Alvor-Silves

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Arco Emerita Augusta

Gaspar Barreiros escreve em 1561 uma "Corografia de alguns lugares que estão num caminho...", caminho que o próprio Barreiros teria feito de Badajoz a Milão.
É um título singularmente singelo, onde o autor aproveita para discursar sobre a história dos locais, e não apenas dos visitados...
A propósito de Badajoz começa por falar de um triângulo na Lusitania que reuniria três cidades principais definindo regiões jurídicas, denominadas conventos, e seriam estas segundo Plínio:
- Convento Pacense, de Pax Julia (Beja)
- Convento Scalabitano, de Scalabis (Santarém)
- Convento Emeritense, de Emerita Augusta (Mérida)
Isto surge sobre a indefinição das localizações, mesmo dos lugares romanos, e da pretensa associação castelhana de Badajoz a Pax Julia.

Apesar de Barreiros não alinhar na versão fabulosa dos reis míticos da Ibéria, tal como André de Resende, não deixará de fazer as suas censuras instrutivas... por exemplo, começa por dizer que Plínio citando Varro afirmava terem chegado à Hispania, para além de Iberos, Fenícios e Celtas, também os Persas e Poenos(?).

À época, queixava-se Gaspar Barreiros do antigo ser quase sempre atribuível a Hércules, pela tradição popular... coisa que foi cuidada desaparecer na passagem para os tempos modernos. Quando descreve uma torre de Mérida disse terem tentado associar um símbolo a duas serpentes que Hércules teria no berço, mas ele contesta:
(...) porque além desta cidade ser fundada muito tempo depois que foi Hercules como acima disse, & assim a obra da torre ser moderna, como na sua arquitectura se mostra, eu não creio que em Hespanha, nem em alguma outra parte do mundo haja cousa que com verdade se possa afirmar ser sua, por haver tanto tempo que foi, depois do qual sucederam tantas repúblicas e monarquias, em que afora uns desfazerem as obras dos outros, como os Godos fizeram a muitas dos Romanos & Gregos, ó mesmo tempo as desfizera e consumiria, ó qual se gastou as que estas duas tão ilustres & tão políticas duas nações (que agora nomeei) fabricaram, que menos fizera âs de Hercules sendo mais antigas, & em cujo tempo sabemos ser a arquitectura tão apagada como ainda então era, a qual teve depois entre os ditos Gregos e Romanos posta em toda sua perfeição, se não se ainda cremos nas profecias & torres de Toledo, nos espelhos da Crunha [Corunha], & calçadas de Calez [Cádis], & em tantas fábulas quantas nasciam de cabeças à sua Hydra. 
E  destas vaidades não à lugar nobre em Hespanha, que não tenha suas relíquias, ou em torres, ou em pontes, ou em quaisquer outros edifícios, como ora nestes de Merida, que a gente ignorante usurpa como por mostra & argumento de sua nobreza e antiguidade. Digo tudo isto porque nos mais dos lugares nobres de Hespanha me aconteceu achar sempre sempre qualquer cousa d'esta qualidade que o povo afirma com muita contumacia ser de Hércules, tão grande fortuna foi deste homem, que com uns poucos trabalhos & os mais deles fabulosos, roubou a fama de tantos alheios.
Gaspar Barreiros e António Galvão seguem o discurso da destruição levada a cabo pelos Godos, relativamente a todos os monumentos antigos.
O mais curioso é que depois deste discurso contra este exagero sobre Hércules, Barreiros vai sugerir que o símbolo das serpentes sejam afinal cordas... as cordas do Nó Górdio, e o atribua assim a uma alusão a Alexandre Magno. Isto é especialmente interessante pois para desvanecer Hércules faz aparecer uma conexão do episódio Górdio na Hispania, onde não poderia colocar Alexandre Magno.
Alexandre e o episódio do Nó Górdio...

O episódio do Nó Górdio tem um correspondente, alguns milénios depois, e chama-se Ovo de Colombo. As estórias produzidas são similares, procurando revelar um espírito audaz resolvendo um intrincado problema teórico com uma simplicidade agreste. Alexandre tocou o Oriente, e terá ido mais além, e o mundo outorgado a Alexandre manteve-se como "mundo autorizado" até que Colombo partiu a casca ao ovo, abrindo o novo conhecimento.

Regressando a Merida, convém notar, como Barreiros faz, que o cognome Augusta, em Emerita, se relaciona com ser cidade sagrada e não com alguma conexão ao imperador Octávio. Aliás, a adopção do nome Augusto veio acrescentar essa confusão entre o seu nome e os locais sagrados... talvez uma razão enebriante que levou a que a Era Hispânica começasse com a sua regência, conforme já abordámos.

