Alvor-Silves

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

A batalha dos Três Reis

Em terra de mouros, ficou assim conhecida a batalha de Alcácer-Quibir... a razão seria simples, os três reis envolvidos teriam perecido em batalha. Apresentamos a conhecida (e única?) ilustração da batalha, feita por Miguel de Andrada, um dos sobreviventes:
Batalha de Alcácer Quibir, 1578
Ilustração de Miguel de Andrade (1629)

Aproveitamos mencionar Miguel de Andrade, para falar de um excerto (seleccionado na wikipedia - Segundo Diálogo, Miscelâneas) acerca de uma ponte em Lisboa "há muitos mil anos".  A certa altura dizem os personagens de Andrade:
Devoto: (...) Pois vemos que quando Lisboa era nada, em comparação do que hoje é, tinha aqui ponte de pedra, segundo agora se parece nos pedaços de pilares que dela ali vedes, desta banda e da outra.
Galácio: Isso seria há muitos mil anos, em tempo que este rio seria mais estreito, e menos fundo.
Devoto: A largura é a mesma, segundo mostram os vestígios dos pilares que vedes, que chega o rio a eles e não passa; e quanto a profundidade, ainda que seja mais, o que não sabemos, contudo, bem se pudera refazer de pedra, que no fundo devem estar os alicerces ou bases dos pilares; quanto mais, que a arte da arquitectura com dinheiro muito alcança e pode, para se fazer de hum só arco: pois dizem, que é infinita esta arte sem termo. E vemos que naquele tão famoso rio Danúbio, está ainda em pé a ponte que nele mandou fazer o Imperador Trajano, com quase todos os pilares inteiros por cima da água cento e cinquenta pés, os vinte deles, que se parecem, e cada hum de sessenta pés de grossura, e o vão de cada arco de cento e sessenta pés. […] Por onde digno era da grandeza de Lisboa, haver aqui uma famosa ponte de pedra, ainda que se fintasse para isso todo o reino.
Galácio: Já nos contentáramos com ela de barcas.
Danúbio - desenho com a ponte de Trajano, supostamente destruída no séc. III,
o que contradiz a afirmação "está ainda de pé a ponte..." que Andrade coloca em Devoto.

Mais uma vez, pequenos registos soltos... Miguel de Andrade, que acompanhou D. Sebastião, fala de uma ponte que se perdeu o rasto, o rasto dos pilares, e pior, perdeu-se mesmo o mito desse rasto. Uma ponte, com milhares de anos ligando Lisboa e outra margem... que margem? Será fácil argumentar que é a  ponte de Sacavém, relatada por Francisco de Holanda (1571, Da fábrica que falece a cidade de Lisboa), mas há um problema... ou falamos de pequenas pontes - inferiores a 30 metros (sobre o Trancão), ou falamos de pontes superiores a 3000 metros (sobre o Tejo)! Fala-se em mudanças da paisagem por consequência do terramoto de 1755... após isso bastaria uma ponte de madeira sobre o Trancão (... se falarmos da mesma Sacavém).
Afinal há sempre explicações, mesmo que infundadas, e a destruição de 1755 aparece sempre como explicação de recurso às diversas perdas nacionais. O panorama de partilha mundial precisou ainda de incursões mais cirúrgicas para readaptar a paisagem a uma estória consistente.

As caricaturas de Gillray explicam muito... (Jorge III/Pitt e Napoleão)
... mas este problema não foi só externo, é interno e anterior.

Voltamos a Alcácer, na Barbaria, e à peça (1591) de George Peele sobre a batalha.
É uma das poucas peças estrangeiras que trata de um assunto marcante para Portugal, e se arrisca a nunca ser conhecida publicação em português. O bolo estava partido entre Portugal e Espanha, os Habsburgos tentaram com a chancela papal ficar com todo o bolo, mas Vestfália e depois Viena acabarão por trazer uma partilha mais estável.

A figura central da peça é Thomas Stukeley, sobre o qual Peele no seu Farewell (sobre a expedição de Drake e Norris, a chamada Contra-Armada), diz o seguinte:
Bid theatres, and proud tragedians, Bid Mahomet's Poo, and mighty Tamburline, and the rest. King Charlemagne, Tom Stukeley, and Adieu !
Dificilmente se colocaria numa mesma frase Maomé, Tamerlão, Carlos Magno e o quase desconhecido Stukeley... porém os seus contemporâneos dão-lhe algum relevo crítico, talvez suspeitando ser filho de Henrique VIII. Afinal, o título da peça acaba por colocar quase ao mesmo nível a morte dos três reis e a morte de Stukeley. Esse será um moto de interesse para o público inglês, já que Stukeley teria procurado depor a rainha Isabel.

