Alvor-Silves

sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

Pilatonismo



No Testamento de João (§18:38), Pilatos deixou Jesus em silêncio, com uma questão "crucial":
- O que é a verdade?

Interessa-me pegar de novo no tema da "verdade", ao reler o texto anterior "Aletheia"... especialmente pela pequena frase que escrevi então:
- "A ilusão tem autor, a verdade é de todos!"

A resposta à pergunta de Pilatos não foi respondida, porque se quisermos fazer uma análise objectiva ao conteúdo filosófico, veremos que os evangelhos não vão além do que seria o conhecimento da época. A pseudo-resposta identificará a "verdade" à própria pessoa divina, Jesus.
Como cada pessoa tem a sua verdade, na Antiguidade o Rei era o ponto de referência na disputa entre as verdades individuais, enquanto último juiz. É assim que Jesus se apresenta, dizendo que o seu reino não era deste mundo, que "nascera para dar testemunho da verdade, e que os que apoiavam a verdade ouviam-no".
Fica-nos o mero argumento de um solipsismo superlativo.

Pilatos porém, responde à questão, na sua decisão. Decide, como verdade, a inocência do réu.
Ali, era Pilatos que detinha a figura de Rei, último juiz, era ele afinal o "dono da verdade".
Assim, contra um cristianismo espiritual que clama por justiça de outro mundo, o "pilatonismo" surge opostamente como a justiça pragmática deste mundo, que Jesus sofrerá no corpo.
Sendo hoje, o réu seria enviado para tratamento psiquiátrico, já que frequentemente o solipsismo é mal confundido com esquizofrenia. Os evangelhos servem muito para assinalar a capacidade humana de persistir no erro, até no ponto em que Jesus opta por entrar em Jerusalém montado num asno (Lucas 19:30), para conformar com as escrituras judaicas acerca do Messias, e assim provocar a ira do sinédrio. Além disso, reportar sete pequenos milagres, afinal insignificantes factos no contexto do Império Romano, para argumentar uma dualidade entre homem e divindade, terá sido uma escolha de relato que desfavoreceu a história do homem.

Normalmente, dados os preconceitos, evitaria escrever o anterior... mas interessa dissociar a verdade de uma entidade, divina ou não. Nem tão pouco interessa saber se algum evangelho tem alguma semelhança com o que se terá passado, se foram todos invenção posterior, ou não. A verdade comum é o terreno que nos une a todos em concórdia, e a maioria das ilusões individuais são o que nos afasta uns dos outros, em discórdia.

A verdade é uma experiência social, mas o problema principal é que a ilusão também pode ser.
A mentira é demasiadas vezes usada com sucesso, para ser negligenciada, ou pensarmos que a apanhamos sempre em contradição... até porque a mentira pode dar-se ao luxo de se arrogar despudoradamente como verdade.
Quando interessa sincronizar um grupo numa mesma mentira, há uma autoria nessa patranha, e os autores procuram apagar o rasto da verdade. Poderá haver a pretensão de que, convencendo todos, a mentira passe a verdade. Sim, isso seria assim, se não existissem regras... leis científicas. O rasto da verdade não está apenas na memória de cada um, muitas vezes falível, condicionada e incerta, mas está também na memória material, física.
Porém, se uma evolução técnica pode trazer mais verdade, também pode trazer mais mentira... tanto mais, quanto os indivíduos confiarem cegamente numa tecnologia que não controlam. Porque, ao invés de confiarem na tecnologia, que não dominam, estão simplesmente a confiar em quem a detém.

A grande diferença é que a verdade é uma experiência social com um árbitro imparcial, ou se quisermos pintar a história, com um árbitro parcial, que optou por não apagar o passado. Se o passado fosse indiferente para o futuro, uma infinidade de passados diferentes teriam-nos feito chegar a este mesmo ponto. Sendo moda considerar múltiplos universos como possíveis, o problema dos universos restantes é justamente não poderem ter futuro por ignorarem o passado.