Mérida conseguiu preservar vários monumentos antigos que Barreiros enumera, para além do aqueduto, é notável a enorme ponte "romana", que Barreiros diz contar mais de 70 arcos... coloco "romana" entre aspas, porque o próprio diz que a tradição a associava também a Hércules!
Aqueduto e ponte "romana" de Mérida

Ora, como não conhecemos outras pontes restantes que não sejam romanas, é difícil colocar em causa que a ponte seja ou não romana... é quase obrigatório que uma ponte da antiguidade seja romana. Caso contrário, será medieval... manda a escolástica que assim se pense.

No mesmo sentido fala Barreiros de um notável Arco de Triunfo... começando por esclarecer que nunca poderia ser arco de triunfo romano, pois esses só estariam autorizados a ser feitos em Roma.
De facto, se olharmos para o arco, é notável a sua concepção, com uma sustentação de pedra angular.
Arco em Mérida (ver e aqui)

Este arco é denominado de "Trajano", apesar de não se lhe conhecer a origem... diz Barreiros, por lhe chamarem "arco triunfal":
Assim que não tendo este arco de Mérida, nem escultura de imagens, nem letras, nem magestade na obra, como se pode chamar triunfal, pois nele não há feitos nem nome do que triunfou? 
(...) Parece que este trofeu posto que tão bárbaro seja, teve alguma grande fortuna de diversos vencimentos, porque segundo me disseram em Mérida, acham-se algumas medalhas antigas, as quais têm de uma parte umas letras que dizem EMERITA AUGUSTA, & no reverso um arco; 
Este arco, apesar de pouco referenciado, e inserido no contexto da cidade sem destaque, figura ainda no brasão de Mérida... porque talvez como diz Barreiros, os Emeritenses tivessem alguma grande vitória que fosse aí celebrada. Ou ainda... uma coisa que Barreiros nunca escreveria, porque talvez celebrasse a vitória de Hercules contra os Geriões!

6 comentários:

  1. Já ouviu falar das recentes descobertas arqueológicas na cidade de Beja? Através da sua reflexão e opinião, poderíamos ler (mais) um excelente post!

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  2. Muito obrigado pelo comentário e informação.
    Não, não conhecia essas ruínas.
    Presumo que esteja a referir-se aos achados de Conceição Lopes, que se estão a degradar ao abandono:
    http://bejahoje.blogs.sapo.pt/11367.html?thread=52583
    Obrigado pela sugestão, que deverei seguir pois vi que há um interessante achado de lápides invocando Serápis e Isis - o que coloca a mitologia egípcia na Ibéria...

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  3. Não sei se serão esstas. Falo da descoberta das muralhas pré-romanas, aquando das obras do "Liceu". Li algures (devia, mas não me lembro onde) que esta descoberta poderia ser a prova que Beja foi Conistorga, cidade importante dos Cónios, povo de carácter fenício, cujo território se julgava corresponder ao Algarve.

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  4. Pois, não sei dessas outras descobertas.
    Na wikipedia já está uma referência a essa relação com Beja:
    http://pt.wikipedia.org/wiki/Conistorgis

    É curioso, porque a toponímia presta-se a associações, e já tinha lido que Conimbriga vinha dessa relação com os Cónios.
    A descrição dos povos pré-romanos na península é de uma confusão imensa...
    Só na zona de Portugal, e para além dos Cónios, aparecem os Turdulos (velhos e novos), os Turdetanos, os Lusitanos, os Vetões, os Celtas, etc... e os outros não me lembro de cor.

    A maioria dessas descrições vem do tempo romano/grego, já muito posterior a um período mais importante da Idade do Bronze. A falha na arqueologia ibérica é não procurar os relatos das civilizações ibéricas na Idade do Bronze.
    Para além da influência fenícia, que a houve, faz-se crer que os povos ibéricos e atlânticos estavam quase no Neolítico, sem cidades e reinos organizados.

    Creio que os Cónios são já uma manifestação tardia dessa civilização. O nome é associado à ponta do Algarve - Cunia, por ser cunha, e que antes não estaria a sul, mas sim a oeste:
    http://alvor-silves.blogspot.com/2011/05/linha-que-divide-terra-o-mar-e-os-ceus.html
    na zona do Promontório Sacro, mais concretamente em Lacobriga~Lagos, que foi destruída pelos Romanos.

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  5. ... aliás, os árabes mantiveram a designação Al-Gharb, que significa "a oeste"...

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  6. Para variar, as notícias são difíceis de encontrar... Mas recordo da referência ao nome romano Pax Julia, um nome típico quando se faziam acordos de paz. Que revela, não só uma novo toponímia, como também uma presença importante (com a qual foi necessário fazer a paz romana)

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