Alvor-Silves

terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Tolomeu a eito

Ao transcrever uma parte do manuscrito de João de Barros, sobre as "Antiguidades de Antre Douro e Minho", não pude deixar de sorrir quando ele, por uma ou mais vezes, escreveu:

Tolomeu em vez de Ptolomeu.

Se escreveu Tolomeu é porque provavelmente não pronunciava o "p", como nós o fazemos com tantas outras palavras. No entanto, e até tê-lo visto escrito por Barros, não tinha reparado no significado de "tolo meu" em Ptolomeu. Certamente que Barros não o fez com o propósito jocoso, mas aquele erro perdido num manuscrito não publicado, valeu um sorriso, a quinhentos anos de distância.
O que mais me surpreende em Barros, e noutros escritores antigos, era a sua coloquialidade e o seu à vontade com o erro. Tão depressa escreviam um nome de uma forma, como de outra. Interessava muito mais o som do que a escrita. Talvez soubessem que era mais natural manter-se a correcção na língua falada, do que na língua escrita. Esses manuscritos antigos têm habitualmente várias incorrecções, que não pareciam causar o mínimo embaraço aos autores. Curiosamente, somos hoje muito mais ortodoxos e intolerantes com pequenos erros de escrita, do que fomos no passado. 

O som pt é raro na nossa língua, sendo normalmente remetido a origem grega... ou até egípcia.
A vontade de suprimir consoantes, como ocorreu nas últimas revisões ortográficas, tratou de acabar com algumas das últimas ocorrências do som "pt".
Não desapareceu em "optar", porque ninguém diz "otar"; não desapareceu em "apto", porque se confundiria com "ato"... já de si confundido com "acto"; também não desapareceu em "rapto", sob pena de ficar "rato"; nem em "captar", sob pena de ficar "catar"; nem em "inapto" que se confundiria com "inato", etc.

Curioso é o caso de "concepção" que, por via do aborto ortográfico, passou a escrever-se "conceção", confundindo-se desnecessariamente com "concessão", já que a primeira vem de conceber e a outra de conceder. Este caso é curioso, porque "concepção" já tinha sofrido antes um tratamento para se ver livre do "p", escrevendo-se "conceição".
A designação "Nossa Senhora da Conceição" era antes "Nossa Senhora da Concepção", invocando a concepção "sem pecado" de Jesus Cristo. Portanto, se a ideia era verem-se livres da consoante muda, poderiam ter usado o que já existia... assim, ficamos com três grafias diferentes para a mesma palavra: concepção, conceção, e conceição. 
Seria pelo menos assim coerente com a palavra "conceito", que antes se escreveu "concepto" (como em inglês, "concept").

Mas não é apenas neste conceito que vemos que temos uma velha mania de substituir o "i", onde outros usaram consoantes. Comparando com a língua inglesa, mais respeitadora da assinatura latina, vemos como foi tudo a "eito":

- conceito - concept
- respeito - respect
- defeito - defect
- eleito - elect
- seita - sect
- aceita - accept
- efeito - effect
- perfeito - perfect
- colheita - collect
- suspeito - suspect
- rejeito - reject
- sujeito - subject
- direito - direct
- peitoral - pectoral
- leitura - lecture

... e a lista continuaria, mostrando como a forma tradicional das nossas consoantes mudas não foi uma simples omissão, tendo-se optado pelo uso sistemático de um "i" alternativo, em formas assim escritas há mais de 500 anos atrás.  
Se foi a eito, nem sempre ficou feito num oito
Repare-se que mantivemos o octógono, não lhe chamando oitógono. Porém, para octava dissémos oitava, e agora em vez de Octávio, escreveremos Otávio em vez de Oitávio. Também não optámos por seguir a tradição antiga, escrevendo direitor em vez de diretor, ou escrevendo reito em vez de reto (mas dizemos escorreito...).
Portanto, o que mais entristece é esta completa falta de consistência, de coerência, sendo certo que, com mudanças em cima de mudanças, as coisas podem tender a voltar ao original. Não se pense que é culpa moderna, pois já antes ninguém escrevia seite em vez de sete. Nem se pense que isto favorece a origem latina do português, porque as coisas não são assim tão simples. O que se nota é que a população foi cumprindo obedientemente directivas, ou direitivas, vindas do topo.

Regressando ao Tolomeu... para finalizar. O caso do Egipto poderia levar-nos a um Ejeito forçado, mas indo ao grego, vemos que se deveria ler Αίγυπτος, ou seja Aíguptos, já que a transliteração latina modificou os "u" upsilon em "y" ipsilon, passando o som "u" a valer como "i" (os franceses conseguem fazer uma mistura entre "u" e "i" que seria adequada). 
Ora, ocorre que o som "Guptos" é também remetido ao Império Gupta, que floresceu na Índia entre os séculos IV e VI, ou seja, na mesma altura em que a religião católica se iria impor como religião oficial e única do Império Romano. Aliás, a parte católica do Egipto ficou conhecida como "Copta", o que é de forma muito natural a mesma variante do nome, com a habitual alteração do "g" em "c".

O Império Gupta é considerado um período particularmente brilhante na Índia, do ponto de vista científico e literário, sendo neste reino que se considera ter aparecido a numeração (árabe) posicional, depois trazida pelos árabes para a Europa. Curiosamente, também os Guptas apreciaram templos em forma piramidal, ainda que este seja escavado na rocha de Ellora, e não composto de múltiplas pedras-tijolo empilhadas.
Ellora - Kadesh - um templo Gupta
Isto principalmente para fazer uma observação...
Se temos uma ideia do que aconteceu aos judeus com o crescimento do cristianismo e islamismo, no Médio Oriente, é muito mais nebuloso todo o registo do que se terá passado no Egipto. 
Até ao tempo de Cleópatra, sabemos que o legado antigo era preservado pela dinastia Ptolomaica (ou melhor, Tolominha), mas a partir daí, e especialmente com o crescimento do cristianismo, só passamos a ouvir falar dos Coptas cristãos. 
Quando Constantino declarou o cristianismo oficialmente, já tinha desaparecido, ou desapareceu por completo a velha religião egípcia no meio desse processo. Porque quando no Séc. VII o Egipto é invadido pelos árabes, parece que não se registou nenhum êxodo para as paragens ocidentais.
Tal como os registos de Axum e Lalibela, talvez Ellora e outros pontos na Índia, fossem resultado duma diáspora egípcia, levada para outras paragens, e manifestando-se de forma diferente.

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