A verdade é sinónimo de universo, no sentido de ser "uni", único. Como não antevemos o futuro sem possibilidades, deixamos espaço suficiente à incerteza para prosperar, para manter algum interesse num mundo algo caótico, que de outra forma seria enfadonhamente previsível. Mas, para manter algum equilíbrio entre as coisas, quando a balança pende demasiado para um lado, a natureza actua devastadoramente pelo outro. E isso não é uma incerteza, é a certeza da existência perene, doa a quem doer, ou melhor, dou-a a quem lhe doer.

quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

do Sótão (6) «Aletheia»

Este rascunho estava aparentemente completo e pronto a ser publicado... mas por razões de que não me recordo bem, acabei por publicar a sequência de textos "Pontas da Língua" e "Com chás", e este acabou por ficar esquecido. 

______________20/6/2013____________

Por estranho que pareça, o culto da verdade não parece ter desempenhado um papel demasiado importante nas religiões e mitologias. O que era considerado correcto não estava necessariamente ligado à verdade.


Quando as estruturas se complexificam podemos ter semelhanças quase totais. A nossa percepção é limitada e rapidamente poderá não notar diferença, mas podemos treinar aquilo a que se chama o "sexto sentido". Ou seja, aquilo que nos permite desconfiar que há algo errado no enquadramento global. Não há aparentes falhas locais, mas o conjunto transmite uma ideia errada. Um caso típico foi ilustrado por Escher, numa ilusão óptica de uma escada circular que fecha:
As regras da perspectiva estão correctas, o que podemos ver em cada troço. 
Porém, olhando o conjunto intuímos que está algo errado. Essa intuição leva a analisar... a ilusão implicaria que um caminho de subida não traria nenhuma subida, concluindo-se um ilógico regresso ao ponto de partida.
Quem confiar na visão imediata, pode ignorar o raciocínio lógico, mas é esse que dá a intuição, e não está sujeito às ilusões dos sentidos - neste caso uma ilusão óptica de perspectiva única. Mudando a perspectiva, perceberíamos que se tratava doutro objecto, como nesta escultura de um "triângulo impossível":

O "triângulo impossível" em Perth (Australia).

Aletheia. 
Na mitologia grega, a verdade é representada pela musa Aletheia, sobre a qual temos uma interessante fábula de Esopo.
Prometeu, o titã que deu o fogo aos humanos, decidiu esculpir diversas musas para orientação da sua inteligência. Tinha acabado de esculpir Aletheia, e ao começar a esculpir Dolos, representando o engano, foi chamado por Zeus. Nesse entretanto, Dolos copiou a sua forma de Aletheia... mas não a tempo de completar os pés. Por isso só pela base se consegue distinguir a verdade do engano...
Talvez também ilustrando a base, Heidegger usou este quadro de Van Gogh para ilustrar um conceito de verdade através de Aletheia
Aletheia e as botas de Van Gogh

A verdade bota tudo cá pra fora...
Já falei sobre desvelar que pode ser entendido como diferente de outras verdades, que se limitam a ser um revelar consistente (ou seja, evitando contradição)... As revelações colocam novos véus, e as desvelações visam retirar os véus existentes, que causam dolo. 

Ora, os primeiros véus terão sido as parras que cobriram as intimidades de Adão e Eva... porque a verdade põe tudo a nú, inclusivé as "vergonhas". Parte da moral é um muro, um mural que nos circunda, que serve para justificar a ocultação. A moral cristã admite que o muro caia perante um Deus que-tudo-vê, mas não perante os outros.

Veritas.
No corresponde romano temos também uma divindade menor, Veritas, filha de Saturno, correspondente a Aletheia. 
A verdade é aí Vera, mas também Fera ou Bera, as ambiguidades que trocaram as letras f, v, b, ajudam a ver as opiniões. 
Também o Varão, filho primogénito, passou a ser Barão, quando não mesmo a Farao, no sentido egípcio, o irmão supremo detentor do olho de Hórus, que tudo via, o faraó.
A oposição ao Faraó veio de outro Varão, de Aarão, irmão mais velho de Moisés, e varão tomará também o sentido da "grande vara" de Aarão, guardada na Arca da Aliança.
Curiosamente nos Mandamentos de Moisés apenas é requerido que não se levante falsos testemunhos contra os próximos.
Nota-se que a verdade não terá tido um papel determinante nas religiões.

