Alvor-Silves

sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Mapas no Tratado de Marinharia

Mapas no Tratado de Marinharia achado por João de Lisboa em 1514
1. INTRODUÇÃO. Não querendo falar aqui sobre a enigmática inexistência de mapas, sejam eles egípcios, sumérios, gregos, romanos, etc… fica claro que só temos acesso a uns poucos mapas do final da Idade Média (catalães, italianos), e a verdadeira produção só é começada a partir de 1500. Há alguns mapas que merecem uma atenção e um relevo especial, mas que pouco têm de tão informativo e surpreendente quanto o conjunto de mapas incluso no Tratado de Marinharia (ou Livro de Marinharia) de João de Lisboa, de 1514. Desde a representação do Estreito de Magalhães, às quinas nos castelos em território Inca, ou numa bandeira em Jerusalém, tudo isto deveria merecer a máxima atenção. No entanto, a obra é quase desconhecida, relegada para terceiro plano, e conheço apenas um trabalho de Luís de Albuquerque no final do Séc. XX, sobre uma parte escrita inclusa – que é o Tratado da Agulha de Marear.
Não vamos falar aqui dessa parte escrita, a que parecem faltar muitas páginas. É demasiado evidente o que está nos mapas, e são esses que prendem a nossa atenção imediata.

2. DATAÇÃO. Na página 26 do Tratado de Marinharia surge a primeira indicação sobre a sua data.
Aqui se começa o tratado da agulha de marear achado por João de Lisboa o ano de 1514 - pelo que se pode saber em qualquer parte que homem estiver quanto é arredado do meridiano verdadeiro pelo variar das agulhas.
O ano de 1514 é aqui referido e serve como datação para o Tratado da Agulha de Marear. Não é preciso ser perito em caligrafia para perceber que há duas formas, mas pelo seu uso ao longo do texto percebe-se que terá havido alguma simultaneidade temporal.
A caligrafia para os títulos dos capítulos é diferente, mas alterna com uma caligrafia corrida, de forma natural. Uma excepção é esta inclusão da datação, fora das margens da página. Ou o próprio autor fazia uso de duas formas, o que nos parece difícil, ou houve duas pessoas a escrever o texto, talvez pai e filho, ou mestre e aluno.
A menção “achado por João de Lixboa” deve ser entendida como “encontrado por João de Lisboa”. O corrente sentido popular do verbo achar (no sentido “considerar”, “julgar”) não faz aqui qualquer sentido. É dito claramente que João de Lisboa encontrou um tratado anterior a 1514, que dá conta.

Os problemas de datação continuam com os mapas inclusos. Essas dificuldades são brevemente relatadas na Portugalia Monumenta Cartographica. Aí estabelece-se como data limite superior o ano de 1560, já que as referências ao Estreito de Magalhães, ao Japão, ou aos bancos de D. João de Castro, obrigariam a uma datação posterior a 1540.
A análise feita na Portugalia Monumenta Cartographica parece-nos feita de forma propositadamente pouco detalhada. Não são mencionados problemas nos mapas, inconsistentes com a teoria oficial, que colocam bandeiras portuguesas em território Inca (Perú), em Jerusalém, etc. Seria talvez mais importante publicar os mapas do que entrar em polémicas que poderiam comprometer a publicação da obra em 1960.

3. MAPA DO GLOBO.
(página 104)
O mapa do globo, em representação polar, é talvez a peça mais fascinante do conjunto de mapas no Tratado de Marinharia. Encontramos uma representação que em traços gerais não é muito diferente dos mapas actuais. Mais, é globalmente superior às representações encontradas posteriormente noutros mapas até 1770.
Em vários aspectos este será talvez o melhor mapa-mundi de que há registo durante os 250 anos seguintes à data da sua publicação.
Analisemos a disposição das bandeiras no hemisfério português de Tordesilhas
Reparamos que não há qualquer bandeira na península arábica. Isso só seria possível antes das conquistas levadas a cabo por Afonso de Albuquerque, nomeadamente de Ormuz, e dá-nos uma indicação clara para ser anterior a 1515. Há uma bandeira na China, o que se ajusta aos primeiros contactos em 1513, e também bandeiras em Java e Timor (1512). Não há qualquer bandeira no Japão. As bandeiras seguem a costa africana, indicando as possessões portuguesas, e encontram-se ainda na Índia.
Uma análise desta parte leva-nos a uma consistência com a datação de 1514.
Surge agora o problema oficial, com as bandeiras colocadas na parte americana

Vemos que praticamente toda a costa do continente americano está coberta com bandeiras. Perante a datação de 1514, estamos no ano seguinte à chegada de Balboa à costa do Oceano Pacífico. Portanto, nenhuma das bandeiras na costa do Pacífico se pode referir a presença espanhola (nem a nenhuma outra).
A diferença entre bandeiras azuis e vermelhas tem apenas a ver com a distinção entre as bandeiras de quinas (reais, azuis), e as bandeiras com a cruz de Cristo (vermelhas).
A parte da costa americana que não tem bandeiras, é exactamente a que já se encontraria sob reserva espanhola – uma parte no golfo do México (Cortés desembarca em 1519), e uma parte na costa venezuelana (onde Colombo teria desembarcado em 1502).
Este é na nossa opinião o mapa de 1514 que não sofreu alterações posteriores, tal como o mapa da Europa, que mostra uma situação política anterior a Carlos V, fazendo notar uma bandeira de Castela em Sevilha (Juana I, mas sob influência do pai Fernando), e uma bandeira francesa com o arminho bretão, justificado apenas para o reinado com Ana da Bretanha (que morre em 1514).
(página 81)
Com os outros mapas notam-se algumas inclusões, que “justificariam” a datação posterior do conjunto, e que passamos a explicar.