Como diria Fuller, a propósito de Stuckeley, mas referindo-se à batalha de Alcácer:
A fatal fight, where in one day was slain, Three Kings that were, and One that would he fain
O resultado da batalha foi favorável a Filipe II e também ao império Otomano, mas a pressão sobre este "domínio filipino", omnipotente agora com os dois hemisférios de Tordesilhas, tornava a partilha ineficaz no quadro Europeu. A partir da derrota da Armada Invencível, a Guerra dos Trinta Anos terminará com o domínio espanhol Habsburgo, e com o fim do Vaticano como centro de arbitragem.
Os próximos tratados de paz dispensarão por completo a chancela ou até a presença papal... o mundo Charlemagne estava a modificar-se mas já era demasiado vasto para desaparecer.

NOTA: Há um ano atrás, quando comecei esta publicação, comecei com D. Sebastião, abordando algumas inconsistências que foram transparecendo a partir da cartografia antiga, com que acidentalmente me deparei. A partir daí, tratou-se de tentar desmontar e montar um gigantesco puzzle com milhares de anos, começando com a parte em que é evidente que as peças não encaixam - os descobrimentos marítimos. Fica o obrigado a quem foi seguindo este percurso, e não me deixou a falar sózinho - Maria da Fonte, José Manuel, Calisto, KTemplar.

7 comentários:

  1. Caro Alvor

    Fantástico! Descobriu a PONTE! ATLANT-AFRIQ...
    A PONTE ENTRE LISBOA E O NOROESTE DE ÁFRICA. A Ponte Milenar. A Ponte da perdida Atlântida!

    Parabéns! Estou felicíssima!

    Maria da Fonte

    Maria da Fonte

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  2. Cara Maria da Fonte,
    só pode ter feito confusão!

    Aquilo que sugeri é que na conversa dos personagens de Miguel de Andrada se fala de uma ponte "de muitos mil anos" que, pela comparação com a ponte de Trajano, pode ser encarada como uma ponte entre as duas margens do Tejo, e dificilmente com a ponte de Sacavém.
    A menos que veja a "margem sul" como África, não sugeri nenhuma ponte dessas dimensões continentais... o que aliás me parece inexequível - ainda hoje.

    A ilustração de Francisco de Holanda, por outro lado, dá ideia de uma ponte de Sacavém com dimensões também demasiado grandes para o Rio Trancão, conforme se pode ver aqui:
    Ponte de Sacavém - desenho de F. de Holanda

    mas por outro lado, demasiado pequenas para o Tejo próximo de Lisboa, no Mar da Palha.
    Ainda que seja mais próximo de Vila Franca de Xira do que de Sacavém, os montes desenhados não se coadunam muito com a paisagem actual - nem para o Trancão, nem para o Tejo.

    abraço!

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  3. Caro Alvor

    RECORDAÇÔES DE ATLÂNTIDA?
    OU
    RECORDAÇÕES DE PANGEIA?

    Se formos por aqui, a Hipótese das duas Margens da Ponte, é ainda mais fantástica!

    Galácio diz que a Ponte teria muitos MIL ANOS!
    MUITOS MIL ANOS, não são meia dúzia, terão que ser muitos mais.
    Toda a Geografia se alterou há cerca de 12 500 anos.

    Nesse Tempo, o ATLÂNTICO ATRAVESSÁVA-SE A PÉ!

    A fixação pela Terra Nova, seria assim, uma reminiscência desse Passado.

    E O CAIS DAS COLUNAS?
    Não será a Memória das Colunas de Hércules?
    Recorde-se que a ESTÁTUA DE HÉRCULES DO BRONZE, está no MUSEU DO VATICANO.
    E por lá, sabem sempre o exacto significado de todas as coisas.

    Um abraço

    Maria da Fonte

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  4. A observação do Cais das Colunas é muito pertinente!
    O nome é suficientemente elucidativo para sinalizar um registo perdido de colunas que restariam de uma velha ponte, e não dos pequenos postes que ficaram.
    Obrigado pela interessante sugestão.

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    1. 11 anos depois, deparo-me com este postal, ao qual anexo um capítulo do livro "Da fábrica que falece a cidade de Lisboa" que me parece pertinente:
      CAPITULO 1º
      DA ANTIGUIDADE DE LISBOA E DAS OURAS QUE
      NELA E EM PORTUGAL FIZERAM OS ROMANOS.
      E DEPOIS OS REIS NOSSOS