In vino veritas... não seria apenas a embriaguez que soltaria a língua para a verdade. As parras, sinal do vino, ocultaram o "vi nú", sendo barras do mural, varas da moral.


Com outra dicção...
Não há diversos tipos de verdade. A verdade é um caminho, sempre incompleto, não é nenhum ponto que se vá alcançar, é apenas uma orientação. Só há um teste para seguir esse caminho, é o teste da contradição.
A verdade é o que fica quando se elimina a contradição. 
Com outra dicção cai-se em contradição.

Pensa-se em dois caminhos possíveis, igualmente consistentes, porque se pensa que os registos podem ser ocultados, apagados. E isso é possível, pode durar algum tempo, muito tempo, mas não sempre.

Porque o tronco da verdade cresce naturalmente, qualquer outro é enxertado, colado, faltando-lhe a base, os pés, as raízes profundas.

A ilusão tem autor, a verdade é de todos.

Aliás é essa a grande diferença entre uma "verdade" individual e uma verdade absoluta, colectiva.
O indivíduo, ou um grupo de indivíduos, pode concertar uma "verdade", que precisará sempre de conserto, até que caia por contradição. Pode até acontecer que toda uma comunidade acredite nessa "verdade", mas entram numa ilusão que se afasta do que os une, ou seja, da realidade onde essa não é a Verdade.
Há assim caminhos que precisam de autores, de inventores nomeados, porque a ilusão não se sustenta doutra forma. Ao contrário, a Verdade não é um caminho inventado, é um caminho de descoberta, ou melhor, de achamento... já que só parcialmente consiste num des-cobrir. É essa acha que alimenta o fogo que ilumina o caminho.

Não nascemos sozinhos, precisamos dos outros para crescer, para formar a linguagem.

A linguagem é o que nos permite definir noções que vão para além da simples observação natural.
Há diversas formas de linguagem, algumas das quais são simples expressões faciais, gestos, e o compreender da linguagem só parcialmente se destina ao funcionamento no mundo onde nascemos.
Afinal, podemos nascer num mundo que entendemos com 3 dimensões espaciais, mas por via de uma linguagem, a geometria, percebemos que se trata apenas de um caso particular. Portanto, é suposto que as outras dimensões existam apenas na nossa cabeça, como alucinação colectiva?
O universo tinha 3 dimensões, até que uns bípedes inteligentes nasceram, e mostraram que poderia ter mais dimensões, mas isso só está na nossa cabeça!
Fim da história... fim da história, para todos aqueles que gostam de contar estórias à sua maneira, e se habituaram a uma "verdade" que resulta do papaguear de muitos papagaios.

A imaginação é fértil, e imagino que teve muitas ajudas psicotrópicas... não há apenas o aspecto das dimensões espaciais, há muito que tem sido debatida a questão do tempo, que funciona como dimensão de arrasto. Esse arrasto é que nos obriga ao caminho... caso contrário haveria muitos que se deixariam ficar no conforto de alguma boa recordação... sem perceberem que um mundo feito à medida do próprio, começaria por parecer um paraíso, mas depois seria um inferno. Não é por mimarmos uma criança com tudo o que ela quer, que ela se sentirá mais realizada...

Precisa primeiro de saber o que quer, os quês e porquês associados a si própria.
A noção de felicidade não é individual, é uma partilha comunitária. Pode parecer que pode ser uma partilha apenas de um grupo, mas as exclusões não terminam com a presença dos outros na nossa mente, ficam na consciência, e irão aparecer como medos reflexivos.