4. COLA DO DRAGÃO. António Galvão faz referência ao prévio conhecimento do Estreito de Magalhães, que teria sido chamado Cola do Dragão (i.e. Cauda do Dragão).
No ano de 1428 diz que foi o Infante D. Pedro a Inglaterra, França, Alemanha, à Casa Santa, e a outras daquela banda, tornou por Itália, esteve em Roma, e Veneza, trouxe de lá um Mapamundo que tinha todo o âmbito da terra, e o Estreito de Magalhães se chamava "Cola do Dragão", o Cabo de Boa Esperança: "Fronteira de África" (…)
Portanto, não é novidade que poderia haver um prévio conhecimento do Estreito, muito antes de Magalhães ter efectuado a sua viagem.
No mapa do globo não encontramos referência ao “Estreito de Magalhães”, porém um destaque é dado ao Cabo da Boa Esperança. Situação inversa é encontrada nos mapas de pormenor. Aí não encontramos destaque para o Cabo da Boa Esperança, mas um grande destaque é dado ao “Estreito dos Magalhãis”:
(página 72)
Trata-se de uma inclusão posterior facilmente exequível. Acresce que, à saída do Estreito, encontramos uma outra referência a vermelho que ultrapassa os limites do mapa, notando-se a inclusão limitada pelo espaço dizendo “estreito de fernão magalhãis ”. Tudo indica tratar-se de inclusão posterior, a que acresce a designação portuguesa “porto de são Julião”, entre outros detalhes.

5. COSTA DO PERU
(página 68)
No mapa de detalhe sobre a costa do Peru, vemos então castelos com bandeiras nacionais (as cinco quinas são indiscutíveis), e ainda uma possível bandeira islâmica. Não havendo qualquer registo de presença portuguesa nestas paragens, a execução é anterior à conquista castelhana de Pizarro, ou seja, anterior a 1535. Há uma mistura de nomes portugueses e castelhanos, resultado de possíveis inclusões posteriores de nomes, adaptados à conquista em curso. É de suspeitar que as inclusões sejam posteriores a Balboa e a Cortés, anteriores a Pizarro.
6. TERRA NOVA. Outro caso onde se poderia colocar em causa da datação do conjunto, relaciona-se com um mapa da Terra Nova e Labrador, onde se pode ler o nome “Estreito do Franceses”. Este nome poderia ser antigo, relacionado com viagens bretãs, mas pode também ser relacionado com a viagem de Jacques Cartier, sugerindo data posterior a 1535. No entanto, mesmo aqui, parece-nos notória a inclusão de nomes, pela própria necessidade em cortar a palavra “franceses” para adaptar ao espaço existente.


(página 66)
Uma das poucas designações que referem a presença francesa é a de “c. dos bretões”, ou seja Cap Breton (que curiosamente, sob domínio francês, foi chamada Île Royale). O frequente aparecimento do arminho bretão nos mapas de Reinel, na zona de França, faz supor um eventual entendimento com os bretões na exploração da zona da Nova Escócia e Terra Nova.
7. JERUSALEM. Num dos mapas aparece de forma surpreendente uma bandeira azul com as 5 quinas em Jerusalém. Não é um facto menor… todas as Cruzadas tiveram como propósito a reconquista da Terra Santa, por isso não seria ligeiramente que alguém colocaria uma bandeira portuguesa em Jerusalém, perdida para Saladino em 1187. A terceira cruzada, com Ricardo Coração de Leão, e todo o esforço templário durante vários séculos tinha esse propósito.
De que forma isto faz sentido? Como tal facto passaria despercebido na História?


(página 94)
A bandeira não é exactamente igual às restantes bandeiras com 5 quinas. São conhecidos os relatos de Afonso de Albuquerque no sentido de recuperar Jerusalém, havendo referência a uma possível troca com Meca (que após a conquista do Suez estava à mercê dos portugueses). A cidade estava sob controlo Mameluco, com capital no Cairo, e a esse império já o vice-rei Francisco de Almeida tinha infligido uma pesada derrota naval em Chaúl. Afonso de Albuquerque teria pedido autorização ao rei, mas ao invés foi imediatamente substituído no cargo de vice-rei por Lopo Soares de Albegaria, tendo morrido na viagem de retorno.
A partir desse momento, e com a queda do domínio Mameluco pelo império Otomano, o desígnio de conquistar Jerusalém parece ter deixado de figurar como prioridade nas conquistas portuguesas, e em geral, deixou de figurar como objectivo principal, mesmo no Séc. XIX, quando os ingleses possuíam um poder naval completo. A incursão napoleónica chegou apenas a Jaffa, e não prosseguiu pela peste…

NOTA: As imagens aqui apresentadas estão acessíveis no Arquivo da Torre do Tombo.

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Tombo 1

O mundo na internet tende a ser fugaz e sítios que inspiram alguma confiança de estabilidade, por vezes decidem suprimir ou reorganizar o seu material, tornando os links quebrados. Foi hoje o caso de todas as gravuras cujo link apontava para a Biblioteca Nacional. Até que o problema seja resolvido, e para que as imagens não fiquem vazias serão substituídas por cópias que fiz, mantendo um link para o local original.

Assim, e também para maior facilidade de consulta global, decidi ainda fazer uma versão pdf, com a imagem actual do blog, neste primeiro ano: 
Tombo 1 - Ano 2010 - Blog Alvor-Silves

Está ainda disponível um Texto-PDF sobre os Mapas no Tratado de Marinharia de João de Lisboa:
Mapas no Tratado de Marinharia achado por João de Lisboa

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Saudades da Terra

A obra saudades da Terra, de Gaspar Frutuoso (1522-1591), é sem dúvida um texto que nos permite compreender como era já sentida no Séc. XVI a problemática da ocultação sobre a verdade histórica, em particular acerca dos descobrimentos.
É suficientemente ilustrativa a sequência de títulos dos capítulos do primeiro livro
  1. De uns queixumes que faz a Verdade, estando solitária em uma serra da ilha de S. Miguel. 
  2. De um sonho que sonhou a Verdade.
  3. Como via a Verdade figurada sua tristeza em uma ribeira.
  4. Como a Verdade viu vir voando a Fama, e, vendo-a a Fama se desceu onde ela estava, e da prática que ambas tiveram. 
  5. Em que a Verdade diz à Fama quem é.
  6. Como a Fama conheceu a Verdade e lhe disse também quem ela era.
  7. Das novas que deu a Fama à Verdade de seus irmãos o Temor de Deus e a Vergonha do Mundo.
  8. Em que a Fama pede à Verdade que lhe conte as cousas das ilhas, e a Verdade lhe declara umas letras do triângulo que traz no vestido, e a Fama a consola. 
  9. Em que a Verdade, respondendo a uma de duas perguntas que lhe fez a Fama, trata em geral do descobrimento das Canárias e dalgumas coisas delas. 
  10. Do que se diz das linguages de todas estas ilhas Canárias.
  11. De algumas cousas que outros dizem das duas ilhas Forteventura e Lançarote.
  12. De algumas cousas da ilha chamada Gram Canária.
Mesmo sem ler a obra, a sequência de títulos mostra bem ao leitor como Gaspar Frutuoso tem necessidade de fazer um diálogo entre um personagem que é a Verdade e outro que é a Fama.
    Inconveniente, muito inconveniente... a insularidade foi permitindo a primeira edição local de 1873, no Funchal, por Álvaro Azevedo...
    Talvez identificando o problema da obra nesta primeira parte, Azevedo procura reduzir a primeira centena de páginas apenas a 4 páginas do Preâmbulo.

