Alvor-Silves

quarta-feira, 30 de maio de 2012

Tabula Peutingeriana

Aparentemente, o único registo de estradas romanas está contido num manuscrito do Séc. XIII, a chamada "Tabula Peutingeriana", um extenso mapa mundi distorcido, privilegiando a topologia à topografia (ao estilo dos esquemas de linhas de metropolitano, hoje em dia). A versão sobrevivente, num museu de Viena, está amputada da parte mais ocidental, com a Península Ibérica, Ilhas Britânicas e Marrocos. Foi reconstruída posteriormente no final do Séc. XIX, da forma que se apresenta:

Tabela Peutingeriana com a extensão ibérica
Tabula Peutingeriana - Detalhe da reconstrução da Península Ibérica (Konrad Miller, 1898).

A Tabula Peutingeriana terá sido encontrada por Conrad Celtes na cidade de Worms, sobre o Reno, uma cidade que teria como designação celta Barbetomagus, centro da saga dos Nibelungos. Talvez a versão original da Tabula estivesse ainda completa, mas Conrad Celtes não a conseguiu publicar, tendo ficada associada a Peutinger, antiquário que a traz à luz em 1508 (já mutilada?) e lhe dará o corrente nome.
Brazão da cidade de Worms - Barbetomagus

É interessante esta ligação a Worms, e ao reino de Gunther da Borgonha, entre 406-411 d.C, com a migração de Alanos, Vândalos, e Suevos, que terminará depois na Península Ibérica, pois é nessa altura que o poder imperial romano de Honório começará a ser ilusório. Nestas paragens do Reno consta que Gunther iria controlar o anterior pretendente ao império, Jovinius. Este é um dos enredos da saga dos Nibelungos que envolve ainda o fim do reino de Gunther pelo ataque dos romanos com a ajuda de mercenários hunos. Siegfried é personagem central, e as figuras de Krimhilda e Brunhilda lembram ainda a posterior querela entre Fredegunda e Brunilda, já sob implantação merovíngia. Já tinhamos referido que o mapa de Piri Reis reporta a chegada da informação por via dos francos (burgúndios ou vândalos?) que fugiram do Egipto, aquando da expansão árabe em 641 d.C.
 
Execução da visigoda Brunilda, rainha da Austrásia (à esq.)
Siegfried e Krimhilda, com um falcão (à dir.)

A parte inicial da saga dos Nibelungos, começa com um sonho de Krimhilda sobre um falcão morto por duas águias, adicionando a decoração. As águias podem estar associadas aos dois impérios que acabaram por destruir o reino de Gunther, o romano e o tártaro, mongol, dos hunos. Quanto ao falcão, podemos associar ao legado cultural egípcio...
Num mundo em que a informação era controlada em cidades isoladas, havia um meio expedito de passar informação, já usado ao tempo dos egípcios e persas... o pombo-correio. Contra os pombos, havia outra arma... os falcões! Portanto, convém aqui explicitar que o falcão, enquanto representação de Hórus e também símbolo aqueménida de Ciro, torna implícito um "olho apurado" e ainda um interceptor de comunicação, de mensagens.

Assim, quando aparece um Colombo passando a mensagem d'A Mérica, será figurativamente um pombo que escapa aos falcões, que lançavam o seu olhar acutilante e as suas garras para manter o mundo restrito às fronteiras da Antiguidade, representadas na Tabula Peutingeriana.
Também de forma columbófila, encontramos o deus Hermes/Mercúrio, filho de uma "pomba" que é Maia, já que as Pleiades são pombas (gr. peleiades) filhas do titã Atlas, inseridas na constelação de Touro, na sua fuga ao gigante caçador Orion (ou Oriœnte). Também no cristianismo, a mensagem que Maria recebe é figurativamente representada, enquanto Espírito Santo, por um pombo, sem corpo de autor, relevando apenas o conteúdo. A utilização da columbofilia na expedição de mensagens teve como contraponto o desenvolvimento da falcoaria, como actividade nobre, especialmente nas monarquias medievais.

A saga dos Nibelungos, com Gunther de Borgonha, no séc. V, será escrita no séc. XII, e depois adaptada por Wagner, no magnífico Anel dos Nibelungos, sendo reincorporada no nacionalismo alemão, então mutilado pela cisão do Sacro-Império Germânico no Tratado de Vestfália, mostrando como aquela encruzilhada cultural no Reno se arrastaria por séculos e por diferentes paragens.
A migração ibérica dos suevos, aliados de Gunther, irá definir um isolamento histórico, que estará na origem de substanciais diferenças com a parte sob domínio visigodo. Desse lado temos a constituição de Espanha, e do lado suevo a constituição de Portugal, um reino que irá definir uma origem dinástica de Borgonha, apesar da ligação a Bolonha evidenciada por Damião de Goes. Os limites do mundo da Tabula Peutingeriana seriam ultrapassados justamente com a autorizada expansão portuguesa, conseguida pelo Infante D. Henrique, e por uma motivação comercial própria de Hermes.

Há duas concepções de Hermes, que acabam por se misturar. Na mitologia grega, sendo um deus mensageiro ligado a viagens, ao comércio, tem também um aspecto menos honesto, ludibrioso, que o liga aos trapaceiros. A mensagem, tendo em vista uma transacção comercial, pode ser distorcida com o intuito de um lucro facilitado. Assim, subjacente a um poder de moto comercial está também uma mensagem deturpada, sugestiva, como acontece na propaganda. O referencial de verdade colectiva, anteriormente representado pelo poder monárquico, foi com a ascensão comercial substituído na governação, onde a balança do comércio passou a balança de poder, numa hierarquia segura pelos segredos das transações, pelas ilusões criadas, que se pode dar ao luxo de responsabilizar os cidadãos pelas suas escolhas, sem nunca perder o controlo sobre a mensagem publicitada, e assim obter o maior controlo da verdade colectiva, à escala mundial. A ideia subjacente deixou de ser a falcoaria, como meio de caçar pombos... ao inundar os céus de pombos, inunda-se o meio informativo de mensagens, deixando como efeito residual e marginal qualquer mensagem incómoda.
caduceu de Hermes, para além das asas do mensageiro, mostra o confronto entre duas serpentes, o confronto entre o conhecimento e a sua oposição, um lado real e um lado ficcionado, serpentes que podem mudar de pele, enrolando-se num bastão de poder.
A outra concepção é a de Hermes Trimegisto, ligada ao gnosticismo, que esteve inicialmente ligado ao cristianismo, e que surge como ligação ptolomaica entre o deus grego Hermes e o egípcio Tot, que já referimos, mencionando a ligação à tradição maçónica. Aqui a simbologia destoutro Hermes embebe em filosofia fundamental (que se encontra também em Parménides), e é representado equilibrando uma esfera armilar, semelhante à que encontramos na bandeira portuguesa, e que remonta a D. João II e D. Manuel.
Se os descobrimentos levaram à consolidação comercial através das Companhias das Índias, dando asas um desenvolvimento técnico e social, as duas serpentes de conhecimento, real e ficcional, confundem-se e têm deixado submerso o homónimo Hermes, o total de Tot que aparece nas três componentes do Trimegisto (tendo a sua Tabula Esmeralda sido chamada o "segredo dos segredos").