      De Luso antiquíssimo rei dos Brigos, tomou o nome Lusitânia. A quem os antigos Galos que ao Porto vieram, chamaram Portugal. E primeiro reinou TubaI, dos bisnetos de Noé, em Espanha; e Tago, que deu nome ao nosso rio Tejo. Depois, afirma Júlio Solino e outros antigos, que Ulisses, vindo da guerra de Tróia, edificou Lisboa, que foi quase no tempo de Abido rei de Espanha. E parece razão que já nos montes onde hoje Lisboa está assentada, deviam alguns pescadores daquele tempo de ter algum vestígio de alguma pobre povoação.
      Deixo a fábula que se conta do Mosteiro de Chelas, donde dizem que Ulisses levou Aquiles quem em trajo de mulher, Tétis sua mãi ali tinha escondido e encantado, o qual é fabuloso.
      Mas o que se tem por verdade que Lisboa, quer a fundasse Ulisses, quer Hércules grego, quer outro capitão greto ou cartaginês (por que o certo não se sabe certo) que ela é mais antiga que Roma. Porque Viriato, capitão português ilustríssimo, e Sertório romano, e Júlio César, que a Lisboa pôs sobrenome Felicitas Julia, todos a acharam já feita antiga e velha mais que Roma.
      E edificada por Senhor Deus, que com mais razão se pode dizer que a edificou, mais que os homens, como aquele Rei e Senhor a quem todas as coisas são presentes, muito antes que sejam feitas; que a via já em sua eternidade qual hoje a vemos cheia de religião e sacramentos, e as maravilhosas obras que dele e nela e por ela havia de obrar e obra: assim contra os infiéis, como com os fiéis.
      Neste tempo era Lisboa ainda gentia e pagã e não conhecia o seu verdadeiro fundador Deus, mas adorava os ídolos, como eu mesmo vi sendo moço pelo cipo do ídolo Esculápio, em Nossa Senhora da Porta do Ferro, e o cipo sobre que estava o ídolo de Vénus, que está a santo Estèvão, e outros. E foi Lisboa gentia e pagã muito largos anos, ou seja, do tempo dos bisnetos de Noé, em que começou a idolatria, e de Luso, e de Tago, e de todos os mais gentios reis de Espanha que foram muitos, até ao ditoso tempo de Constantino Magno e do imperador Teodósio, em que a Igreja de Deus se dilatou, e começou a dar luz com o novo lume da Fé, por todo o mundo, e a lançar de Lusitânia e de Lisboa as trevas da idolatria fora.
      E naquele tempo que (depois dos Cartagineses) os Romanos tomaram Lisboa por guerra, quando era gentia, a ornaram de mui nobres edifícios, fábricas, muros, condutos de águas, estradas e pontes, e de outras nobilíssimas memórias a enobrecendo e ornando, como se hoje em dia vê em alguma parte os indícios e vestígios e letras latinas e colunas e pedras, e cipos que o demonstram; e assim mesmo as estradas e pontes que iam de Lisboa até Roma, como eu as vi. Lisboa era colónia dos Romanos, e Escalabis, que era Santarém, era Município, e Évora e Braga Augusta, e Salamanca, e Mérida Colonia que eram ambas Portugal, como declara Plínio falando em Lusitânia. E também o imperador Antonino Pio no seu itinerário o dá a entender.


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    2. E pois que os gentios, sendo Lisboa gentia, tanto a honraram e os Romanos de tão longe sendo estrangeiros tinham cuidado dos seus edifícios e nobreza, quanto mais o deve fazer Vossa Alteza e os cidadãos dela, pois que não tem outra coisa mais nobre em seus reinos, nem há mais Portugal que Lisboa.
      Ora depois que os Romanos foram senhores de Lisboa quase seiscentos anos como mostram as Crónicas das Memórias de Espanha, até que os reis godos vieram tomar Espanha; e que os godos já cristãos, e depois os mouros a senhorearam com Espanha; e que tornou a ser nossa: bem se sabe como El-Rei Dom Afonso Henriques, o primeiro rei de Portugal, a enobreceu com a fábrica da Sé e com o Mosteiro de São Vicente de Fora, e outros edifícios e torres.
      E assim os outros reis todos: Dom Dinis, Dom João de Boa Memória, Dom João o segundo, quem fez a nobre fábrica do Hospital e outras. E o felicíssimo reio vosso bisavô, El-Rei Dom Manuel, que com o triunfo e vitória da Índia quase a renovou de todo, cercando-a da parte do mar com o cais que rodeia e Paços, muito melhor do que pela terra a tinha cercado El-Rei Dom Fernando com o seu muro de argamassa, que foi uma grande obra, e assim mesmo com o sumptuoso Mosteiro de Belém, e Torre, e com a Misericórdia.
      Ora El-Rei vosso avô de gloriosa memória, quem duvida que, se o não atalhara a morte, que houvera de fazer grandíssimas obras em Lisboa? Como me dizia quando vim de Itália: assim na fortaleza do Castelo, como em trazer a água de belas, como em outras muitas obras, o que se pode bem conjecturar somente em o começo da fortaleza de S. Gião e dos Paços que em Enxobregas vos deixou começados para os Vossa Alteza acabar, com tudo mais que a Lisboa falece.

      Um abraço,
      Djorge

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    3. Caro Djorge,
      obrigado pela adição.
      Continuo sem encontrar nada de significativo que me permita esclarecer se existiu mesmo uma ponte antiga entre um lado e o outro do Tejo.
      Ficou só este registo de Miguel de Andrada, que abre o apetite de saber mais...
      Cumprimentos.

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