    Os títulos dos capítulos continuam a ser auto-explicativos mais à frente:
    • 22. Em que a Verdade, respondendo à segunda pergunta, conta o descobrimento das Antilhas, que agora se chamam Índias Ocidentais, e como os reis de Castela as possuem, declarando a linha da repartição da conquista antre eles e os reis de Portugal.
    • 25. Em que mostra a Verdade, por experiência de modernos e alguma razão, não estar o estreito de Magalhães antre duas terras firmes, mas ter da parte do Polo Ártico terra firme e da do Antártico somente algumas ilhas.
    • 26. Como parece que Cristóvão Colon com sua viagem deu princípio donde tomou o imperador Carlos Quinto a empresa das colunas que pôs em suas armas e, continuando-a Fernão de Magalhães, desejou de as pôr mais avante, em que se declaram algumas outras insígnias das armas imperiais.
    • 28. Contra as duas opiniões em que, contando a Verdade os reis antigos de Espanha até o tempo que Platão diz serem vencidos dos reis da ilha Atlanta, sem se achar tal vitória, se prova não haver sido tal ilha, e por outras razões não serem estas ilhas dos Açores em algum tempo pegadas com Europa.
    • 29. Em que pela história dos mais reis e sucessos de Espanha, depois de el-rei Eritreo até o tempo de Platão (que dizem que floresceu 450 anos antes do nascimento de Nosso Senhor) não se escreve, nem houve vitória, que reis de ilha Atlanta tivessem de reis de Espanha, nem subversão de ilha Atlanta, nem sinais disso, nem que estas ilhas dos Açores fossem pegadas com a terra de Portugal, cujo mar, junto de sua costa, naquele tempo (sem se tal achar) era muito navegado.
    • 30. Em que põem a Verdade outras histórias de outros tempos além de Platão contra as duas opiniões juntamente contrariadas.
    • 31. Em que a Verdade põem outras razões e conjecturas, por onde parece não haver sido ilha Atlanta.
    Se Gaspar Fructuoso acaba por afastar a teoria de uma ideia de Atlântida, não afasta no seu texto a hipótese da identificação de que a Atlântida fosse uma designação da América... isso era aliás uma larga opinião à época. Que outra "ilha" com as dimensões superiores à Ásia e África juntas (como afirmaria Platão) caberia então no Oceano, existindo a América? 
    Gaspar Frutuoso é irónico sobre este assunto:
    E se Platão literalmente afirma (o que eu duvido) que era tão grande a Atlanta como África e Ásia juntas, e não houve tal ilha, ou não podia ser tão grande como ele diz, como pelas razões ditas claramente se colige, sendo mentira o que a Platão disseram (entendido no sentido literal), como parece ser, eu não vi nunca mentira tamanha, pois é uma mentira tão grande como África e Ásia.
    Há muito para discutir sobre o texto de Frutuoso, deixamos a figura mote da edição de Azevedo (que é concentrada sobre a ilha da Madeira), que é João Gonçalves Zarco.
    Talvez por erro de impressão (falta de C maiúsculo...) o nome aparece adulterado:
    Zarco ou Zargo?

    Esta adulteração prende-se tão somente com a tal alcunha "Zarco"... que sendo "Zargo" faz-nos lembrar Sargo... não o peixe pequeno (ainda que os nomes dos peixes sejam reveladores), mas sim o peixe graúdo, que neste caso seria apropriadamente um Sargão.

    segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

    In-convenientes

    Há pistas e despistes... quando se fabrica uma História, e pela própria experiência ocasional, vão sendo rematados alguns pontos aglomeradores de atenção, destinados aos espíritos curiosos.

    Esses pontos de atenção são chamados "Últimos Mistérios da História, do Mundo, do Universo, etc..."
    Nalguns casos são verdadeiros e incontornáveis pela sua presença persistente na História, mas isso não se deve aplicar indistintamente, nem necessariamente aos casos mais conhecidos.
    Vamos apenas dar alguns exemplos, para ilustrar do que falamos.

    a) Stonehenge
    Fala-se muito de Stonehenge e do seu admirável alinhamento estelar. Excelente!
    Como teria sido possível com tecnologia pré-histórica produzir tal monumento notável, de grande precisão astronómica... talvez só possível no Séc. XX.
    Acontece que Stonehenge foi alvo de remodelação no Séc. XX (ao que vimos, em 1901, 1920 e em 1958). Aquilo que vemos hoje não é exactamente o que existia no Séc. XIX... ou seja, de acordo com um desenho de John Constable em 1835, houve alguma mudança na localização das pedras:

    A alteração feita em Stonehenge: desenho em 1835 e foto no Séc. XX.

    A partir daqui, falamos do alinhamento estelar conseguido com a remodelação do Séc. XX, ou falamos de uma posição original?...
    Para percebermos melhor Stonehenge, fomos encontrar uma Crónica de Reis de Inglaterra, de Richard Baker (Séc. XVII), que fala de Stonehenge... e ao mesmo tempo percebem-se melhor as novas versões que vão aparecendo sobre o Rei Artur e Merlim.
    To this Ambrosius is ascribed the admirable Monument in Wiltshire, now called Stonehenge, in the place were the Britains had been treacherously slaughtered and interred; and of whom the Town of Ambersbury bears its name.
    Richard Baker diz que a planície foi renomeada Salisbury, antes sendo "Plain of Ambrii", assim relacionada com Ambrosius Aurelianus e com esse local de fatídica traição saxónica. Entretanto Ambersbury já passou a Amesbury... vai havendo cuidado em alterar ligeiramente as coisas. 
    Baker fala de como Ambrosius  usando "fogo dos céus" eliminou o rival Vortigern. Fala da sua sucessão por Uter Pendragon, que depois foi sucedido por Artur, por esquema de Merlim (conselheiro de Vortigern).
    A recuperação cinematográfica (King Arthur, ou ainda melhor The Last Legion) de uma história de Inglaterra sob invasões Saxónicas e de um salvador Romano no cerne da lenda Arturiana, não é fruto de uma teoria alternativa histórica recente... é mais fruto de uma miscelânea com estórias de vários séculos. 