 
Hermes Trimegisto e a Tabula Esmeralda (que surge na literatura árabe como
referência de carta de Aristóteles a Alexandre Magno) 

Para além do conhecimento filosófico, gnóstico, tido como secreto, haveria outros segredos de ouro na tradição egípcia, ptolomaica. Em particular, deveria estar conhecimento secreto que justificou limitar o mundo ocidental às fronteiras atlânticas, ao limite persa, e a um trópico acima de Cancer. O mundo em que "todos os caminhos iam dar a Roma", é o mundo da Tabula Peutingeriana.
Hércules abriu a passagem pelo Atlas que segurava o mundo antigo nos ombros, deixando o Mediterrâneo de ser limite navegável, abrindo caminho para as ilhas britânicas. Nova abertura foi lentamente conseguida pela dinastia de Avis, ensinando a cavalgar em toda a sela, domesticando os garranos. Adamastor cedeu e o mundo abriu-se o suficiente para que todo o Atlas viesse a ser revelado uns séculos depois.
Mas se os Atlas de hoje nos mostram muito mais que a Tabula Peutingeriana, também é certo que outras Pleiades, as pombas filhas de Atlas, permanecem sob segredo, e a diferença entre o ocultado e o descoberto será da mesma monta.




sábado, 12 de maio de 2012

Arquitecturas (3)

A mitologia grega, reportada por Hesíodo, ilustra uma Teogonia que já aqui comentei várias vezes.
Para quem estiver demasiado enredado em teorias que explicam "sim, porque sim", será fácil negligenciar eventuais mensagens e classificá-las como poesia. 
Vou por outro caminho, demonstrando como se pode retirar alguma filosofia interessante.

O universo existe, e cada um de nós é testemunha dessa existência.
Poderia não existir, ou o que seria equivalente, poderia não ganhar consciência da sua existência!

O universo puramente material, de pedras e calhaus, não poderia ter essa consciência.

Para ser observado, o universo precisa, pelo menos, de um observador... que estará obviamente dentro do universo, por definição de universo!
Um observador básico pode não ter consciência de si, pode apenas reflectir internamente o que vê externamente. 
Se puder ver tudo então o observador e o observado coincidem... por correspondência directa. Se o observador for superior ao observado, então é porque não se observa completamente a si próprio, e caso contrário, o observador tem uma óbvia lacuna na sua observação.
Para além de eventuais alegorias políticas, a mitologia grega dá a entender que de um "caos inicial", emergem estruturas, e para o que nos interessa, há uma Gaia universal que não fica satisfeita com a ocultação em que Úrano colocará alguns dos seus filhos.
Isto sugere justamente um problema de observação incompleta, e não ficaria resolvido se parte dos filhos de Gaia, estruturas emergentes do "caos inicial", ficassem ocultados... não vissem a luz.
Há por isso, uma segunda geração, onde aparece Cronos... associado ao tempo.
Podemos ver isto também como uma passagem da palavra ao verbo. O verbo induz sempre uma acção, nem que seja contemplativa, e pressupõe a existência de tempo.

A noção de tempo vai cortar o universo entre passado e futuro, no entanto não deixa numa posição definitiva os não-observados. Os titãs, remetidos antes à escuridão, poderiam ver a luz... poderiam ser observados. A noção de tempo permite uma alternância de observação, mas induz uma outra perda, o corte temporal originaria um passado, sem acesso imediato, pela ordenação. O corte de Úrano faz assim surgir uma Afrodite, deusa do amor, que reflecte uma preferência, que vai contra as alterações temporais. Essa noção de amor primordial reflectiria um desejo de preferência, no sentido contrário ao equilíbrio de tratamento pretendido por Gaia.
Aqui podemos encontrar ainda as antigas de noções orientais de Yin e Yang, que alternam, já que qualquer preferência num sentido, assume implicitamente a existência da sua negação. Se queremos algo, sabemos da hipótese contrária, e portanto as duas coexistem, nem que seja no plano ideal, dos sonhos (ou pesadelos).

Ainda assim, Cronos, o filho de eleição de Gaia, vai originar uma nova ocultação, de si próprio... já que haverá filhos seus que são ocultados, engolidos dentro de si. Nesta segunda geração temporal é Raia que toma o papel de Gaia, e Cronos enfrentará um destino de deposição, tal como o pai Úrano, e assim previsto por ele... Afinal o problema temporal não resolvia a observação interna, apenas a incompletude das observações externas.
É neste sentido que aparece Zeus, o filho que liberta os irmãos, afinal iguais ao pai.
Nesta terceira geração pode encarar-se que se introduz a "observação do observador", e onde se poderia cumprir o desejo de Gaia-Raia, de ser contemplada em toda a sua beleza, mas eu diria que falta a Maia...
O problema, conforme relatado na Teogonia grega, é que Zeus irá remeter de novo alguns Titãs à escuridão, mesmo os que o ajudam na Titanomaquia contra Cronos.
A razão é perceptível... num mundo ideal, agora com o amor de Afrodite, alguns dos Titãs seriam menos amados, e cria-se uma divisão ao nível do desejo. Há simplesmente alguns Titãs que são remetidos definitivamente para o Tártaro... o inferno grego. Ou seja, acaba por haver conhecimento proibido, não por incapacidade, mas por vontade. Talvez nessa altura Gaia tenha começado a girar, fazendo oscilar entre a luz do dia, e as trevas nocturnas... onde o sonho faria emergir afinal o que não se queria ver.

Prometeu, um dos titãs não condenados, mas inconformado, criador dos humanos, obriga Zeus a uma escolha relativa às oferendas aos deuses. Das oferendas, resultantes do trabalho dos humanos, Zeus teria que escolher apenas uma das partes.
Zeus prometeu a Prometeu respeitar a escolha, não sabendo que o titã iludira "os ossos", que ficariam assim para os deuses, e deixando "a carne" para os humanos. 
Como Zeus não fez tenção de cumprir o prometido, Prometeu decide entregar o fogo, a centelha divina, aos humanos... que antes disso seriam provavelmente vistos como hominídeos.
Essa capacidade humana, semelhante à dos deuses, terá enfurecido definitivamente Zeus, que condenou o titã a ver o fígado ser devorado por uma águia, provavelmente a águia imperial. 

Ou seja, a mitologia grega leva-nos até ao momento em que os deuses constituíam uma elite, uma inteligência com alguns poderes superiores aos humanos vulgares, mas que interagia com ela, num acordo diferente do prometido a Prometeu.
O acordo era simples... os humanos submetiam-se à vontade divina, faziam as suas oferendas no sentido dos desejos de ambos. Esses desejos incluíam manter os titãs ocultos no Tártaro, e livrar-se de todas as más influências, ainda que para isso os humanos sofressem com os caprichos dos deuses.
Durante a vida terrena, os deuses serviriam como um garante de que os humanos poderiam ter os seus desejos satisfeitos, mediante as devidas oferendas, ou trocas comerciais. Os humanos alinhariam assim com estes deuses do Olimpo na ocultação de conhecimento.
Afinal, tal como a maçã, a caixa de Pandora seria demasiado perigosa.