A introspecção, a tentativa de caminhar sozinho, apenas levará a um beco formado pelo próprio. Terá todos os aspectos comuns à solitude humana, e todas as diferenças resultantes do confronto com os desejos e medos individuais. Saído dessa introspecção asceta, perceberá que tem que estabelecer um equilíbrio entre o eu e o não-eu... um não está ao serviço do outro, nem podem existir apenas como dois, sob pena de serem o complemento trivial. É necessário admitir uma terceira entidade, desconhecida para ambos, e que constitui o suporte comum. Esse suporte comum não pode ser entendido na separação simples, é entendido na replicação da separação. É este processo trinitário, infinitamente repetido, que estará presente na concepção universal.


Em cada registo inteligente há:

- um eu : que contém a parte "previsível" - justificada pelo raciocínio ciente,
- um não-eu : que contém o conhecimento imprevisível de que o "eu" toma conhecimento,
- um desconhecido evolutivo, que no limite justificaria a junção/separação estática {eu, não-eu}.

A simples separação "eu/não-eu" nunca serviria para o conhecimento da separação. Se esse conhecimento da separação fosse incluído, então corresponderia a um conhecimento do complementar, e à anulação da separação. Pela réplica de mais entidades nas mesmas circunstâncias, a própria separação se revelará como um conhecimento ciente, a adquirir pela partilha de informação entre as entidades... um processo infinito.



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quarta-feira, 27 de dezembro de 2017

do Sótão (5) «Fernão de Oliveira (3)»

O rascunho seguinte resultou de uma troca de comentários, e à partida pouco mais tem que isso. Assim, o mais natural era deixar ficar... porém há uma coisa que não percebi, e como já se passaram 4 anos, não me lembro por que razão o coloquei como sequência de textos sobre Fernão de Oliveira:
Ora, como prezo estes textos sobre Fernão de Oliveira, deveria haver algo relevante para a sequência continuar... no entanto, apenas escrevi dois parágrafos, coloquei as figuras e deixei ficar! Passado este tempo, não sei o que pretendi dizer, mas não seria nada de extraordinário...

____________ 13/06/2013 _____________
Ao contrário do que poderá parecer, eu prefiro que as versões e teorias existentes façam sentido, e dá-me demasiado trabalho ter que pensar nas alternativas. O problema é que na maioria das vezes não fazem, são completamente arbitrárias... podia ser aquilo como aqueloutro, ou mais uma centena de possibilidades.

Resulta isto ainda a propósito da origem do galaico-português. Ficam sempre coisas por dizer, e uma delas é notar que os galegos ainda falam a mesma língua... e dados os 870 anos de separação política, as reformas de D. Dinis não afastaram o português assim tanto do galego, nem o galego se perdeu no longo domínio castelhano. Portanto, temos também ali um exemplo de tradição de pais para filhos que se prolongou por 40 gerações, porque, enfim, os pais têm aquele costume de ensinar aos filhos a língua que aprenderam, e usam a antiga, não inventam uma nova... 

____________ Comentário 12/06/2013 _____________
Os nomes de deuses lusitanos são engraçados!
Por exemplo, Endovelico pode ser só "endobélico" cuja composição endo+bélico significaria "guerra interna".

Alguns desses nomes parecem vir de interpretações de inscrições. 
Imagine que alguém escrevia numa pedra "Xico é o maior da bola". Passados uns milhares de anos, podia entender "o maior" como "o líder", e "bola" como Terra. O tal investigador concluíria da inscrição "Xico era o líder da Terra".
Estou a beneficiar as coisas, parece pior que isto! 
Conclui-se muito mais com muito menos.

Na prática, os textos que têm alguma credibilidade são os que estão em grego e latim, o resto é muitas vezes pura adivinhação. O caso das poucas coisas escritas, atribuídas a uma língua lusitana, é elucidativo e engraçado.
Dou-lhe um exemplo, a inscrição
"ISACCID·RVETI·PVPPID·CARLAE·ENTOM·INDI·NA.[...·OM·"
mas pode também ser lida:
"ISAC CID, E VETI, CUPPID, CARLA E, ENTOM, INDI NAOM"
... o que com pronúncia do povão dá literalmente:
"Isac Cid, eu vi-te, Cupido. Carla é. Então, ainda não?"