    Em suma, Stonehenge é um notável monumento circular... 
    ... mas pode ter sido apenas um monumento associado à Távola Redonda, seguindo o relato de Baker que o associa à lenda Arturiana.


    b) Abu Simbel
    Não é preciso procurar muito para encontrar exemplos recentes.
    De facto, Abu Simbel é um exemplo notável de deslocação monumental, bem conhecido. Apesar disso, tudo se passa turisticamente como se o monumento não tivesse mudado de sítio, devido à barragem do Assuão, que Nasser decidiu construir:
    Foto de Abu-Simbel no seu local original

    Propositadamente ou não, esta deslocação maciça ilustra à presente geração como a alteração histórica é efectuada e como a população continua a visitar Abu Simbel da mesma forma como se nada tivesse ocorrido. As fotos antigas de Abu Simbel já nem sempre são mostradas (é o caso da Wikipedia), e não demorará muito a que se torne num mero detalhe conhecido por especialistas. Quando se perder essa memória, o alinhamento do templo será referido face à localização actual... e talvez também dê para especulações descontextualizadas.

    c) Galápagos
    Falamos agora de um exemplo razoavelmente diferente na forma, mas semelhante no conteúdo.
    Quando se fala das ilhas Galápagos é habitual associar às tartarugas de Darwin...
    Acontece que há uma tese oficial de origem espanhola que coloca a sua descoberta ao Bispo Tomás de Berlanga, por volta de 1535...
    Não é de estranhar a causa - foi acidental, numa viagem para Lima, afastou-se muito da rota!
    Falámos dos acidentes convenientes, para resolverem os in-convenientes.
    João de Lisboa, e o seu Livro de Marinharia é um grande inconveniente!
    Assinalamos num quadrado verde, a localização das Galápagos 
    no mapa de João de Lisboa (c. 1514)

    Inconvenientes, os mapas de João de Lisboa são convenientemente inexistentes na literatura histórica.
    Quando se diz que as Galápagos aparecem em mapas, fala-se de Mercator ou Ortélio, mapas posteriores mesmo com a pior das datações colocada no Livro de Marinharia (inferior a 1560).

    Outro exemplo notável é o mapa do almirante turco Piri Reis de 1513... muito se tem escrito acerca desse mapa, assim escrevendo-se pouco acerca de outros mapas!
    Há uma forçada propaganda superlativa que pretende uma possível representação da Antártida...
    Ora, é bem sabido que nada de original está no mapa de Piri Reis (acho que o próprio assume ter sido baseado em mapas portugueses), e que não estivesse já na bem conhecida representação do globo no Atlas Miller (assim chamado o mapa atribuído a Lopo Homem e aos Reinéis, em 1519):

    Globo de Lopo Homem, Pedro e Jorge Reinel, 1519
    a Lua, o sonho ocidental & o Sol, a alvorada oriental

    O mapa de Piri Reis é extremamente conveniente... sendo uma provável cópia não terá inclusa informação invisível, normalmente colocada pelos cartógrafos portugueses. Essa informação invisível permite descobertas acidentais, como já aqui referimos... no caso do mapa de 1485 de Pedro Reinel, e não só!

    Quem quiser seguir a main-stream, levantar alguma teoria "pseudo-inconveniente" sobre Stonehenge, Abu Simbel, ou sobre o mapa de Piri Reis, pois é natural que tenha conveniente receptividade editorial.
    Sobre esses assuntos, dificilmente falarei mais do que escrevi neste texto.

    Quem quiser trilhar outro caminho, fora dos circuitos de distribuição, da fama, procurando alguma verdade no meio de tanta informação contraditória, a maioria pouco fiável, pois tem muito mais caminho solitário e inglório a percorrer.
    Cito a este propósito Frutuoso, nas Saudades da Terra... "Em que a Verdade diz à Fama quem é":
    Muitos me buscam mais em vaidade que em verdade, mas só aos humildes me manifesto. E, algumas horas, saio à luz, quando não sou buscada; sendo impugnada, mais fermosa resplandesço. Mais seguramente sou ouvida que pregada, e, quase como em deserto, pregada sou antre os mentirosos. 
    Afinal, a Verdade será apenas o que aceitamos quando se identificam as mentiras pelas suas contradições insanáveis... Apenas podemos esperar identificar as contradições, e ir pouco a pouco eliminando as camadas de mentiras.

    A "verdade" manifesta-se como uma questão de fé social, propagandeada por um grupo dominante. Atinge o topo por cooptação, propaga-se por contágio de rumores na base, através das relações pessoais.
    Ocasionalmente essa "verdade" é atingida por contradições e manifestações físicas impossíveis de ignorar... aí o grupo tem que reorganizar-se e inventar uma nova "verdade", ou procurar de uma vez por todas a Verdade.
    É uma questão de escolher lados... os agentes inventores das verdades ocasionais terão cada vez mais dificuldade de credibilidade num processo de procura da Verdade.
    É uma questão de escolher lados, e assumir essa escolha!

    domingo, 26 de dezembro de 2010

    Uma humanidade sem mapas

    Talvez por educação, talvez por falta de atenção, somos levados a certas convicções notáveis.
    Se tivermos que explicar a alguém um caminho complicado, o que fazemos?
    - Podemos dar direcções, 1ª à esquerda - depois em frente - 2ª à esquerda - frente - 2ª à direita.
    No entanto, até mesmo crianças (e sem serem ensinadas na tarefa) sabem fazer um esboço de mapa!