Termino, com uma consideração final, no mesmo sentido, mas não tanto no aspecto mitológico, mas sim no aspecto mais racional.

Conforme dito, o universo puramente material, de pedras e calhaus, não poderia ter consciência de existência.
Os seres animais mais básicos conseguiriam observar uma parte do universo, mas com uma reflexão semelhante à do espelho. O que era interno reflectia o exterior, sem conhecimento acrescentado... dito doutra forma, limitavam-se a replicar, sem acrescentar nada de novo.
Não seria apenas assim que o universo tomaria consciência da sua existência.
Seria necessário ligar a essa informação exterior uma informação interior, diferente, nova... uma apreciação pessoal, interna ao ser.
Os seres poderiam evoluir no sentindo de organizarem internamente a informação externa, e a sua apreciação sobre ela, terminando numa capacidade de consciência... ou seja, que existiriam para além do exterior que viam!

Só que cada ser teria a capacidade de desenvolver uma visão individual do exterior, que poderia ser completamente arbitrária, variando de ser para ser, e não acrescentaria propriamente nada de novo.
A apreciação teria que ter um custo individual, para que tivesse algum valor.
É neste sentido que aparece a "necessidade" de uma "realidade" que interage com cada um dos seres... eles deixam de ser simples espectadores arbitrários de uma parte do universo.
A sua cognição é formada com um propósito de sobrevivência, uma cognição desadequada implicaria  a extinção antecipada, e assim por um processo de selecção seria determinada a cognição mais apta para interagir com a realidade comum criada.
Neste sentido funciona o "evolucionismo", já que a cognição que melhor modelar o mundo exterior, permitirá uma sobrevivência.
Porém, isso depende das leis do mundo exterior... e o objectivo não será encontrar o animal melhor capaz de sobreviver num determinado mundo exterior. Caso tivesse sido isso, podíamos ver os dinossauros, ou análogos muito maiores, como destino final evolutivo.
Do ovo de crescimento individual, não acompanhado, sem interacção social, não surgiu acréscimo cognitivo para além da transmissão genética. Foi a estrutura de acompanhamento familiar, típica dos mamíferos (e aves), que permitiu essa evolução, pela comunicação.
O acréscimo de cognição, que tornou o homem como mais apto à sobrevivência na Terra, trouxe uma capacidade de entendimento que vai para além da realidade que compreende. Trouxe o mundo de ideias abstractas, que não estão restritas a uma realidade particular, ainda que possam ter aí a sua origem.
A competição "evolucionista" que passou por uma capacidade de sobrevivência nesta realidade física, e que foi preservando genes pela reprodução, guardando material genético do mais apto, misturou-se com uma nova competição. O homem passou da competição pela guarda do código genético, para guerras motivadas por ideias. A competição pelo código genético seria ainda um comportamento animal, passado para tribos, povos, nações... mas a competição pela prevalência de ideias é algo completamente diferente. Os irmãos não são necessariamente irmãos de sangue, passam a irmãos de ideias, ainda que possam estar ligadas à cultura de um povo.
Isto é um salto, já que o espaço de algo imaterial, como uma ideia, ganha estatuto de máxima relevância material, ao ser disputado no campo de uma realidade, misturando os dois conceitos, e colocando em causa a própria sobrevivência individual, e consequentemente das ideias.

Como explicitei, o caminho será o do auto-conhecimento, mas não de um indivíduo particular.
O indivíduo é um detalhe no meio do processo... como já o tinha sido enquanto portador de genes. Os indivíduos foram dispensados na evolução, apenas ficando um traço genético, que permitiu o raciocínio complexo. Um puro materialista verá o raciocínio como consequência da evolução.
Evoluções haveria muitas, mas poucas levariam a privilegiar uma evolução no sentido do conhecimento. Se não houvesse qualquer objectivo, a evolução mais natural terminaria rapidamente em seres que nada tinham de pensante.
A evolução que levou ao estádio em que estamos teve como objectivo o conhecimento, e é por isso que a percepcionamos. Nesse sentido, o conhecimento é a causa da nossa evolução e não a consequência, e por isso foi tão frágil, misterioso, com saltos algo inexplicáveis, e não tão linear.
Limitar o conhecimento tem custos claros, já que podemos evitar procurar o que desconhecemos, mas arriscamos obviamente a que o desconhecido nos procure a nós.
(12 e 15 Maio 2012)

quinta-feira, 10 de maio de 2012

Arquitecturas (2)

Para além das considerações históricas, os agentes da História são homens, não apenas enquanto personagens, mas enquanto actores, ainda que a sua acção esteja algo limitada pelo enredo.
É nesse sentido que importa perceber o que moveu os homens para empreenderem as suas acções, muito vezes parecendo arriscar muito empenho por pouco retorno. A sua relação com o desconhecido, através da religião, filosofia ou ciência, foi uma das facetas políticas.

Para não entrar em considerações que podem ser vistas como lunáticas, vou-me socorrendo de outros que foram desbastando preconceitos, e não deixam sozinho este caminho comum.
Encontrei uma entrevista da BBC a Carl Jung:
Estes 10 minutos da parte final da entrevista merecem ser vistos. Para o que se segue escolho as seguintes passagens:
- Lembro que disse que a morte é psicologicamente tão importante quanto o nascimento e que ela é parte integrante da vida. Mas não pode ser assim, se é um fim; ou pode?
- Certo, se ela for um fim, mas... não estamos muito certos sobre esse fim porque existem as faculdades especiais da psique, ela não é inteiramente limitada pelo espaço e pelo tempo. Pode ter sonhos ou visões do futuro, pode ver mais longe do que as esquinas. Apenas a ignorância recusa tais factos. É evidente que eles existem... e sempre existiram. Mostram que a psique, ao menos parte dela, não depende desses limites.
- E daí?
- Se a psique não é obrigada a viver no espaço e no tempo apenas, e obviamente não vive, então até tal ponto a psique não está sujeita àquelas leis, o que indica uma continuação prática, uma espécie de existência psíquica além do tempo e do espaço.

Começamos pelo trivial.
O homem tem conhecimento de realidades alternativas, normalmente designadas por sonhos.
Ao dormir, o sonho inconsciente confronta-nos perante realidades que não têm lugar no espaço da realidade comum, que partilhamos com outros. Esses cenários alternativos não foram criados por nós, no sentido em que não fazemos a mais pálida ideia de como construímos o cenário do sonho, ou porquê. Também aí tomamos o lugar de personagens intervenientes numa realidade de que desconhecemos as regras, e que é suficientemente imprevisível e credível.

O sonho pode ser visto como um teste ao nosso pensamento em resposta a mundos diferentes do que conhecemos. Quem produz esses mundos? Não é o nosso consciente, e quanto ao inconsciente dificilmente podemos chamar-lhe "nosso"! É tão externo quanto a realidade que nos é oferecida, e é por isso que no sonho acreditamos estar a viver uma experiência real.
Como não é uma experiência partilhada, quando regressamos à realidade comum, há uma tendência clara de ser socialmente negligenciada... não o seria se um grupo de pessoas tivesse partilhado o mesmo sonho.

