro da cavalaria, quando se referia ao carácter supostamente equalitário dos cavaleiros da Távola Redonda. Seria o carácter de igualdade entre pares, entre cavalheiros, entre cavaleiros.

O código de conduta exigido aos cavaleiros, especialmente durante a Idade Média, tornou que uma característica lendária associada ao cavaleiro, seria ser também um cavalheiro... algo que foi mais desenvolvido no imaginário quando os cavalos perderam a sua importância, já no Séc. XIX.

Cavalos em Tróia
Há alguns heróis trazidos por Homero no enquadramento da Guerra de Tróia, mas não seria propriamente uma característica fulcral dos aqueus, primevos gregos. Se Aquiles teria arrastado o corpo de Heitor, este é puxado por uma quadriga nas representações muito posteriores, que ilustram esse episódio:
Ilustração de vaso posterior (Séc. VI a. C.), mostrando Aquiles numa quadriga a arrastar o corpo de Heitor.

Até essa altura os heróis gregos não são propriamente conhecidos enquanto cavaleiros. 
O episódio do cavalo de Tróia é muito provavelmente ilustrativo de que os gregos podem ter aprendido em Tróia a arte do combate montado, que seria muito mais uma arte troiana do que grega. Essa poderia ter sido uma vantagem que Tróia manteve até ao momento em que a força grega aproveitou a presença de cavalos, domesticados na redondeza, em seu proveito... ou seja, através de Ulisses, teria sido mesmo desenvolvida uma cavalaria grega capaz de ali competir com a troiana. Isto poderia então ter dado origem ao mito do Cavalo de Tróia.

O uso de cavalos cada vez mais seleccionados e apurados para o confronto militar poderá ter tido origem nessa transição entre a Idade do Bronze e a Idade do Ferro. Convém lembrar que os mitos gregos sobre os centauros podem ter justamente origem numa estilização de tribos de cavaleiros violentos que amedrontavam as primitivas tribos gregas.

Se o nome "centauro" sugere mais uma relação com o touro, com efeito para além do Minotauro (cabeça de touro, corpo humano), o mito associado a Aqueloo, deus dos rios, apresenta-o com cabeça humana e corpo taurino (em oposição ao Minotauro). É particularmente representado em Gela (ou Celas), em muitas moedas sicilianas
Moeda siciliana de Gela (Celas), ilustrando um cavaleiro, e na outra face, Aqueloo, deus dos rios.

Rapariga conduz uma vaca.



Também nestes casos se poderá colocar a possibilidade da figura de Aqueloo corresponder a uma eventual figuração de outras tentativas de conduzir animais... neste caso de gado bovino, o que é possível de ser conseguido, com paciência, conforme é mostrado na imagem ao lado (com ligação ao vídeo incluída).
Ou seja, tal como no caso dos cavalos, também no caso do gado bovino, nem todos os animais reagem violentamente à presença de um peso incómodo no dorso. A condução bovina parece ter ainda um lado perfeitamente acessível.


Interessa especialmente notar que, mesmo no caso de tropa de combate, o uso de cavalos estava praticamente reservado à nobreza e fidalguia, deixando situações de desvantagem por mero preconceito social. Só já depois do Séc. XVII é que começou a ser popular a instrução de tropas com uma parte de cavalaria plebeia - por exemplo, o caso dos regimentos de dragões.
Com efeito só com a popularização do coche, inicialmente muito reservado à nobreza, especialmente a partir do Séc. XVIII, é que os cavalos começam a ser usados como um transporte mais normal e não apenas propriedade distintiva de uma classe abastada. Quando chegamos ao Séc. XIX já teremos colonos ou comerciantes vulgares como felizes proprietários de cavalos, e não de meras pilecas para trabalho pesado.

A imagem do cowboy viajante pelas paisagens do Oeste americano é o último símbolo de liberdade (e perigo) que seria encontrado pelos colonos exploradores daquelas paisagens. O cavalo em breve seria substituído pelo automóvel, quando a sociedade conseguiu enquadrar a mobilidade humana com naturalidade. Nunca antes o homem teria sido movido pelo desejo de passear, sem um qualquer propósito de utilidade subjacente.
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29.06.2019

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