    Por razões inexplicáveis, certamente explicáveis com sapiência erudita, o Homem manteve-se incapaz de esboçar direcções, num simples traçar de linhas, durante milénios e milénios.
    • Os Romanos fizeram imensas estradas, mas foram incapazes de nos presentear com um mapa delas! Tinham um imenso Império, mas era mental. Não seriam capazes de colocar num esboço em pedra que a Hispania ficaria a oeste, que os Partos ficariam a leste, a Germânia a norte, e a Líbia a sul. Exércitos inteiros deslocavam-se sem mapas.
    • Os Gregos fizeram avanços conceptuais a nível da Geometria que colocaram problemas milenares, de regra e compasso, mas foram incapazes de traçar um mapa da sua linha costeira, ou das suas ilhas. Eram marinheiros experimentados, uniam as estrelas em constelações, mas eram incapazes de unir cidades em mapas. Nas suas vastas obras arquitectónicas, cerâmicas, documentos, etc... não são encontrados vestígios de mapas.
      Creta: uma das raras imagens onde se vê uma cidade e contorno marítimo anexo.
    • Problema similar se teria passado com as civilizações egípcias ou mesopotâmicas. Faz-se grande gala de um pretenso mapa babilónico (~ 600 a.C) incrustado numa tábua de barro:
    Foram apenas estes registos que restaram... ou havia incapacidade de orientação?
    A nível erudito isso seria tese insustentável... havia geógrafos, que tinham mapas, como Ptolomeu e Eratóstenes.
    - Afinal, o problema é só que nada disso nos chegou?
    - Ou, o problema é maior, e nem sequer temos qualquer esboço de mapa, da Europa, à India e China... já para não falar de outras culturas, como Incas e Aztecas.

    Chegaram-nos registos detalhados, de discursos romanos, de tratados gregos, mas nem um único mapa!

    Aparentemente, só devemos dar como certo um primeiro mapa do mundo num esboço de Isidoro de Sevilha (séc. VII), que coloca os três continentes Ásia, Europa e África, rodeados por um Mar Oceano, num canto de uma página:

    Dos mapas que é suposto terem existido na Geografia de Ptolomeu não nos chegou nenhum exemplar, e tal como de Heródoto ou Eratóstenes, apenas podemos julgar as interpretações no séc. XIV ou posteriores:

    Interpretações: no Séc. XIV de Ptolomeu, e no Séc. XIX de Eratóstenes.  

    Qual é o panorama que nos é oferecido?
    - Milhões de seres pensantes, incapazes de traçar um esboço, um mapa, que tivesse resistido alguns milhares de anos, fosse gravado numa rocha, numa escultura, numa decoração cerâmica, num documento que não tivesse desaparecido...

    Porém, tudo desapareceu até à Alta Idade Média, idade em que temos os primeiros portulanos mediterrânicos.
    - É suposto ser isto uma situação normal?

    sábado, 25 de dezembro de 2010

    Anno Domini

    O dia 25 de Dezembro e a Era Cristã  (Anno Domini) foram popularizados apenas no império de Carlos Magno, após trabalhos pascais do monge Dionísio Exiguo (Séc.VI) e pela influência do Venerável Beda (Séc. VIII). 
    Beda escreveu um De natura rerum
    tal comoa antes Isidoro, usando o título de Lucrécio 

    Os cálculos de Beda, apontavam a criação do mundo para uma data muito precisa:
    - 18 de Março de 3952 a.C.  (e seria dia 25 de Março, a criação de Adão) [fazendo 6000 anos, em 2048]
    Esta opção de datação pelo ano de criação do mundo (Anno Mundi) foi usada por judeus, que atribuem 5771 ao ano actual, havendo ainda um interpretação maçónica (Anno Lucis) similar, mas ainda assim diferente nos cálculos - adicionando apenas 4000 anos à actual datação [actualmente estaríamos em 6010]

    A influência de Beda foi importante e condicionou a adopção do modelo de Dionísio no império de Carlos Magno. Por isso, Carlos Magno foi coroado Imperador no AD 800, no dia de Natal. As ulteriores mudanças de calendário gregorianas (1582, poucos anos depois de Portugal tombar sob Filipe II), permitiram ainda assim, que essa celebração natalícia da coroação de Charlemagne se mantivesse.

    Essa extensão foi propagada pela Europa ocidental, mas não na península Ibérica, que usava a "Era Hispânica".
    Esta é a parte interessante... sendo que Portugal foi o último reino a ceder à mudança, em 1422, com D. João I.
    Na Península Ibérica, usou-se depois do tempo de Octávio Augusto, a Era Hispânica, com início em 38 a.C., data em que Octávio não tinha começado as guerras que levariam ao fim da República e à sua consagração com Imperador Augusto.
    As razões para adoptar esta efeméride são deveras estranhas, e dificilmente justificáveis apenas por um isolamento ibérico. Quando em toda a Europa se adoptava o Anno Domini, a península ibérica manteve sempre até 1180 a Era Hispânica, e depois em 1383 é Juan de Castela que antes de tentar invadir Portugal, adopta também o Anno Domini. Restará por quase 40 anos a mudança pelo seu arqui-rival, o João da Boa Memória.

    Em 1422 (1460 da Era Hispânica), D. João I decide finalmente alinhar com o resto da Europa, e abandonar esse calendário que tinha sido usado, desde o tempo Visigodo, e durante toda a reconquista.
    No Mosteiro da Batalha, na Capela do Fundador, ainda é possível ler as referências em ambas as cronologias 
    (usando o Ano do Senhor, ou a Era Hispânica, a que se acrescentavam 38 anos).

    domingo, 19 de dezembro de 2010

    Gillray & Aragão

    Algumas caricaturas de Gillray colocam numa outra perspectiva a ameaça que Napoleão constitui para o "Teatro Real Europeu":
    James Gillray: Um Jorge III como Gulliver, 
    e um Napoleão como liliputiano...

    Esta imagem de um feroz Napoleão, não ciente da sua impotência face à conjuntura, parece-me muito semelhante à própria imagem anterior de D. Sebastião. Partiram para combates onde veriam apenas a frente de batalha, desconhecendo a extensão e poderio do opositor. O próprio sucesso inicial pode não ter sido inocente... as sucessivas mudanças de Alexandre I da Rússia,

    mostram ainda outro interveniente directo que, tal como Pitt, Liverpool e Metternich, usaram os progressos e recuos napoleónicos para construir uma Europa feita à sua medida, o que no caso russo incluiu a Polónia.