Em contrapartida, como ao individuo é atribuída a criação do sonho, através do seu inconsciente, também o indivíduo pode pensar que a realidade "comum" é produto do seu inconsciente.
Essa convicção solipsista foi especialmente notória na filosofia hindú, ou na concepção de Parménides, e nos resultantes idealismos, de Platão à escola idealista alemã.
No entanto, é indiferente... o que importa é que o indivíduo é sempre colocado perante uma realidade que não controla completamente. Pode acreditar que é o "seu" inconsciente, ou que é "outro" que origina essa realidade que percepciona. Esse "outro" tanto assumir a forma de crença numa divindade consciente, como a forma de crença numa ordem inconsciente (na perspectiva materialista).

Convirá aqui notar que a justificação para certas entidades, ou acontecimentos, não explicáveis pelo conhecimento comum, tem várias formas quase equivalentes. Consoante a época, podemos falar de deuses, magos, vampiros, alienígenas, etc... pouco importa. Não importa a forma, importa a sua essência. Há entidades que surgiram como metáforas literárias a um poder humano submerso, e que ganharam espaço no imaginário, propagando-se de forma errada por interpretação diversa dos leitores, e há outras que têm um conceito diferente.
Podemos chamar "vampiro" a um ser que suga o sangue, no mesmo sentido em que criticamos uma elite ociosa que subsiste do trabalho dos restantes. E neste caso o seu poder forma-se nas trevas, no secretismo, no desconhecimento da população, e tal como o vampiro, não suportará que caia luz sobre si.
Esta figura metafórica de Bram Stoker tanto fez a delícia dos que a compreendiam, como a dos que não compreendiam (apenas se assombravam com tal ideia) e por isso acabou por ser inócua, e fazer parte da cultura popular como um medo, o que até agradou às mesmas elites.
No sentido oposto, creio que se pretendeu depois substituir esses medos por uma ciência primária que ostracizou qualquer ideia de espiritualidade, varrendo todas as ocorrências mais estranhas para debaixo da ocultação. Fica assim confuso perceber o que são apenas manifestações literárias alegóricas, mitológicas, de outras que podem corresponder a verdadeira observação (por exemplo, uma questão serão os eventuais registos arqueológicos de gigantes).

Não se pode experimentar a ideia de morte na realidade "comum", no entanto há sonhos em que o próprio se vê confrontado com uma realidade cujo o único desfecho lógico, mesmo no mundo do sonho, seria a morte. Assim, o próprio pode aceitar nesse sonho a ideia de que morreu, mas dá consigo a pensar sobre isso, e percebe que não pode estar morto. Tem que acordar para outra realidade... e acorda!
Conforme diz Carl Jung, há uma distinção entre a morte individual e a morte dos outros. No espaço da realidade "comum" observa-se a morte dos outros, que se desligam do nosso convívio, e é uma consequência lógica da realidade partilhada por todos. No entanto, o simples materialismo não reconhece as suas contradições, e acaba por inventar umas partículas chamadas "pensões", que não justificam o pensamento, servem antes para financiar a sua ocultação.

Há uma realidade partilhada e uma realidade individual. Só o indivíduo que abdique por completo da vivência dos sonhos, atribuindo a si o que não é seu, chamando-lhe "inconsciente", pode negar essoutra realidade. A realidade partilhada, essa tem um fim previsto, quanto à outra, conforme diz Jung, há fortes razões para pensar que não se esgota nesta realidade. Tem nascimento neste útero da realidade terrestre, onde adquire consciência e ideias primevas, mas nada lógico impede que  prossiga para além desta realidade física.

Acreditar num acaso que formou este universo e mais nenhum outro, acaba por nos remeter e prender a uma visão funesta, redutora para além do necessário, em que é cultivado o excessivo medo da morte. E, como sabemos, os medos são excelentes recrutadores de vontades...
Nem sempre terá sido assim, já que as circunstâncias de guerra implicavam até uma visão voluntarista, em que o modelo de vida, a ideia da morte honrada, seria até usada no sentido oposto - recrutamento de guerreiros que não temiam a morte. Na maioria das vezes esses combatentes desconheceriam pouco mais do que um código de valores eficaz para a fidelidade ao líder, ou à tribo... podendo ser tribo de preservação genética, ou de preservação religiosa. Na prática foram progressivamente usados contabilisticamente por uma inteligência secreta, como autómatos em confrontação.

O que aprendemos em conjunto, e que vai para além desta realidade material, é que há noções abstractas que não são apenas ilusões individuais... e na pior das hipóteses serão ilusão da espécie humana. Essas noções abstractas estão na nossa linguagem, ajudaram a descrever e compreender a realidade comum, mas vão muito para além dela.
Nem calhaus, nem vegetais, pensam abstractamente (pode duvidar-se de alguns animais com comportamento social...), por isso essas noções abstractas só emergem da realidade através do nosso pensamento, e no entanto, pela abstracção matemática, acabamos por constatar que essas ilusões mentais têm afinal algum correspondente na nossa realidade, e servem para modelá-la.
Portanto pretende-se fazer crer que apenas esta realidade é possível, quando é esta própria realidade que nos induz ideias que mostram que ela é apenas um caso particular sujeita a leis de modelação, que até podemos grosseiramente simular em computador.

Poderemos até no futuro ser capazes de simular realidades virtuais, onde os pequenos entes computacionais ganhem cognição capaz de iludir uma auto-consciência, mas isso não faria de nós seus deuses, seríamos apenas criadores, já que as dúvidas sobre criação que levou à nossa própria existência não ficariam resolvidas por esse meio.

segunda-feira, 7 de maio de 2012

Caricaturas revolucionárias

As questões que se levantam à época da Revolução Francesa, estão bem retratadas nalgumas caricaturas de Gillray.

A caricatura é 1792, passados 3 anos e meio sobre a "tomada da Bastilha", e para além da clareza do desenho, os balões dos personagens dizem o seguinte...
French Liberty: O Sacre Dieu! _vat blessing be de Liberté. Vive Le Assemblè Nationale! _ no more Tax! _ no more Slavery!_ all Free Citizen! _ ha hah! _by Gar, how we live!_ve swim in the Milk & Honey.
British Slavery: Ah! this cursed Ministry! they'll ruin us with their damn'd Taxes!_ why, Lounds! they're making Slaves of us all, & Starving us to Death.

Gillray não é propriamente um vassalo passivo, como já tivemos oportunidade de mostrar com outras caricaturas (sobre Napoleão ou sobre Cook), mas coloca-se claramente do lado conservador. Ficava claro para os Tories que o caminho da "liberdade francesa" tinha levado a uma regressão, a uma pobreza apenas alimentada por uma ilusão de liberdade. Ao contrário, os ingleses queixavam-se dos impostos, mas de barriga cheia...
A afiliação política aos Tories, mesmo anti-Whig, fica ainda mais clara na caricatura seguinte:

Devil: nice Apple Johnny! _ nice Apple.
John Bull: Very nice Napple!_ but my Pokes are full of Pippins from the other Tree: & besides I hates Medlars they're so domn'd rotten that I'se afraid they'll gee me the Guts-ach for all their vine looks!

