Alvor-Silves

quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

do Sótão (6) «Aletheia»

Este rascunho estava aparentemente completo e pronto a ser publicado... mas por razões de que não me recordo bem, acabei por publicar a sequência de textos "Pontas da Língua" e "Com chás", e este acabou por ficar esquecido. 

______________20/6/2013____________

Por estranho que pareça, o culto da verdade não parece ter desempenhado um papel demasiado importante nas religiões e mitologias. O que era considerado correcto não estava necessariamente ligado à verdade.


Quando as estruturas se complexificam podemos ter semelhanças quase totais. A nossa percepção é limitada e rapidamente poderá não notar diferença, mas podemos treinar aquilo a que se chama o "sexto sentido". Ou seja, aquilo que nos permite desconfiar que há algo errado no enquadramento global. Não há aparentes falhas locais, mas o conjunto transmite uma ideia errada. Um caso típico foi ilustrado por Escher, numa ilusão óptica de uma escada circular que fecha:
As regras da perspectiva estão correctas, o que podemos ver em cada troço. 
Porém, olhando o conjunto intuímos que está algo errado. Essa intuição leva a analisar... a ilusão implicaria que um caminho de subida não traria nenhuma subida, concluindo-se um ilógico regresso ao ponto de partida.
Quem confiar na visão imediata, pode ignorar o raciocínio lógico, mas é esse que dá a intuição, e não está sujeito às ilusões dos sentidos - neste caso uma ilusão óptica de perspectiva única. Mudando a perspectiva, perceberíamos que se tratava doutro objecto, como nesta escultura de um "triângulo impossível":

O "triângulo impossível" em Perth (Australia).

Aletheia. 
Na mitologia grega, a verdade é representada pela musa Aletheia, sobre a qual temos uma interessante fábula de Esopo.
Prometeu, o titã que deu o fogo aos humanos, decidiu esculpir diversas musas para orientação da sua inteligência. Tinha acabado de esculpir Aletheia, e ao começar a esculpir Dolos, representando o engano, foi chamado por Zeus. Nesse entretanto, Dolos copiou a sua forma de Aletheia... mas não a tempo de completar os pés. Por isso só pela base se consegue distinguir a verdade do engano...
Talvez também ilustrando a base, Heidegger usou este quadro de Van Gogh para ilustrar um conceito de verdade através de Aletheia
Aletheia e as botas de Van Gogh

A verdade bota tudo cá pra fora...
Já falei sobre desvelar que pode ser entendido como diferente de outras verdades, que se limitam a ser um revelar consistente (ou seja, evitando contradição)... As revelações colocam novos véus, e as desvelações visam retirar os véus existentes, que causam dolo. 

Ora, os primeiros véus terão sido as parras que cobriram as intimidades de Adão e Eva... porque a verdade põe tudo a nú, inclusivé as "vergonhas". Parte da moral é um muro, um mural que nos circunda, que serve para justificar a ocultação. A moral cristã admite que o muro caia perante um Deus que-tudo-vê, mas não perante os outros.

Veritas.
No corresponde romano temos também uma divindade menor, Veritas, filha de Saturno, correspondente a Aletheia. 
A verdade é aí Vera, mas também Fera ou Bera, as ambiguidades que trocaram as letras f, v, b, ajudam a ver as opiniões. 
Também o Varão, filho primogénito, passou a ser Barão, quando não mesmo a Farao, no sentido egípcio, o irmão supremo detentor do olho de Hórus, que tudo via, o faraó.
A oposição ao Faraó veio de outro Varão, de Aarão, irmão mais velho de Moisés, e varão tomará também o sentido da "grande vara" de Aarão, guardada na Arca da Aliança.
Curiosamente nos Mandamentos de Moisés apenas é requerido que não se levante falsos testemunhos contra os próximos.
Nota-se que a verdade não terá tido um papel determinante nas religiões.

In vino veritas... não seria apenas a embriaguez que soltaria a língua para a verdade. As parras, sinal do vino, ocultaram o "vi nú", sendo barras do mural, varas da moral.


Com outra dicção...
Não há diversos tipos de verdade. A verdade é um caminho, sempre incompleto, não é nenhum ponto que se vá alcançar, é apenas uma orientação. Só há um teste para seguir esse caminho, é o teste da contradição.
A verdade é o que fica quando se elimina a contradição. 
Com outra dicção cai-se em contradição.