    Menos conhecidas, mas igualmente reveladoras e significativas são as caricaturas de Joaquim Pedro Aragão (uma já foi publicada no blog OdeMaia), como também estoutra sobre Napoleão:
    a gravura tem uma particularidade 
    (muito explorada por Escher)
    ... ao inverter, vemos e lemos "burro":

    Pouco está disponível sobre a vida de J. P. Aragão, mas há toda uma sequência na BNP de
    que revelam uma provável ligação à causa miguelista, nomeadamente à linha de José Agostinho de Macedo.

    sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

    Lucerna

    Rafael Bluteau, num preâmbulo à renovação da Academia dos Generosos, em 1717, diz o seguinte:
    Maravilhosas, mas tristes, inúteis, e sempre fúnebres foram as tão celebradas lâmpadas ou lucernas inextinguíveis dos Egípcios. Que maior maravilha, do que luz perene de uma incombustível matéria, sempre ardendo e sempre luzindo, sem socorro de novo alimento, porque sem consumo do primeiro?
    De que lâmpadas fala Bluteau, que seriam inextinguíveis?


    Quando olhamos para estas representações podemos não querer ver as ampolas, e percebe-se que até ao Séc.XX, antes da generalização das lâmpadas, ninguém visse nada de especial. Porém, quando vemos cabos ligados à extremidade fica difícil não fazer a associação. Mas de onde viria a energia eléctrica? Essa resposta já foi mencionada aqui, foram encontradas as Pilhas de Bagdad, com mais de 2 mil anos, descobertas em 1936, que funcionavam como baterias eléctricas primitivas:

    Juntando o registo de Bluteau a estas representações e descobertas arqueológicas, torna-se plausível a hipótese de que os antigos egípcios, sumérios, conheciam a electricidade e faziam uso dela semelhante ao uso corrente - por exemplo, iluminação.
    A principal diferença face aos tempos actuais seria que tal tecnologia seria do estrito conhecimento da elite dominante, e por isso de uso e acesso muito restrito, tendo-se mantido assim durante milénios.

    Outra prova deste avanço civilizacional, de que se perdeu registo, ou melhor, cujo registo não é publicado ou publicitado, é o caso da Máquina de Anticítera (assunto já abordado por JM no blog Portugalliae)
    Vestígios do mecanismo encontrado em Anticítera.
    A complexidade do mecanismo foi estudada, por Raio-X, em vários artigos científicos,
    concluindo tratar-se de um relógio astronómico, similar em complexidade aos do Séc. XVIII,
    modelando os movimentos da Lua, Mercúrio, Vénus, Marte, Júpiter e Saturno.

    Este achado arqueológico do Séc I a.C, recolhido de um navio naufragado, em 1901, confirma outras referências em textos antigos sobre mecanismos deste género (p.ex. Cícero). Está aí gravado o nome ΙΣΠΑΝΙΑ que seria a primeira referência ao nome Hispania (os gregos usavam a designação IBEPIA : Iberia). Outros mecanismos como os de Al-Jazari (1205) podem ter seguido alguma tradição árabe recuperada deste legado perdido dos gregos.

    É claro que da literatura árabe chegou-nos ainda a fábula de Aladino e o génio da lâmpada
    e estas histórias acabam sempre por revelar um outro significado.
    Como um novo olhar para o mesmo quadro...
    Afinal, há um mago que persuade Aladino a entregar-lhe o génio escondido na lâmpada. 
    O segredo escondido na lâmpada revelou um Génio eléctrico que permitiu um progresso tecnológico sem precedentes. Estará na altura do mago reclamar de Aladino a lâmpada, e voltar a encerrar o nosso génio?

    segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

    A batalha dos Três Reis

    Em terra de mouros, ficou assim conhecida a batalha de Alcácer-Quibir... a razão seria simples, os três reis envolvidos teriam perecido em batalha. Apresentamos a conhecida (e única?) ilustração da batalha, feita por Miguel de Andrada, um dos sobreviventes:
    Batalha de Alcácer Quibir, 1578
    Ilustração de Miguel de Andrade (1629)

    Aproveitamos mencionar Miguel de Andrade, para falar de um excerto (seleccionado na wikipedia - Segundo Diálogo, Miscelâneas) acerca de uma ponte em Lisboa "há muitos mil anos".  A certa altura dizem os personagens de Andrade:
    Devoto: (...) Pois vemos que quando Lisboa era nada, em comparação do que hoje é, tinha aqui ponte de pedra, segundo agora se parece nos pedaços de pilares que dela ali vedes, desta banda e da outra.
    Galácio: Isso seria há muitos mil anos, em tempo que este rio seria mais estreito, e menos fundo.
    Devoto: A largura é a mesma, segundo mostram os vestígios dos pilares que vedes, que chega o rio a eles e não passa; e quanto a profundidade, ainda que seja mais, o que não sabemos, contudo, bem se pudera refazer de pedra, que no fundo devem estar os alicerces ou bases dos pilares; quanto mais, que a arte da arquitectura com dinheiro muito alcança e pode, para se fazer de hum só arco: pois dizem, que é infinita esta arte sem termo. E vemos que naquele tão famoso rio Danúbio, está ainda em pé a ponte que nele mandou fazer o Imperador Trajano, com quase todos os pilares inteiros por cima da água cento e cinquenta pés, os vinte deles, que se parecem, e cada hum de sessenta pés de grossura, e o vão de cada arco de cento e sessenta pés. […] Por onde digno era da grandeza de Lisboa, haver aqui uma famosa ponte de pedra, ainda que se fintasse para isso todo o reino.
    Galácio: Já nos contentáramos com ela de barcas.
    Danúbio - desenho com a ponte de Trajano, supostamente destruída no séc. III,
    o que contradiz a afirmação "está ainda de pé a ponte..." que Andrade coloca em Devoto.

    Mais uma vez, pequenos registos soltos... Miguel de Andrade, que acompanhou D. Sebastião, fala de uma ponte que se perdeu o rasto, o rasto dos pilares, e pior, perdeu-se mesmo o mito desse rasto. Uma ponte, com milhares de anos ligando Lisboa e outra margem... que margem? Será fácil argumentar que é a  ponte de Sacavém, relatada por Francisco de Holanda (1571, Da fábrica que falece a cidade de Lisboa), mas há um problema... ou falamos de pequenas pontes - inferiores a 30 metros (sobre o Trancão), ou falamos de pontes superiores a 3000 metros (sobre o Tejo)! Fala-se em mudanças da paisagem por consequência do terramoto de 1755... após isso bastaria uma ponte de madeira sobre o Trancão (... se falarmos da mesma Sacavém).
    Afinal há sempre explicações, mesmo que infundadas, e a destruição de 1755 aparece sempre como explicação de recurso às diversas perdas nacionais. O panorama de partilha mundial precisou ainda de incursões mais cirúrgicas para readaptar a paisagem a uma estória consistente.