Em primeiro plano, na árvore da "Liberté", com o barrete frígio da Revolução Francesa, a serpente representando o Diabo oferece uma maçã de "Reforma", que o "zé povinho" inglês recusa dizendo ao invés tratar-se duma nespera europeia (associada a prostituição). Esta árvore reflectiria um requisito de reforma exigido pelos Whigs, que aparecem como fruto nesta árvore.
Mais atrás, a árvore de onde o personagem obteve as "maçãs verdadeiras"... a árvore dos Tories, com  raízes nos Comuns, Rei e Lordes, troncos na Justiça subdivididos em Leis e Religião, com maçãs de liberdade e segurança(?). 
Na árvore da frente, as raízes são a inveja, ambição e desapontamento, levando a um tronco de oposição, subdividido no tronco dos "direitos do homem" (de onde saem as maçãs do Clube Whig, da "Liberté", da conspiração, revolução, pilhagem, democracia, assassínio, traição, escravatura) e no tronco da "extravagância imoral" (com maçãs da idade da razão, deísmo, impiedade, blasfémia, ateísmo).
A Inglaterra conhecera a Revolução de Cromwell, e o sistema aceite depois por Charles II tinha permitido uma estável Monarquia Parlamentar (que ainda hoje se mantém...), e ainda recordaria os excessos vividos na República de Cromwell, no século anterior. A divisão parlamentar Tories-Whigs debatia estas duas visões. 
É curioso que ainda hoje os ingleses ironizam dizendo que a Inglaterra tem uma Monarquia Parlamentar, enquanto a França mantém uma República Monárquica (devido aos excessivos poderes presidenciais).

Convirá notar que o período da Revolução Francesa permitirá por contágio na Inglaterra uma liberdade suplementar, quase um "Dumping", que iludirá um pouco a situação que se irá seguir. A Inglaterra de Gillray não terá muito a ver com a que irá ser objecto da ilustração de Charles Dickens, já que a Revolução Industrial acabará por trazer uma exploração humana, e este tipo de abertura de ideias ficará encerrado. Será depois o tempo em que Lewis Carrol falará através de Alice sobre os "Telescópios que se fecham"!

Convenção ou subvenção?
Porém podemos ver como alguma liberdade crítica era ainda publicada, como neste cartoon de Woodward, de 1809, sobre a Convenção de Sintra... em que há um acordo entre Ingleses e Franceses sobre o destino a dar ao tesouro português:

- This is the City of Lisbon
- This is the Gold, that lay in the City of Lisbon
- These are the French who took the Gold that lay in the City of Lisbon
- This is Sir Arthur (whose Valour and skill, began so well but ended so ill) who beat the French, who took the Gold, that lay in the City of Lisbon.
- This is the Convention that Nobody owns, that saved old Junots Baggage and Bones, altho Sir Arthur (whose Valour and skill, began so well but ended so ill) had beaten the French, who took the Gold, that lay in the City of Lisbon 
- These are the Ships that carried the spoil, that the French had plundered with so much toil, after the Convention which Nobody owns, that saved old Junots Baggage and Bones, altho Sir Arthur (whose Valour and skill, began so well but ended so ill) had beaten the French, who took the Gold, that lay in the City of Lisbon
- This is John Bull, in great dismay, at the sight of the Ships which carried away the gold and silver and all the spoil, the French had plundered with so much toil, after the Convention which Nobody owns, that saved old Junots Baggage and Bones, altho Sir Arthur (whose Valour and skill, began so well but ended so ill) had beaten the French, who took the Gold, that lay in the City of Lisbon.

Há vários pormenores interessantes... começando pelo formato do cartoon que é até moderno na sequência conforme organiza a banda desenhada! Estamos em 1809... e não no Séc. XX.
Depois, a forma irónica de contar a história tem um ritmo repetitivo bastante jocoso!
Finalmente, la pièce de resistance... apesar da vitória dos ingleses (e portugueses!!), Junot pode sair incólume, e retirava-se mesmo com o saque, transportado pelos navios ingleses!... e os portugueses nada tiveram a dizer sobre o assunto? - Estranho? - Amigos de Peniche, agora em Sintra?
Qual seria a vantagem dos ingleses em tanta delicadeza, fornecendo ouro ao inimigo?
Repare-se na cadeira onde se senta John Bull... nas listas alvas e encarnadas:
- fazem lembrar a bandeira dos Estados Unidos da América?
- ou fazem lembrar a bandeira da Companhia Britânica da Índias Orientiais?
- ... ou fazem lembrar ambas?

Conforme já aqui referido, havia um projecto comum das Companhias das Índias Orientais, que incluía o desenvolvimento dos Estados Unidos da América. Por isso, é natural que o ouro português não tivesse financiado a "Revolução Francesa", mas sim a "Revolução Americana". Através das suas influentes lojas maçónicas, os três países concordariam com esse destino... que no fundo apenas comprometia os fundos reais portugueses, duma corte instalada no Brasil.

Apesar da derrota francesa no curso das Guerras Peninsulares, o espólio português pilhado não regressou, e também nunca se viu um grande rasto em França! Durante todo o Séc. XIX, Portugal e Espanha ficariam permanentemente endividados, ao passo que a França renascia da guerra em poucos anos, recuperando o seu desenvolvimento, a níveis que tornavam a imagem de miséria de Gillray uma ilusão do passado, e talvez depois mais apropriada aos povos ibéricos, aliados dos britânicos. Isso levou a revoltas populares, como a da Maria da Fonte, que trouxe de novo tropas francesas a território ibérico... mas agora ao abrigo de Quádrupla Aliança, em que Inglaterra e França eram aliadas para cuidar da permanência do regime de endividamento das nações ibéricas, e evitar qualquer ressurgimento nacionalista.

sábado, 5 de maio de 2012

Arquitecturas (1)

Um dos aspectos engraçados das ciências consiste em excluir da sua observação, da sua matéria de análise, o processo que levou à sua existência... ou seja, excluem-se os cientistas.
No maior pragmatismo material, pretende-se modelar, compreender, todos os processos racionais do universo, falando-se em coisas absurdas como o Big-Bang, etc... procurando transmitir uma ideia de grande potência e controlo, mas varre-se para debaixo do tapete uma constatação óbvia - ninguém faz a mais pálida ideia do processo que leva os cientistas a produzir tais modelos. 
Inventaram-se palavras para isso - inspiração, génio, etc... e a posteriori até podem tentar encontrar-se nexos justificativos, que não são ciência, mas mero prognóstico depois do desfecho. Conforme já foi aqui mostrado, tal capacidade está fora do alcance dentro do próprio sistema.

Assim, os materialistas que só vêem ciência, retiram o homem criador das suas equações.
Entram na mais básica contradição - pois não há matéria que justifique o homem que modela a matéria.