Ou seja, pode ser perfeitamente um registo de um pastor face aos amores do outro...  Aliás, a pedra em causa é tosca, só serviria mesmo para uma mensagem.
Por isso, o seu "Cariocecus" pode perfeitamente vir de uma inscrição ao estilo "Cá rio seco", não sei!
Faz-se isto facilmente com as inscrições. Mas, há interpretações mirabolantes, eruditas, mas muitíssimo mais fantasiosas do que basear literalmente no que resta da nossa fonética campesina.
Outra... 
Inscrição em Cabeço das Fráguas (imagemlink anterior)

é tido como:

OILAM TREBOPALA - Ovelhas para Trebopala
INDI PORCOM LA3BO - E porcos para Laebo
COMAIAM ICCONA LOIM - Comida para Icone luminoso
INDA OILAM USSEAM - Uma ovelha de um ano,
TRE[BA]RUNE [INDI] TAUROM - para Trebarune e touros
IFADEM REUE... - Ifadem para Reve

À conta desta interpretação foram definidos os "deuses" Trebopala e Trebarune... eh! eh!
Ainda por cima há letras que são claramente adivinhações.

No entanto, repare:
OILAM = Olham (experimente escrever "olham" sem usar a convenção do LH).

PORCOM, LAMBO, COMEIAM, ... indiciam outras coisas, mas não vou tentar traduzir tudo, por pudor. Tem sempre interpretações que levam a fonética nacional... mas isso é politicamente incorrecto.

Note que de acordo com o som latino, sem convenções modernas (apareceram com D. Dinis) as palavras seriam escritas doutra forma. Com o mito de que os lusitanos eram bestas das cavernas, aquelas inscrições vulgares em pedras insignificantes passam por coisas importantes, a deuses, etc... é fino, é erudito! Se olhar para as paredes de Pompeia, estão cheias de insultos, asneiras, e "desenhos explícitos". Depois, há ainda pedras oficiais, mesmo em latim, onde só escreviam abreviaturas. 

Já falei disso aqui: http://alvor-silves.blogspot.pt/2012/12/conan-o-bretao.html

Há uma lenda de St. Ursula e das 11 000 virgens. Ora, há quem diga que isso resultou duma inscrição
XI M V
onde alguém leu o M V como "Mil Virgens", e deveria ter lido "Mártires Virgens"
... ou seja eram só 11.
... um M dá para passar de 11 para 11000.

Assim dá para perceber algumas confusões que têm sido feitas!


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sábado, 9 de dezembro de 2017

Torridamente Tropical

Em textos antigos, gregos e romanos, considerava-se que na Terra existiam "zonas habitáveis"  e "zonas inabitáveis", devido ao clima ser insuportável.

Como partes inabitáveis consideravam-se não apenas as regiões demasiado frias para sobreviver (ou manter culturas de sobrevivência), e essas seriam as regiões acima dos círculos polares (árctico e antárctico), mas também eram inabitáveis as zonas demasiado quentes - entre os dois trópicos - do Trópico de Câncer ao Trópico de Capricórnio, incluindo a zona do Equador.
Zona Tropical era então denominada como Zona Tórrida, e basta ver uma distribuição das temperaturas no globo, para entender a questão:
... entendendo que a temperatura na Terra foi mais alta do que é hoje, tendo entre o Séc. XVI e o Séc. XX, ocorrido uma "pequena idade do gelo". Antes disso, é reconhecido ter existido ao tempo do Império Romano um clima quente, que depois esfriou, mas que esse calor voltou a ocorrer na Idade Média, especialmente entre o Séc. X e XV.

Aquilo que entendemos hoje como Clima Tropical, foi entendido como Clima Tórrido - inabitável.
Ora, se já é penoso passar por temperaturas acima de 40ºC ou 50ºC na região do Saara, podemos pensar que seria considerado impossível, com uma temperatura superior (por exemplo, mais de 60ºC).
Ou seja, poderia haver relatos de embarcações que tentando descer a linha de costa africana, ao chegarem perto do deserto do Saara, eram forçadas a voltar para trás, devido ao calor insuportável.