    As caricaturas de Gillray explicam muito... (Jorge III/Pitt e Napoleão)
    ... mas este problema não foi só externo, é interno e anterior.

    Voltamos a Alcácer, na Barbaria, e à peça (1591) de George Peele sobre a batalha.
    É uma das poucas peças estrangeiras que trata de um assunto marcante para Portugal, e se arrisca a nunca ser conhecida publicação em português. O bolo estava partido entre Portugal e Espanha, os Habsburgos tentaram com a chancela papal ficar com todo o bolo, mas Vestfália e depois Viena acabarão por trazer uma partilha mais estável.

    A figura central da peça é Thomas Stukeley, sobre o qual Peele no seu Farewell (sobre a expedição de Drake e Norris, a chamada Contra-Armada), diz o seguinte:
    Bid theatres, and proud tragedians, Bid Mahomet's Poo, and mighty Tamburline, and the rest. King Charlemagne, Tom Stukeley, and Adieu !
    Dificilmente se colocaria numa mesma frase Maomé, Tamerlão, Carlos Magno e o quase desconhecido Stukeley... porém os seus contemporâneos dão-lhe algum relevo crítico, talvez suspeitando ser filho de Henrique VIII. Afinal, o título da peça acaba por colocar quase ao mesmo nível a morte dos três reis e a morte de Stukeley. Esse será um moto de interesse para o público inglês, já que Stukeley teria procurado depor a rainha Isabel.

    Como diria Fuller, a propósito de Stuckeley, mas referindo-se à batalha de Alcácer:
    A fatal fight, where in one day was slain, Three Kings that were, and One that would he fain
    O resultado da batalha foi favorável a Filipe II e também ao império Otomano, mas a pressão sobre este "domínio filipino", omnipotente agora com os dois hemisférios de Tordesilhas, tornava a partilha ineficaz no quadro Europeu. A partir da derrota da Armada Invencível, a Guerra dos Trinta Anos terminará com o domínio espanhol Habsburgo, e com o fim do Vaticano como centro de arbitragem.
    Os próximos tratados de paz dispensarão por completo a chancela ou até a presença papal... o mundo Charlemagne estava a modificar-se mas já era demasiado vasto para desaparecer.

    NOTA: Há um ano atrás, quando comecei esta publicação, comecei com D. Sebastião, abordando algumas inconsistências que foram transparecendo a partir da cartografia antiga, com que acidentalmente me deparei. A partir daí, tratou-se de tentar desmontar e montar um gigantesco puzzle com milhares de anos, começando com a parte em que é evidente que as peças não encaixam - os descobrimentos marítimos. Fica o obrigado a quem foi seguindo este percurso, e não me deixou a falar sózinho - Maria da Fonte, José Manuel, Calisto, KTemplar.

    domingo, 12 de dezembro de 2010

    Os dois Reis Magnos

    Alexandre Magno e Carlos Magno tornaram-se figuras incontornáveis na historiografia internacional, tendo sido executores de impérios que se prolongaram na memória até hoje. Em ambos os casos, os grandes impérios que instauraram terminaram após a sua morte, subdividindo-se em vários estados que, apesar dessa divisão, mantiveram o legado civilizacional que transportavam. 
    Batalha de Poitiers (732), Carlos Martel derrota a invasão muçulmana,
    o seu neto, Carlos Magno será o primeiro Sacro Imperador.

    De Alexandre segue uma herança cultural grega a que os próprios romanos se submeteram, e a partir de Carlos Magno, o primeiro imperador do Sacro Império Romano, a Europa definiu-se como uma grande aliança cultural de estados, independentemente das guerras internas entre os reinos independentes. 
    A designação "Magno" envolve duas revoluções que mais do que conquistas territoriais, foram revoluções educacionais, formadoras de carácter e mentalidades. Nenhum é fundador dinástico... são antes filhos de conquistadores - Alexandre III é filho de Filipe II da Macedónia, Carlos é filho de Pepino o Breve e neto de Carlos Martel.
    A influência de Carlos Magno é tal sobre a nobreza, que as genealogias procuravam (procuram, ainda hoje...) estabelecer a ramificação sanguínea que levava apenas e só até Carlos Magno.
    As cortes europeias transformaram-se no resultado da grande prole de Charlemagne... cujo maior feito teria sido conseguido submeter a Saxónia, que tinha escapado aos imperadores romanos, como Augusto ou Marco Aurélio.

    O final desta hegemonia singular da aristocracia acaba por definir-se no Tratado de Vestfália, na Deutsche Welle, que pulverizará a Alemanha em centenas de pequenos estados/principados. O Sacro Império Germânico dissolve-se e a França emerge como grande potência europeia, numa altura em que a Inglaterra estava submersa na sua guerra civil interna (e posta à parte da realeza, com a "república" de Cromwell).
    Triunfo da paz (Vestfália, 1648)

    A derrota dos Habsburgos, para a qual foi decisivo o empenho de Richelieu, e de Gustavo II da Suécia, estabeleceu o fim da influência papal, e a derrota da supremacia espanhola.
    Morte de Gustavo II na batalha de Lutzen

    É já no contexto de uma Europa de estados-nação, ligados para além da consaguinidade da realeza, que Napoleão surge como uma ameaça a Vestfália... surgindo notícias da coligação de Vestfália contra o Corso. É neste contexto que a Vestfália do Cardeal Richelieu perdurará e será solidificada, sem que a França sofra pela audácia do "corso". A Inglaterra emergirá como potência singular, e caberá à Rainha Victoria levar a glória concedida no Victoria's Secret (que talvez incluisse o genocídio dos "aborígenes" da Tasmânia).