Apesar disso, não deixam de levar ao limite uma concepção universal, que praticamente chama "acaso" a tudo o que não consegue explicar. Conforme já dissemos, numa deriva algo ateísta, a visão científica introduziu o monoteísmo da deusa Fortuna... o "tive sorte" substitui o "graças a Deus". 
É claro que há reacções humanas semi-previsíveis, que podem constituir alguma ciência, mas não se aplicam a cada indivíduo, mas sim a grandes conjuntos... aliás como também se passa na ciência atómica.
A estatística pode funcionar bem se o sistema não for muito volátil...

Por isso, para efeitos de controlo humano, procuram-se estudos de acção-reacção... sendo mais ou menos óbvio que uma promoção de preços provocará um fluxo consumista. Induz-se ainda uma ideia de racionalidade, de filiação ideológica, que permite previsões eleitorais... ninguém considera possível que o eleitor assinale uma cruz "ao acaso"... e no entanto seria mais eficaz isso do que uma abstenção, ou voto em branco.
A ideia de racionalidade humana é muito útil para o controlo e organização da sociedade. Por isso, vão-se criando leis, modas, costumes, tendências, onde com base nessa racionalidade induzida se pode prever o comportamento humano. Apesar das pessoas terem a possibilidade de escolher a cor do seu vestuário, ninguém espera que mudem consoante as cores do arco-íris durante os 7 dias da semana. Ao contrário, o sistema até sugere quais as cores que estão "na moda", e uma boa parte das pessoas acaba por ter essa tendência adquirida de obedecer, seguindo a moda. Aliás, as modas de diversos grupos são  um bom aferidor da sua penetração, facilmente visível pelo sistema (caso paradigmático foram as tendências hippies ou punks, onde nem era necessário haver inquéritos para saber quantos existiam!)

O homem que se torna rígido, reactivo apenas a condicionantes externas, fica previsível, e em casos graves, abdica da sua individualidade, operando como uma máquina numa lógica em que a sua acção é apenas reacção. Há mau génio individual no pontapé que Salvador Dali dá num mendigo de Paris, para afirmar o seu surrealismo, enquanto há bom génio dos novos deuses ao deixarem cair a maçã na cabeça de Newton, permitindo a divulgação da teoria da gravidade. Para evitar os excessos do mau génio individual, que já conduziram a grande caos, os deuses do velho e novo panteão vão-no guardando numa Lucerna, só deixando escapar aquilo que não considerem perturbar a sua ordem.
Como morder a maçã do conhecimento é perigoso, pode haver génios autorizados, desde que o seu bom  génio seja controlável, e não ganhem vida própria a ponto de despertar o seu mau génio. 

Tal como a ciência produzida pelo Homem não será suficiente para justificar o Universo do ponto de vista material, também a visão religiosa clássica não é mais eficaz. Há diversas concepções, mas não são muito diferentes, talvez pretendendo mais modelar uma classe dirigente (normalmente diferem mais na forma física ou espiritual, e nas hierarquias e poderes atribuídos).

É claro que há uma concepção religiosa primeva, que assenta na possibilidade filosófica de cada homem se poder ver como um deus ensimesmado. O seu aspecto mais simples é ilustrado neste excelente cartoon de Bill Waterson:
(a frase final da mãe... I'll bet he grows up to be an Architect!)
[imagem em progressiveboink.com ]

Numa básica brincadeira infantil, Calvin ilustra essa capacidade de podermos agir como deuses, onde podemos decidir o curso da história, em que os bonecos são efectivas marionetas, peças mentais sujeitas ao enredo. Nesses enredos normalmente há uns escolhidos para maus, outros para bons, uns filhos da escrava má-sorte, outros filhos eleitos, destruições, etc... dir-se-ia coisas de crianças!
Porém, para além dessas criações de brincadeiras conscientes, sabemos ainda que somos alvo criações inconscientes, que aparecem sob a forma de sonhos. Também aí parecemos ter a capacidade de criar mundos, e graças a essa inconsciência, aparecemos até como personagens do próprio mundo que "criamos". Como sabemos, o nosso percurso nesses sonhos nem sempre é favorável, e o enredo pode virar pesadelo. No entanto, em condições normais, ninguém tem medo de partir para um mundo desconhecido, que é o mundo dos nossos próprios sonhos. Fazemos isso todas as noites, sem colocar o problema definitivo de nem sequer acordar... confiamos que acordaremos.

De facto, nada obsta considerar um nível superior criador de um nível inferior... o grande problema é que isso assume implicitamente uma sequência infindável de níveis superiores. A ideia da autocriação, a partir do nada, é semelhante à do Big-Bang... pode justificar, ou melhor, ilustrar, o resultado da criação, mas ignora completamente o processo criador. Para além disso, conforme evidenciado no texto Paradoxo do Pensador vai levar a contradições com ideias de omnipotência, omnisciência, e outras faculdades, a menos que sejam dirigidas ao nível inferior, e não ao próprio nível.

Aquilo que Calvin ilustra ainda é que o seu papel divino é solitário, e sem outra resposta dos bonecos, que não seja conhecida por si, a brincadeira rapidamente perderá o interesse, e ele irá procurar trocar experiências com outra criança, alguém imprevisível... até que se aborreça de novo com as incompreensões dos outros, e volte para o modo dos brinquedos obedientes.

A introdução de entidades externas, tanto pode resultar de necessidade de um complemento justificativo, como da necessidade de resolver um problema, funcionando aí quase o papel dos deuses como o de escravos, que deveriam cuidar das necessidades e problemas individuais dos humanos, garantindo-lhes ainda um lugar paradisíaco... já previamente construído! A ideia de serem os próprios humanos a empenharem-se em construir um paraíso terrestre, parece carregar o nome dado por Thomas More, será utopia.

É claro que há sempre a hipótese de nos fecharmos no universo feito à nossa medida, onde seremos os escolhidos, e onde os outros ou não têm lugar, ou terão que se encaixar, mas o seguimento desse fecho tem um desfecho mais ou menos previsível de ficarmos almas solitárias, pela eterna desconfiança nos outros. Essa eterna solidão nem resulta de um julgamento doutrém, surge como resultado do caminho seguido, pelo próprio julgamento.

terça-feira, 1 de maio de 2012

Mayday

Mayday... é um sinal de socorro.
Mayday... é o primeiro de Maio. 
Um dia da Maia, deusa-da-Terra, comemorado por trabalhadores/servos/escravos no mês de Maio.

O sinal de socorro pode ser entendido de muitas maneiras. Eu entendo-o como um pedido de ajuda de decisores para controlarem o Demo nas suas Demonstrações (Demonstrations=Manifestações).
Quem é o Demo?
Não precisamos falar das Terras do Demo... o Demo vê-se no grego e significa Povo.
O Demo foi e sempre será o "povo", a multidão que vive na escuridão, controlada por alguns iluminados.
Por isso, quando S. Jerónimo introduz a designação "Lucifer", transforma a expressão "portador da luz", que antes se aplicara a Cristo, no pior inimigo dos homens e de uma concepção de Deus.
O povo irá aprender a temer o "Demo", que é afinal o próprio povo, e ainda "Lucifer" que era designação de Cristo - ou seja iria ter como principal inimigo aquele que traria a luz, que libertaria o povo das trevas.
Do ponto de vista da lógica de manutenção do poder, é algo tenebrosamente bem pensado.

