Um dos aspectos engraçados das ciências consiste em excluir da sua observação, da sua matéria de análise, o processo que levou à sua existência... ou seja, excluem-se os cientistas.
No maior pragmatismo material, pretende-se modelar, compreender, todos os processos racionais do universo, falando-se em coisas absurdas como o Big-Bang, etc... procurando transmitir uma ideia de grande potência e controlo, mas varre-se para debaixo do tapete uma constatação óbvia - ninguém faz a mais pálida ideia do processo que leva os cientistas a produzir tais modelos.
Inventaram-se palavras para isso - inspiração, génio, etc... e a posteriori até podem tentar encontrar-se nexos justificativos, que não são ciência, mas mero prognóstico depois do desfecho. Conforme já foi aqui mostrado, tal capacidade está fora do alcance dentro do próprio sistema.
Assim, os materialistas que só vêem ciência, retiram o homem criador das suas equações.
Entram na mais básica contradição - pois não há matéria que justifique o homem que modela a matéria.
Apesar disso, não deixam de levar ao limite uma concepção universal, que praticamente chama "acaso" a tudo o que não consegue explicar. Conforme já dissemos, numa deriva algo ateísta, a visão científica introduziu o monoteísmo da deusa Fortuna... o "tive sorte" substitui o "graças a Deus".
É claro que há reacções humanas semi-previsíveis, que podem constituir alguma ciência, mas não se aplicam a cada indivíduo, mas sim a grandes conjuntos... aliás como também se passa na ciência atómica.
A estatística pode funcionar bem se o sistema não for muito volátil...
Por isso, para efeitos de controlo humano, procuram-se estudos de acção-reacção... sendo mais ou menos óbvio que uma promoção de preços provocará um fluxo consumista. Induz-se ainda uma ideia de racionalidade, de filiação ideológica, que permite previsões eleitorais... ninguém considera possível que o eleitor assinale uma cruz "ao acaso"... e no entanto seria mais eficaz isso do que uma abstenção, ou voto em branco.
A ideia de racionalidade humana é muito útil para o controlo e organização da sociedade. Por isso, vão-se criando leis, modas, costumes, tendências, onde com base nessa racionalidade induzida se pode prever o comportamento humano. Apesar das pessoas terem a possibilidade de escolher a cor do seu vestuário, ninguém espera que mudem consoante as cores do arco-íris durante os 7 dias da semana. Ao contrário, o sistema até sugere quais as cores que estão "na moda", e uma boa parte das pessoas acaba por ter essa tendência adquirida de obedecer, seguindo a moda. Aliás, as modas de diversos grupos são um bom aferidor da sua penetração, facilmente visível pelo sistema (caso paradigmático foram as tendências hippies ou punks, onde nem era necessário haver inquéritos para saber quantos existiam!)
O homem que se torna rígido, reactivo apenas a condicionantes externas, fica previsível, e em casos graves, abdica da sua individualidade, operando como uma máquina numa lógica em que a sua acção é apenas reacção. Há mau génio individual no pontapé que Salvador Dali dá num mendigo de Paris, para afirmar o seu surrealismo, enquanto há bom génio dos novos deuses ao deixarem cair a maçã na cabeça de Newton, permitindo a divulgação da teoria da gravidade. Para evitar os excessos do mau génio individual, que já conduziram a grande caos, os deuses do velho e novo panteão vão-no guardando numa Lucerna, só deixando escapar aquilo que não considerem perturbar a sua ordem.
Como morder a maçã do conhecimento é perigoso, pode haver génios autorizados, desde que o seu bom génio seja controlável, e não ganhem vida própria a ponto de despertar o seu mau génio.
Tal como a ciência produzida pelo Homem não será suficiente para justificar o Universo do ponto de vista material, também a visão religiosa clássica não é mais eficaz. Há diversas concepções, mas não são muito diferentes, talvez pretendendo mais modelar uma classe dirigente (normalmente diferem mais na forma física ou espiritual, e nas hierarquias e poderes atribuídos).
É claro que há uma concepção religiosa primeva, que assenta na possibilidade filosófica de cada homem se poder ver como um deus ensimesmado. O seu aspecto mais simples é ilustrado neste excelente cartoon de Bill Waterson:
(a frase final da mãe... I'll bet he grows up to be an Architect!)
[imagem em progressiveboink.com ]
Numa básica brincadeira infantil, Calvin ilustra essa capacidade de podermos agir como deuses, onde podemos decidir o curso da história, em que os bonecos são efectivas marionetas, peças mentais sujeitas ao enredo. Nesses enredos normalmente há uns escolhidos para maus, outros para bons, uns filhos da escrava má-sorte, outros filhos eleitos, destruições, etc... dir-se-ia coisas de crianças!
Porém, para além dessas criações de brincadeiras conscientes, sabemos ainda que somos alvo criações inconscientes, que aparecem sob a forma de sonhos. Também aí parecemos ter a capacidade de criar mundos, e graças a essa inconsciência, aparecemos até como personagens do próprio mundo que "criamos". Como sabemos, o nosso percurso nesses sonhos nem sempre é favorável, e o enredo pode virar pesadelo. No entanto, em condições normais, ninguém tem medo de partir para um mundo desconhecido, que é o mundo dos nossos próprios sonhos. Fazemos isso todas as noites, sem colocar o problema definitivo de nem sequer acordar... confiamos que acordaremos.
De facto, nada obsta considerar um nível superior criador de um nível inferior... o grande problema é que isso assume implicitamente uma sequência infindável de níveis superiores. A ideia da autocriação, a partir do nada, é semelhante à do Big-Bang... pode justificar, ou melhor, ilustrar, o resultado da criação, mas ignora completamente o processo criador. Para além disso, conforme evidenciado no texto Paradoxo do Pensador vai levar a contradições com ideias de omnipotência, omnisciência, e outras faculdades, a menos que sejam dirigidas ao nível inferior, e não ao próprio nível.
Aquilo que Calvin ilustra ainda é que o seu papel divino é solitário, e sem outra resposta dos bonecos, que não seja conhecida por si, a brincadeira rapidamente perderá o interesse, e ele irá procurar trocar experiências com outra criança, alguém imprevisível... até que se aborreça de novo com as incompreensões dos outros, e volte para o modo dos brinquedos obedientes.
A introdução de entidades externas, tanto pode resultar de necessidade de um complemento justificativo, como da necessidade de resolver um problema, funcionando aí quase o papel dos deuses como o de escravos, que deveriam cuidar das necessidades e problemas individuais dos humanos, garantindo-lhes ainda um lugar paradisíaco... já previamente construído! A ideia de serem os próprios humanos a empenharem-se em construir um paraíso terrestre, parece carregar o nome dado por Thomas More, será utopia.
É claro que há sempre a hipótese de nos fecharmos no universo feito à nossa medida, onde seremos os escolhidos, e onde os outros ou não têm lugar, ou terão que se encaixar, mas o seguimento desse fecho tem um desfecho mais ou menos previsível de ficarmos almas solitárias, pela eterna desconfiança nos outros. Essa eterna solidão nem resulta de um julgamento doutrém, surge como resultado do caminho seguido, pelo próprio julgamento.
Sem comentários:
Enviar um comentário