    Uma Europa mais forte sobreviverá a Napoleão, tal como uma Roma mais forte sobreviveu a César...
    Apesar de serem honrados como generais, nenhum foi Magno... nenhum foi definido como promotor de uma revolução cultural. A ambivalência europeia conviveu posteriormente entre a linha absolutista de Metternich e a contaminação liberal que se propagara nos ideais da revolução francesa, mas a cumplicidade já estava definida para estabelecer uma ordem mundial no Congresso de Viena... impassível mesmo perante o breve ressurgimento de Napoleão no palco europeu.
    Congresso de Viena (1815). Wellington sairá para derrotar Napoleão em Waterloo... uma formalidade!

    sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

    António Galvão (2)

     (continuation from here)

    We proceed with the account of Galvano's text:  Tratado dos descobrimentos antigos e modernos (1563)

    Chinese sailing. In the beginning of his text Galvão brings the dispute on the first sailing achievements. In 1560 he has no problem in giving some credit to Indians or Chinese (and Taibencos - a name now lost, it may be associated to Thailand and other Southeast Asian cultures). In fact he states that the weather is so warm and the seas are so calm, that even in a canoe discoveries could be made.

    Jason and Alceus. Galvão places the legend of Jason (and Alceus) with the Argonauts, around the same time. The voyage was from Crete (or Greece) to the Pontus through St. George to the Euxinus. Then Alceus continued traveling by land until North Germany, and proceed by the coast of Saxonia, Frisia, Nederlands, France, Spain reaching again the Peloponnesus and Tracia - this he calls the “discovery of most part of Europe”.
    Jason's voyage to Colchis with the Argonauts - "ancient" names of Caucasian provinces.
    ... one should ask - an epopee reporting a short voyage - almost a fishing trip! 

    Menelaus. Like Duarte Pacheco Pereira, Galvão quotes Strabo (that cites Aristonico) to credit the voyage of Menelaus around Africa (counterclockwise) , and almost offers no doubt about it. He emphasizes that the Mediterranean Sea was called Adriatic, Aegean, or Herculeo... according to different times. Like Pacheco Pereira, it is now Galvão that diminishes this 15th century Portuguese achievement of Gama, crediting it to Menelao, after Troy.
    We now have two accounts of ancient sailing… Menelao embarked on a journey around Africa, Ulysses was lost sailing on unknown seas (… probably the Atlantic) at the time of Troy. 
    Previously, when Galvão mentions Troy, he says that it was founded (around 800 years after the Deluge) by the Dardanes “who brought from the Indies to Europe spices, drugs, and so many other things that are scarce now”. He also says that their main port was called Arsinoe (complaining that it was renamed Suez), and the trade continued in caravans of camels to the Eastern Sea, to a town called Cazom, all this before Pharaoh Senusret.

    Solomon. Galvão gives credit to King Solomon travels, in the years 1300 after the Deluge. Solomon made an army that embarked on a three year sailing journey to lands called Tarcis and Ophir. As they brought many gold, silver, cypress and pine, he then assumes that the only possibility is that they had sailed to Luzon (Philippines: Luções), Okinawa (Japan: Lequios) or China. Galvão deliberately misses to justify the gold… it may seem he is avoiding to identify Tarsis with Spain or to locate Ophir in America, where these materials were common.  

    Spanish Carthaginians. Around 600 BC, Galvão also accounts a voyage of Carthaginians merchants that departing from Spain, going west, discovered islands (attributed to be the Antilles), and found land that Gonzalo de Oviedo considered to be Nova España.
    This just means that even Gonzalo de Oviedo (1478-1557), the Spanish historian, was diminishing the pioneer voyage of Columbus, crediting a similar accomplishment by Carthaginians 2000 years before… Why?
    At the time of Gonzalo Oviedo it was clear that Columbus voyage only served political purposes. Portuguese, had been there before, and it was somehow important to show that Spanish were there even much earlier, even if at the time they were Carthaginians.

    Hanno. This is perhaps the most common name associated to Carthaginian sailing. It is reported that him and his brother Himelion were rulers of Andalucía and each one went on separate sailing trips in 440 BC. 
    • Himelion went upwards until France, Germany, probably Sweden and even Iceland. Galvão associates it to the Iceland island Thule (66º N), so cold that he calls it “St. Patrick’s Purgatory”, and describes the volcanoes, one of which was called Ecla (~Katla?). He goes even further, saying that the fish were so big that a church was made from the bones (this might sound not so surprising today, as we are acquainted with whales dimensions… but it could sound bizarre at the time. Reports sound strange and fabulous if you are not familiar with them, and when you are instructed to reject them).
       
    • Hanno went along the Coast of Africa, finding the Fortunate Islands that Galvão associates to the Canaries, and other archipelagos: Dorcadas, Hesperias and Gorgonas. Concerning these islands he just says that others associate them to the Cape Verde archipelago. Like Duarte Pacheco Pereira, both based on Strabo’s account, state that Hanno made the whole tour of Africa until Guardafuy Cape, previously called Aromatic Cape. Of course he says that others pretend that he never went further than Sierra Leona, and that he was followed by Publio only until the Line (?~Equator Line). However Galvão argues that it took 5 years to Hanno to return to Spain, and this would have been too much time for such a travel... probably meaning (in an implicit fashion) that Hanno’s visit to the Hesperides and other islands was in the American continent.

    Persians. Galvão also states that previously to Hanno, in the year 485 BC, the Persian emperor Xerxes sent his nephew Sataspis to make the same contour of Africa.

    The most impressive conclusion that one gets while seeing all the list made by Galvão is that Atlantic navigations were quite common in all times, and were reported by different civilizations. 
    Nowadays, since the celebrated Kon Tiki and other solitary navigations in small boats, it was made clear to the general audience that the major difficulty in ancient sailing was orientation, which was not a problem for sailors with some knowledge of the stars and sun movements... it could be a problem only to produce exact charts. 
    • Despite the evidences, people are led to believe that a short voyage from Greece to the Black Sea could justify the writing of Jason's epopee... knowing that it is more difficult to sail between greek islands.
    • Or even more ridiculous... we are led to believe that the Greeks would gather in a voyage to Troy that it was in the nearby shore, Troy would be closer to Mycenae/Athens than to other greek cities like Miletus...
    • Le coup de grâce, we are led to believe that Ulysses adventure, 10 years lost in the sea, was held in the Mediterranean... as if it was possible to a Greek sailor to be that lost in the Mediterranean.
    As a consequence, if we are led to believe in all this, since we were young, it is easy to control our mind and the way we think.

    (to be continued)