Essa seria uma barreira natural definida à latitude do Cabo Bojador, e pelo menos até ao Cabo Verde.
Para mentalidades cristãs, com visões infernais, essa descida podia representar uma descida aos infernos com temperaturas escaldantes, insuportáveis para a maioria da população europeia. 
Acrescia a isso a ausência de pontos de recolha de água potável, até passarem o Saara, e chegarem à proximidade do Equador, já próximos do rio Senegal e da Guiné.

Plínio, no Séc. I, no capítulo 68, "Partes habitáveis da Terra", da sua "História Natural" (Livro 2), diz o seguinte acerca dessa zona tórrida:
«O meio da Terra, onde o Sol manteve o curso, torrando e queimando com as suas chamas, está agora seco pelo seu quente brilho
Esta divisão dos Climas da Terra, vinha de Aristóteles, que considerava inabitáveis as zonas frígidas, e a zona tórrida. Conforme colocado no globo seguinte, por Johannes de Sacrobosco (também conhecido como John of Hollywood), só eram tidas como habitáveis as duas zonas temperadas (uma em cada hemisfério). A única linha costeira desenhada é a zona temperada do hemisfério norte (a figura de Sacrobosco está invertida, apresentando o mapa da Eurásia ao contrário)
 
O globo de Sacrobosco (séc. XIII), apresentando as zonas habitáveis e inabitáveis.

Aliás, ao deixar fora de representação qualquer parte não compreendida nessa limitação, o mapa de Sacrobosco assemelha-se às reconstruções feitas dos mapas antigos, que terminavam justamente nas zonas consideradas habitáveis. 
Vemos, por exemplo, os mapas baseados na latitudes de Ptolomeu, terminavam normalmente acima do Trópico de Câncer no lado ocidental, e só na parte do Oceano Índico chegavam a paragens equatoriais.
Reconstrução medieval do mapa da "Geografia" de Ptolomeu, que vemos corresponder 
às regiões consideradas "habitáveis", acima do Trópico de Câncer, e do Equador. 

De resto, no capítulo 67, Plínio dá conta das mesmas viagens de navegação que lemos em António Galvão, por exemplo, as viagens de Himilcar, de Hanão, ou de Eudoxo, que teria circum-navegado a África. Nas notas de tradução (de 1848, remetendo para outra de 1601) é dito o seguinte:
Whatever acquaintance with remote regions of the earth the Phoenicians and Carthaginians might have acquired, was concealed from the rest of mankind with mercantile jealousy; and every thing relative to the course of their navigation was not only a mystery of trade, but a secret of state. Hence the ignorance of geography manifested by Pliny and other writers, long after these celebrated voyagers had effected the circumnavigation of Africa.
Porém, se é natural que os Fenícios e Cartagineses quisessem proteger o segredo do seu comércio exótico, os tradutores parecem esquecer que a ignorância de Plínio também tem que ser explicada em termos dos sucessores... ou seja dos Romanos, porque Plínio escreve 200 anos depois de Cartago ser terraplanada, e só menciona a navegação romana no Mar do Norte, ao tempo do imperador Augusto.
Ou seja, o "segredo de estado" não foi apenas cartaginês, foi mantido como "segredo de estado" pelos romanos, então invocando o Clima Tórrido, e a inabitabilidade dessas regiões. E, é claro, foi continuando como "segredo de estado", durante toda a Idade Média, até que as navegações portuguesas reclamassem o mesmo feito... mas não apenas por navegação costeira, junto ao escaldante deserto do Saara, mas também por navegação em mar alto.