Na lógica do poder, podemos ter um sistema de classes, que estabelece uma hierarquia bem definida, mas que arrisca a ser pouco eficaz.

1) A primeira etapa, a escravatura, que remonta à Hera do Cobre.
Escrevo propositadamente Hera e não Era.
Os que descansam nas informações exclusivas dos livros do passado, dos testamentos dos Velhos, conhecem, desconhecendo, um detalhe importante sobre a História que virou Estória... e não se trata apenas desta História poder ficar ocultada numa nova Estória. Sobre a mentira não se erguem vencedores que reescrevem a História, erguem-se ilusões.

O sujeito que nascia na condição de escravo não era obviamente um trabalhador motivado.
A sua produção era claramente destinada a incrementar o poder de quem oprimia a sua família, a sua tribo, o seu povo. Pior que isso, os escravos reconheciam facilmente os opressores e estes podiam ser alvo de uma revolta. O exemplo que marcou esta ira foi a revolta de Spartacus, e o erro crasso, de Crasso, em reprimi-la de forma exemplar com 6000 crucificações na Via Ápia... a Cruz tornou-se definitivamente num símbolo do sofrimento dos escravos, algo continuado com o cristianismo.

2) A segunda etapa, o servilismo, que irá fundar a Hera Média, ou Idade Média.
O cristianismo teve a virtude de incutir nos escravos uma religião de aceitação do sacrifício, uma recompensa numa vida posterior, e a ideia de um juízo final. Talvez não fosse ainda motivante como factor produtivo, mas apaziguava o espírito de revolta.
A progressiva integração do cristianismo no Império Romano levou mesmo a uma substituição funcional do poder na Idade Média. Roma não caiu, apenas deixou de ser o centro de decisão política e passou a centro de decisão religiosa... No entanto, este centro religioso era afinal um centro de consenso político, que harmonizava as pretensões individuais dos diversos reinos. Os laços familiares entre as diversas famílias reais europeias eram o corpo comum às várias cabeças coroadas, uma Hidra portanto.
Os Godos serviram a ilusão de vários poderes, mas mantinham o mesmo centro... o poder reconhecido era o outorgado pelo Papa, em Roma.
Nessa transição cumpriu-se ainda uma pretensão cristã, há muito adiada... o fim da escravatura! Para além disso, a liberdade do escravo, agora servo, acabava por ser mais "barata" já que o seu senhorio não estava "obrigado a alimentá-lo".

Só que o fim da escravatura teve alguns preços... Primeiro, para os próprios escravos, que não tinham terras outorgadas, e assim ficavam completamente dependentes do trabalho em terra alheia.
Da condição de escravos, remetiam-se à condição de servos, para subsistência própria. Essa dependência, essencialmente alimentar, tornava-os na prática em novos escravos.
O sistema requeria ainda uma efectiva regressão civilizacional, por forma a não permitir grandes progressos tecnológicos, mantendo uma constante necessidade de trabalho. Os impostos seriam uma desculpa, mas o que se procurava efectivamente seria manter as cabeças dos servos concentradas na produção. Houve revoltas, mas os grupos que se revoltam seriam sempre frágeis pela falta de organização, pelas rivalidades e invejas internas... e pior, desconheciam o efectivo poder da força que enfrentavam. Em caso de necessidade, o conhecimento guardado, herdado dos Romanos (e de muitos outros antes) revelaria armas completamente desconhecidas ao uso comum do povo.
O sistema foi aparentemente eficaz durante um milénio... e não caiu, mudou de novo a sua face.

O problema principal foi a pimenta... ao fim um milénio, era necessário apimentar o sistema!
Um sistema destes vive da ocultação, de regressão, de proibição de viagens... não só de barcos, mas até de carroças (excepto para transportar alimentos). Aguenta, mas novamente não é produtivo!

A sua extensão e concertação ultrapassou a Europa, esteve presente de igual forma no mundo islâmico, e também nas sociedades asiáticas. Essa espantosa harmonia de desenvolvimento seguido de não-desenvolvimento revela uma extensão global.
No meio, entre a Europa e a Ásia, estavam os Tártaros... que de Genghis Khan a Tamerlão constituíram vastos impérios, denominados Mongóis, ou Mogol.
O Tártaro era afinal o Inferno grego... nos terrenos de Gog e Mogog
Muralha de Ferro construída pelos persas (com ajuda dos 
"sobrenaturais" Jinn) para conter a invasão dos bárbaros Gog e Magog

"In verno"... (entre escravos) o inferno da elite seria de facto uma desprotecção, no meio do povo. Por isso, a primeira evolução medieval começa com o aparecimento de literatura vernacular, na linguagem popular, fora do latim, como é o caso da Divina Comédia, de Dante.
Tal como antes o Tártaro dos Hunos ameaçara e fracturara o Império Romano, também o Tártaro de Tamerlão ou Khan parece ameaçar de novo a estabilidade euroasiática... Marco Polo atesta-o, aparecem depois os Otomanos como novo foco de preocupação, e a Velha Europa é forçada a abrir o véu a novas fronteiras. Os Tártaros desaparecerão depois com a expansão russa de Pedro e Catarina, e da memória dessa civilização ficou muito pouco, se atendermos ao esplendor relatado de Samarcanda e outras cidades.

3) Terceira etapa, o trabalhador e "cidadão", que irá definir a Hera Moderna e Contemporânea.
A solução para evolução medieval começara já a ganhar corpo com os Templários. No início, o argumento principal seria uma extensão da influência da fé, mantendo o mesmo corpo de união na expansão e consolidação ultramarina. Porém, a ideia, que beberá de influência judaica, do Templo de Salomão, e da maçonaria, será uma estrutura de base económica.
Ao beber nos clássicos, recolocar-se-ia a ilusão como base de sustentação.

De início a expansão pelos "descobrimentos" era tímida e muito controlada. Começava a surgir a pimenta que iria apimentar a sociedade europeia, mas necessitava de uma Inquisição activa, que controlava a publicação de material subversivo. Ao mesmo tempo, estas explorações iniciais eram paralelamente conquistas e destruição de civilizações e vestígios anteriores. Caíram Aztecas, Maias, Incas, mas também outras culturas, cujo nome nem sobreviveu.
Um problema efectivo seria evitar uma migração descontrolada da população para outras paragens, e por isso a ideia de colonização acabará apenas por ocorrer já no fim da Idade Moderna, Séc. XVII. 
Se por um lado os servos se tornavam mais livres, e migravam para outras paragens, aparecia uma nova servidão, novamente sob a forma de escravatura, que libertava parcialmente os trabalhadores europeus. Agora os servos podiam ter escravos, e criava-se um novo degrau, que mantinha a estrutura.

