Alvor-Silves

segunda-feira, 24 de agosto de 2020

Correspondência de D. João II (2)

Seguindo uma anterior missiva que D. João II tinha recebido de Poliziano, deixamos aqui uma outra carta que recebeu de Hieronymus Münzer, invocando colaboração com o futuro Sacro-Imperador Germânico, o seu primo Maximiliano I, filho da imperatriz Leonor, irmã de Afonso V.

O texto encontra-se num Tratado da Esfera, datado de 1516, que é traduzido do latim, e avisam-se os histórico-higiénicos do politicamente correcto, que há expressões que podem ser vistas como ofensivas para certas etnias...


Não encontrando outra transcrição, segue a que fiz, com base na tradução de Álvaro da Torre.

Segue-se a carta que enviou Hieronimo Montaro doutor alemão da cidade de Nuremberga em Alemanha ao sereníssimo Rey Dom Joham segundo de Portugal. Sobre o descobrimento do mar Oceano e província do Grão Cão de Catay tirada de latim em linguagem por mestre Alvaro da Torre, mestre em teologia da Ordem de S. Domingos pregador do dito senhor rei.
Ao sereníssimo e invictíssimo Johane Rey de Portugal e dos Algarves e da Mauritania Maritana, e inventor primeiro das ilhas fortunadas Canarias da Madeira e dos Açores. Hieronimo Montario douto alemão mui humildemente se encomenda. Porque até que este louvor recebeste do sereníssimo Infante D. Henrique, teu tio que nunca perdoaste a trabalho nem despesas para descobrir a redondeza das terras e pela tua indústria fizeste tributários até os povos marítimos da Etiópia e o mar da Guiné até ao Trópico de Capricórnio com suas mercadorias assim como Ouro, Grãos de paraíso: Pimenta, Escravos e outras coisas. Com o qual engenho ganhaste para teu louvor imortalidade e glória e também muito grande proveito. E não é dúvida que em breve tempo os de Etiópia, quase bestas em semelhança humana, alienados do culto divino, dispam por tua indústria, sua bestialiadade e venham guardar a religião católica. Considerando estas coisas, Maximiliano invictíssimo Rei de Romanos quis convidar tua majestade a buscar a terra oriental de Catay [China] muito rica: porque Aristóteles confessa no fim do livro segundo do céu e do mundo. E também Séneca no quinto livro dos naturais e Pedro de Aliaco, cardeal muito letrado na sua idade, e outros muitos varões esclarecidos confessam digno o princípio do oriente habitável ser achegado assaz ao fim do ocidente habitável; são sinais os elefantes que há muitos aqui nestes dois lugares, e também as canas que a tormenta lança da praia do oriente às praias das ilhas dos Açores. São também infindos, porque assim o diga, muitos certo argumentos, pelos quais demonstrativos se prova aquele mar em poucos dias navegar-se contra Catay oriental e não se encontre Alfragano e outros sem experiência, os quais disseram somente uma quarta parte da terra estar descoberta ao mar, e a terra segundo as três suas partes estar alagada sob o mar porque nas coisas que pertencem à habitação da terra, mais se há de crer a experiência e as prováveis estórias que as imaginações fantásticas. Porque certo sabeis que muitos autorizados astrónomos negaram ser alguma habitação debaixo dos trópicos e equinócios. As quais coisas tu achaste serem vãs e falsas por tua experiência. Não seja duvida que a terra não está alagada sob o mar, mas pelo contrário o mar está imerso. E ainda a redondeza orbicular dela. 
Abundam também a ti as abastanças e riquezas e são a ti marinheiros muito sábios os quais assim mesmo desejam ganhar imortalidade e glória. Oh! quanta glória alcançarás se fizeres o oriente habitável ser conhecido ao teu ocidente, e também quanto proveito os comércios te darão. Que mais farás as ilhas do oriente tributárias, e muitas vezes os reis maravilhados se subjugarão muito levemente ao teu senhorio. Já te louvam por grande príncipe os Alemães e Itálicos e os Rutanos [Russos], Apolonios citos os que moram debaixo da Seca estrela do pólo árctico. Com o grande duque da Moscóvia [Moscovo], que não há muitos anos que debaixo da sequeidade da dita estrela foi novamente sabida a grande ilha da Grulanda [Nota 3], que corre por costa 300 léguas na qual há grandissima habitação de gente do dito senhorio do dito senhor duque. Mais se esta expedição acabares alevantar-te-ão em louvores como deus, ou outro Hércules e terás também se te apraz para este caminho por companheiro deputado do nosso rei Maximiliano o senhor Martinho Boémio [Martin Behaim] singularmente para isto acabar, e outros muitos marinheiros sabedores que navegaram a largura do mar, tomando caminho das ilhas dos Açores, por quadrante, cilindro e astrolábio e outros engenhos onde nem frio nem calma os enojará, e mais navegarão a praia oriental sob uma temperança muito temperada do ar, e do mar, muitos infindos argumentos são pelos quais tua majestade pode ser estimada. Mais que aproveita esporear a quem corre. E tu mesmo és tal que todas as coisas com tua indústria até a unha examinas. E portanto escrever muitas coisas desta coisa é impedir a quem corre que não chegue ao cabo. No todo poderoso conserve a ti em teu propósito e acabado o caminho do mar e teus cavaleiros sejas celebrado com imortalidade. Vale de Nuremberga, vila de alta Alemanha, a 14 de Julho, salutis de 1493 anos.
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Este Jerónimo Montaro ou Monetarius, rapidamente percebi ser Hieronymus Münzer, que depois fez uma viagem pela Europa até encontrar D. João II em Novembro de 1494. Será interessante saber o que Jerónimo diz dessa viagem. Há um título que contém a viagem a Espanha e Portugal, mas apenas está traduzido para espanhol, a parte de Espanha... e há uma tradução mais recente para inglês. [Nota 1]