O argumento que há muito foi escrito pelo José Manuel, parece-me o mais convincente:
O Continente Americano não esteve encoberto, foi "contido" para evitar o esvaziamento da Europa, e até que a saída marítima da armada do Islão do Mediterrâneo para o Atlântico fosse controlada pela cristandade, não foi permitida sua colonização.
A sanção de pena de morte, decretada pelo senado de Cartago, a quem não regressasse com as expedições, era ilustrativa do problema. Simplesmente não se pretendia que refractários ou piratas pudessem formar, fora da alçada dos reinos europeus, uma potência que arriscaria a ser melhor, maior e mais eficaz... como o foram depois os Estados Unidos (e talvez antes a Austrália...)

Pensar que o calor extremo do Saara pudesse ser um motivo desencorajador para expedições africanas, ao longo da costa, pois seria um factor adicional, que aqui ainda não tinha mencionado, mas não seria certamente o principal ou crucial, se as zonas tórridas fossem pouco mais quentes que as zonas tropicais que hoje conhecemos.

segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

do Sótão (4) «Menú australiano»

Do sótão sai agora um texto de 2012, que era suposto ter algum sarcasmo... e que uma simples releitura deixou de parte, como rascunho, até hoje.

Que algumas das nossas designações culinárias têm um contexto histórico, é mais ou menos conhecido... refira-se, por exemplo, o caso do "Cordon Bleu" que remete para o prestígio que tinha o colar azul da "Ordem do Espírito Santo" em França:

No caso da Austrália, envolvendo Cook e Sandwich, isso seria mais que óbvio... e por isso mesmo não mereceria maior atenção do que a já dada anteriormente. Assim, a ideia ficou simplesmente como um rascunho perdido no tempo.

_____________________ 02/04/2012 ____________________

Vamos começar com alguns pratos sob o tópico Austrália...


(1º) Prato inglês: "Cook descobriu a Austrália"
Trata-se de fast-food, mais concretamente um sandwich sem conteúdo interno.
Cozinheiros:
- James Cook, Conde de Sandwich, outros cozinheiros da Inglaterra Imperial e seus seguidores actuais na divulgação da hegemonia anglo-saxónica.
Ingredientes:
- Farinha: "os vencedores vão escrevendo a história"...
- Sal: "se todos os media, livros de divulgação, etc... o dizem, é porque é verdade"
Inspecção: 
- Mesmo oficialmente, é reconhecido terem os holandeses chegado à Austrália e Nova Zelândia antes de James Cook. Ainda que se ignore  Janszoon (1606), pelo menos Tasman (1643) deu nome à Tasmânia e à Nova Zelândia...
- É interessante notar que apesar de tudo, conseguem conviver as duas versões contraditórias... no intuito de dar algum relevo à viagem de James Cook, acaba por lhe ser creditada uma descoberta parcial.
Mapa parcial da Austrália, de Gerritsz, em 1618, 
ou seja, 150 anos antes da viagem de James Cook

Datas e links de inspecção:
- Basta procurar na wikipedia Janszoon (1606) ou Tasman (1643),
- O mapa de Gerritsz (1618) foi analisado aqui:
http://alvor-silves.blogspot.com/2011/07/o-cozinheiro-e-o-sanduiche.html



(2º) Prato inglês: "Cook descobriu pelo menos uma parte da Austrália"
Este prato já é mais elaborado, e tendo muita carne moída, tem sido digerido pela comunidade internacional, com poucos inspectores preocupados em mostrar a falsidade dos ingredientes. 
Cozinheiros:
- James Cook, Conde de Sandwich, outros cozinheiros da Inglaterra Imperial e seus seguidores actuais na divulgação da hegemonia anglo-saxónica, com aceitação cúmplice na academia internacional.
Ingredientes:
- Farinha: "os vencedores vão escrevendo a história"...
- Sal: "se todos os media, livros de divulgação e históricos o dizem, é porque é verdade"
- Carne moída: "documentos, registos, provas físicas, etc... que foram ocultados ou destruídos"

Inspecção: 
- Mesmo oficialmente, é reconhecido terem os holandeses chegado à Austrália e Nova Zelândia antes de James Cook.

Datas e links de inspecção:

__________________ English Menu ________________

Like a food menu, we start here the topic "Historical Menu".
Those who followed the blog will find some of the many topics presented here, with some humor... 

