Alvor-Silves

quinta-feira, 26 de maio de 2011

A última piada du Bocage

A piada é simples, foi escrita por Vilhena Barbosa em 1860, mas por isso mesmo ele não poderia perceber que a estava a escrever:
No reinado de D. Maria I fizeram-se ali grandes escavações, que afinal não progrediram pela causa referida. Descobriram-se, contudo, alguns edifícios, e extraíram-se muitos objectos d'arte preciosos, medalhas, utensílios, etc. Entre os primeiros figura uma magnifica coluna de mármore branco arraiado de negro e cinzento, com um capitel de ordem corinthia, se bem nos lembramos, primorosamente cinzelado; a qual a mesma soberana mandou inaugurar n'uma praça de Setubal, onde ao presente se admira como um dos melhores adornos da cidade.
Passados onze anos, em 1871 foi inaugurada na praça de Setúbal um monumento de homenagem a Bocage.
Que monumento, que ainda se ergue hoje?
- Uma outra coluna de mármore branco sobre a qual se colocou uma estátua de Bocage:
O monumento a Bocage sobre uma coluna coríntia
... mas não a mesma que ali estava, retirada de Tróia.
[foto antiga no blog pracadobocage.wordpress.com]

É preciso explicar mais o humor dos nossos governantes?
Como o assunto é Bocage e Vilhena, apetece usar o vernáculo para exprimir sentimentos... mas lá está - é melhor observar, perceber, e sorrir. 
O sorriso é a melhor arma da impotência contra o absurdo da prepotência.

Já tínhamos escrito que o epíteto "louca" para D. Maria I revelaria uma outra coisa, tal como aconteceu com Afonso VI... mas não sabíamos que no seu reinado tinham sido feitas grandes escavações em Tróia. Claramente uma antecessora em 100 anos da busca que Schliemann levou depois para a Turquia. Fechada uma Tróia, era preciso abrir as escavações para outra...
Quando é que Schliemann começa as suas escavações em Hissarlik?
Exactamente na década em que se inaugurava a última piada du Bocage, colocada em Setúbal.
Estaremos a ser injustos, não foi provavelmente a última piada sobre Bocage, mas talvez sim a primeira...  sem intervenção do próprio.

Por outro lado, há ainda o "Pelourinho" de Setúbal, curiosamente também com uma coluna de mármore branco, mas cuja inscrição remete para o Marquês de Pombal, 1774, três anos antes de D. Maria I iniciar o seu reinado...


Colocamos ainda a imagem da página, para que não se pense que isto é piada... certamente que não será pensado pela meia-dúzia de leitores habituais, que já perceberam que os assuntos de aqui falo são do mais sério que se pode imaginar... mas poderia ser entendido como tal por algum leitor incauto.
Página 50 do Volume III das Cidades e Villas... de Vilhena Barbosa

Quando, há um ano atrás, referia a citação de Damião Castro sobre as Torres Altas... estava obviamente a lembrar-me dos empreendimentos Torralta, que caracterizaram Tróia.
Se de um lado do Promontório Magno estava uma Estrema Dura (com uma ilha Arrotrebae, quiçá a Arrábida), pelo lado de Tróia estava uma Estrema Arenosa. As areias dos tempos parece que decidiram ter sempre ali uma parte arenosa... e aproveito aqui para esclarecer que suspeitando ser a outra Estrema mais acima do nível do mar, na zona de Grandola... ou Cuba, a descoberta de artefactos tão antigos na península de Tróia tem um indicador diferente sobre a permanência daqueles areais ao longo dos tempos. Uma coluna coríntia é algo que não ilude pelo menos dois milénios...

Quando se fala da cimenteira de Outão, podemos responder com a Torre do Outão, quando se fala da Torralta, podemos responder com as Torres Altas da Tróia de Homero. E é claro que os empreendimentos não são só estes, nem ficaram pela zona de Setúbal... Vilhena faz nomeadamente referência à ribeira de Querteira, onde teria existido uma cidade antiquíssima. Na altura nada existia, mas no decurso do final do Século XX, como sabemos, foi levado a cabo um desenfreado ímpeto construtor no Algarve, que criou uma nova Querteira, chamada Quarteira.
A receita pode ser simples... os proprietários são confrontados com uma possibilidade de inibição de construir por cima de ruínas antigas, logo tornam-se eles próprios cúmplices de quaisquer descobertas. O essencial é prosseguir o empreendimento de pato-bravo... os bravios são apanhados como patos, e feitos cúmplices no sistema de ocultação. De bom grado desfazem-se a custo zero dos achados, sempre tidos como "romanos", e alegremente podem ocultar a paisagem e a história.

Bocage terá sido poeta da Nova Arcádia, e numa altura em que D. Maria I levara a cabo tais escavações em Tróia, o movimento da Arcádia Lusitana renascia, mas a coluna du Bocage, passados quase cem anos, vinha encerrar um movimento entretanto terminado... é revelador saber-se que Eça de Queirós esteve presente na inauguração da nova coluna, conforme se pode ler aqui.

O rasto da coluna troiana original, sendo perdido (a menos que seja o pelourinho), terá guarida nalguma colecção privada, particular, institucional ou estatal... talvez alguns dos artefactos tenham migrado para Turquia, para serem encontrados de novo, num local mais conveniente, por um qualquer Schliemann.

A voz que saiu de Setúbal nessa altura não foi propriamente a dos poetas da Arcádia, mas muito mais a voz de uma Luísa que tomou pelo casamento o nome de uma célebre montanha suiça, o Monte Todi... e coloco assim uma singela âncora para sinalização futura.

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