O apimentar da sociedade medieval fez o Renascimento, e o conhecimento perdido foi rapidamente recuperado. Apareceu uma nova classe média, burguesa, que aceitava as regras sob condição do seu enriquecimento. O dinheiro, antes escasso, demasiado preso ao valor do metal, passou a circular abundantemente, pelos suplementos de ouro, gerando um circuito de confiança mercantil.
A produtividade conseguia-se com esse estímulo mercantil, e os produtos deixaram de ser fabricados apenas para consumo local, iniciou-se um efectivo comércio de grande troca de bens.

Podemos distinguir duas fases. No início o comércio foi principalmente desenvolvido pelo circuito de navegação com o Oriente. No Ocidente, no continente americano, houve "conquistadores", e as colónias demoraram a desenvolver-se, pelo que não havia propriamente necessidade de trocas, havia um envio de mercadorias para Espanha. Na parte Oriental foi diferente, não houve conquista portuguesa, e foi por esse lado que se consolidou a importância comercial, depois através das diversas Companhias das Índias Orientais.
O principal foco de comércio seria interno à Europa, e não teve o mesmo impacto de desenvolvimento pelo lado da Índia ou da China. Foi dentro da Europa que se desenvolveram as estruturas de comércio, centradas nas Companhias das Índias. Com Henrique VIII em Inglaterra, e com o favorecimento à Reforma de Lutero, noutros reinos, o centralismo do poder papal em Roma foi perdendo a sua importância, e mesmo a Contra-Reforma não alterou isso.

Com a Guerra dos Trinta Anos, a decisão passou por uma independência das nações face ao poder centralizado em Roma, mas principalmente permitiu ainda uma autonomia dessas Companhias das Índias Orientais, que iriam consolidar o comércio. Gerou-se um poder comercial independente do poder real, e a estrutura de poder das nações complexificou-se. O governo deixou de estar centrado na aristocracia, já que passava a depender fortemente do comércio dominado pela burguesia.
Por um lado, há experiências no sentido de libertação total da aristocracia, que começam com a Guerra Civil Inglesa, e em que Cromwell será o primeiro regente de ascendência não real na Europa, desde o Império Romano. Por outro lado, há tentativas de libertação do poder comercial das Companhias das Indias, que no caso francês pela bancarrota levaram à Revolução Francesa.
A burguesia tenta reinstalar a ideia de República, mas a sua fragilidade, e a facilidade de manipulação do ímpeto popular, caem nas armadilhas cortesãs, na falta de referencial unificador (o rei), e acabam por adiar o projecto. As primeiras grandes repúblicas só vão aparecer na transição do Séc. XIX para o XX, se excluirmos os exemplos americanos, onde não havia cortes instaladas, ou ainda "pequenas" repúblicas, como a Holanda (que regressará a monarquia) ou Veneza.

O atraso na descoberta e colonização de novos territórios teve inicialmente a responsabilidade no centralismo de Roma, mas prosseguirá com as várias Companhias das Índias. Uma razão, entre outras, terá sido a necessidade de consolidar e fortalecer o poder comercial. As colonizações sob controlo das regências europeias funcionariam no sentido de exploração dos territórios, e não propriamente no sentido do desenvolvimento comercial.
O grande projecto será a criação de raiz um Estado de modelo comercial, que serão os Estados Unidos. Uma burguesia, unida de forma trans-nacional através da maçonaria, aparece assim apostada num modelo de um "mundo novo", liberto da influência aristocrática.

O problema da real escravatura, que ocorre em simultâneo, aparece como algo relegado para segundo plano, na consolidação da estrutura americana. O modelo de libertação dos servos, deixara esquecida a escravatura, na lógica economicista. Os próprios trabalhadores acabam por ficar desprotegidos no pragmatismo do livre capital. De escravos a servos, e depois a cidadãos trabalhadores, os sistemas acabam por não conseguir impedir o estabelecimento de uma nova aristocracia que exige servos.
É nesta lógica de problema trans-nacional que surgem as ideias marxistas, e o palco escolhido será uma Rússia sob a forma de União Soviética. Esta lógica trans-nacional acaba por abafar as nacionalidades, reduzindo-lhes a História e a margem de manobra.

As experiências republicanas europeias (Itália, Portugal, Espanha, Alemanha) acabam por reeditar esse espírito nacionalista, entretanto submerso ou humilhado, sob a forma de regimes ditatoriais. As monarquias liberais, menos susceptíveis a tomadas súbitas de poder, e ligadas entre si, reagem.
A essa aliança trans-nacional, juntar-se-ão EUA e URSS, regimes aparentemente antagónicos, mas com génese idêntica, que derrotarão a visão nacionalista na 2ª Guerra Mundial.
Qualquer visão nacionalista é reprimida, pois não resolveria o problema global, e a médio prazo retomaríamos as guerras habituais entre nações, mas numa escala bem maior. Quanto à URSS, o sistema de controlo centralizado acabou por criar vícios de poder semelhantes aos da aristocracia, acabando por sucumbir à própria experiência.

Com tanto para esconder, tudo se vai mantendo escondido... mas raramente esquecido!
Por isso, os problemas nacionalistas, que resultam da falta de verdade histórica, acabam por ser o maior problema para ordem trans-nacional, firmemente alicerçada no comércio, e o seu controlo é habitualmente associado à maçonaria e ligação judaica, enquanto poder trans-nacional.
A exposição da verdade histórica é reprimida, pelo exemplo traumático da Revolução Francesa, e pela constatação de que a verdade social, a crença, consegue ser facilmente manipulada e sobrepor-se a qualquer racionalidade... especialmente se essa racionalidade tiver atingido limites não racionais!

Ao mesmo tempo acaba por se sobrepor uma visão relativa, ou relativista... da verdade e da felicidade.
Cada indivíduo cresce e forma as suas expectativas de acordo com a sua educação e do que conhece, por isso a felicidade, ou a verdade, acabam por estar condicionadas pela orientação dessa informação. Crê-se assim ser perfeitamente possível oferecer uma ilusão de vida com expectativas de felicidade, onde alguns acidentes podem ser nefastos ou agradáveis, não precisando de justificação.
Os mais ambiciosos, ao subirem demasiado alto, levados na tentação de um Fausto de Goethe, podem confrontar-se com uma realidade completamente diferente... e exprimem esses sentimentos de censura e frustração sob forma artística ocasionalmente apreciada e recompensada, mas também facilmente esquecida.

Na base da pirâmide pode criar-se a ilusão de felicidade e de verdade, mas as falhas são notórias quando se começa a subir, e o risco de boicote começa com quem se apercebe da prisão em que está encerrado, comprometendo toda a estabilidade do sistema ilusório... e que, apesar de tudo, de poder ser visto apenas como uma forma de aumentar a produtividade do trabalho, trouxe um grau de liberdade sem precedentes, quando olhado o início desta história.


In the Kingdom of the Blind the One-Eyed Are Kings

If it were within, within our power
Beyond the reach of slavish pride
To no longer harbour grievances
Behind the mask's opportunist's facade
We could welcome the responsibility
Like a long lost friend
And re-establish the laughter
In the dolls house once again
For time has imprisoned us in the order of our years
In the discipline of our ways
And in the passing of momentary stillness
We can see our chaos in motion, our chaos in motion
We can see our chaos in motion
View our chaos in motion


(1 e 2 de Maio de 2012)