Name of the Dish: short name for the falsification in official history;
Type of Cuisine: we define the degree of sophistication of the dish, which can range from fast food to haute-cuisine;
Cooks: we present the cooks who have implemented the recipe ... James Cook or Sandwich are favorite subjects;
Ingredients: we explain what ingredients were used for the consolidation and consumption... one of the obvious ingredients its blind faith in the institutions that propagate the official version;

Inspector
we present to the consumer of History some evidences of falsification and possible dangers to the health of society.
(i) Surface Inspection
(ii) Documental Inspection
(iii) Bitter mouth (when there are obvious contradictions) or Poisoning (when trying to induce the society into an evil objective).

Inspection dates and links: links to other posts with the material here presented (usually in portuguese).
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sexta-feira, 1 de dezembro de 2017

España psicopata

Em 1640, no chamado Palácio da Independência, o Conde de Avranches, D. Antão de Almada, reunia os conjurados que no dia 1 de Dezembro terminaram com os 60 anos de jugo madrileno:
Palácio da Independência, no Rossio.

A construção que está ao lado do Teatro D. Maria II, no Rossio, teve essa particularidade notável de resistir incólume à devastação do Terramoto de 1755. Isto, é claro, apesar de estar praticamente no centro dos acontecimentos, ou seja, no centro dos múltiplos incêndios que consumiram quase toda a Baixa, e convém não esquecer... nem sequer foi alagado pelo alegado maremoto! 
Como já mencionámos noutra ocasião, esteve longe de ser casa única, ou caso único.
A construção tinha uma particularidade anti-sísmica importante - era um monumento histórico, era o Palácio da Restauração, que tinha servido as reuniões para a proclamação da Dinastia Bragantina. Isso praticamente tornou-o invulnerável a incêndios, sismos ou inundações maçónicas, em 1755.

Esquecendo, o triste episódio do rei e do marquês psicopata, cujas estátuas ainda ofendem a capital, foram também eles que perderam a primeira guerra com os espanhóis após a restauração (a Guerra Fantástica). Seja como for, basicamente a única coisa positiva que a dinastia bragantina trouxe ao país foi a restauração da independência, fora do jugo madrileno, chegando ao ponto até das tropas portuguesas invadirem Madrid em 1706.

Sorte diferente, tiveram os catalães, que continuam até hoje sem se conseguirem libertar do matrimónio castelhano, apesar de várias tentativas goradas. 
Agora, como se não fosse suficiente a violência doméstica que Madrid exerce sobre Barcelona, o PP da Catalunha apresenta um cartaz elucidativo contra o divórcio da região.
A forma como a Espanha agarra o catalão hesitante pelo pescoço, é elucidativa da alegoria. A inquisição constitucional espanhola não admite o divórcio regional, e os catalães têm que ficar sob jugo castelhano, quer queiram ou não queiram. Ao mesmo tempo que começa a campanha para as eleições regionais, mantêm-se as prisões dos líderes independentistas.

É claro que há um razoável número de residentes na Catalunha que não tem qualquer empatia à independência da região. Não será de estranhar que os líderes regionais do PP e Ciudadanos, ou seja, Xavier Albiol (filho de andaluzes), e Inés Arrimadas (andaluza, residente há 10 anos), queiram ver a Catalunha como parte integrante de Espanha.
Também não nos espantaria que um filho de um espanhol, ou uma espanhola aqui residente há 10 anos, achassem bem que Portugal fizesse parte da Espanha. Tanto pior, quando há cá um razoável número de energúmenos adeptos da ideia, especialmente se vislumbrarem vantagem pessoal.

Entretanto, esta deriva psicopata espanhola, terá um desfecho parcial em 21 de Dezembro, onde só uma convocatória adicional de residentes externos à Catalunha, parece poder alterar o desfecho eleitoral que se avizinha. Um resultado fabricado será a forma mais tentadora de apagar a chama independentista, mas terá um custo tão elevado, que esta Espanha psicopata germinará os ingredientes para se tornar num estado completamente disfuncional, a breve prazo.