Pensa-se em dois caminhos possíveis, igualmente consistentes, porque se pensa que os registos podem ser ocultados, apagados. E isso é possível, pode durar algum tempo, muito tempo, mas não sempre.

Porque o tronco da verdade cresce naturalmente, qualquer outro é enxertado, colado, faltando-lhe a base, os pés, as raízes profundas.

A ilusão tem autor, a verdade é de todos.

Aliás é essa a grande diferença entre uma "verdade" individual e uma verdade absoluta, colectiva.
O indivíduo, ou um grupo de indivíduos, pode concertar uma "verdade", que precisará sempre de conserto, até que caia por contradição. Pode até acontecer que toda uma comunidade acredite nessa "verdade", mas entram numa ilusão que se afasta do que os une, ou seja, da realidade onde essa não é a Verdade.
Há assim caminhos que precisam de autores, de inventores nomeados, porque a ilusão não se sustenta doutra forma. Ao contrário, a Verdade não é um caminho inventado, é um caminho de descoberta, ou melhor, de achamento... já que só parcialmente consiste num des-cobrir. É essa acha que alimenta o fogo que ilumina o caminho.

Não nascemos sozinhos, precisamos dos outros para crescer, para formar a linguagem.

A linguagem é o que nos permite definir noções que vão para além da simples observação natural.
Há diversas formas de linguagem, algumas das quais são simples expressões faciais, gestos, e o compreender da linguagem só parcialmente se destina ao funcionamento no mundo onde nascemos.
Afinal, podemos nascer num mundo que entendemos com 3 dimensões espaciais, mas por via de uma linguagem, a geometria, percebemos que se trata apenas de um caso particular. Portanto, é suposto que as outras dimensões existam apenas na nossa cabeça, como alucinação colectiva?
O universo tinha 3 dimensões, até que uns bípedes inteligentes nasceram, e mostraram que poderia ter mais dimensões, mas isso só está na nossa cabeça!
Fim da história... fim da história, para todos aqueles que gostam de contar estórias à sua maneira, e se habituaram a uma "verdade" que resulta do papaguear de muitos papagaios.

A imaginação é fértil, e imagino que teve muitas ajudas psicotrópicas... não há apenas o aspecto das dimensões espaciais, há muito que tem sido debatida a questão do tempo, que funciona como dimensão de arrasto. Esse arrasto é que nos obriga ao caminho... caso contrário haveria muitos que se deixariam ficar no conforto de alguma boa recordação... sem perceberem que um mundo feito à medida do próprio, começaria por parecer um paraíso, mas depois seria um inferno. Não é por mimarmos uma criança com tudo o que ela quer, que ela se sentirá mais realizada...

Precisa primeiro de saber o que quer, os quês e porquês associados a si própria.
A noção de felicidade não é individual, é uma partilha comunitária. Pode parecer que pode ser uma partilha apenas de um grupo, mas as exclusões não terminam com a presença dos outros na nossa mente, ficam na consciência, e irão aparecer como medos reflexivos.

A introspecção, a tentativa de caminhar sozinho, apenas levará a um beco formado pelo próprio. Terá todos os aspectos comuns à solitude humana, e todas as diferenças resultantes do confronto com os desejos e medos individuais. Saído dessa introspecção asceta, perceberá que tem que estabelecer um equilíbrio entre o eu e o não-eu... um não está ao serviço do outro, nem podem existir apenas como dois, sob pena de serem o complemento trivial. É necessário admitir uma terceira entidade, desconhecida para ambos, e que constitui o suporte comum. Esse suporte comum não pode ser entendido na separação simples, é entendido na replicação da separação. É este processo trinitário, infinitamente repetido, que estará presente na concepção universal.


Em cada registo inteligente há:

- um eu : que contém a parte "previsível" - justificada pelo raciocínio ciente,
- um não-eu : que contém o conhecimento imprevisível de que o "eu" toma conhecimento,
- um desconhecido evolutivo, que no limite justificaria a junção/separação estática {eu, não-eu}.

A simples separação "eu/não-eu" nunca serviria para o conhecimento da separação. Se esse conhecimento da separação fosse incluído, então corresponderia a um conhecimento do complementar, e à anulação da separação. Pela réplica de mais entidades nas mesmas circunstâncias, a própria separação se revelará como um conhecimento ciente, a adquirir pela partilha de informação entre as entidades... um processo infinito.



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