A ligação à Alemanha vem da tia Leonor que D. João II não terá conhecido, pois ela casou com o sacro-imperador em 1452, antes dele nascer. No entanto, quando o primo Maximiliano, filho de Leonor, foi preso em Bruges, em 1488, logo D. João II se predispôs a todos os esforços para o libertar, e segundo Rui de Pina (capítulo 32), teria enviado Duarte Galvão com disposição de gastar 100 mil coroas de ouro, e de enviar a frota para o libertar. [Nota 2] 

A ligação à Alemanha, e em particular a Nuremberga, resultava ainda de D. João II contar com Martin Behaim como um dos principais cosmógrafos, e esse foi um dos contactos que Jerónimo Montaro teve em Portugal. Esta ligação à Alemanha foi depois entendida nos Séc. XIX e XX como uma necessidade científica portuguesa, quando a palavra de ordem era a ignorância nacional, algo que é bem contestado num excelente trabalho de J. Bensaúde em 1914:

A ideia explanada nesta carta de Jerónimo Montaro nada mais era do que a ideia "colombófila", quando a notícia da viagem de Colombo ainda não teria chegado à Alemanha, e o que só mostra como essa ideia era a mais comum, antes que se soubesse que não havia possibilidade de chegar pelo Atlântico à China, já que havia um pequeno continente pelo meio - a América.

Simplesmente, e aqui seguimos Armando Cortesão, é muito natural que D. João II não soubesse apenas que ali estava a América, como soubesse ainda onde se situavam as Molucas, porque a demarcação do meridiano de Tordesilhas, exigida pelo rei, permitia não apenas ficar com uma boa parte do Brasil, mas também garantir com um excesso de 10º apenas, para que as Molucas, as ilhas das especiarias, ficassem portuguesas. Tivessem os portugueses pedido mais um pouco de terra para o Brasil (que depois conseguiram) e as Molucas, ou o Japão, teriam caído fora do hemisfério.
Para Cortesão, a demarcação de D. João II foi demasiada "sorte" para ter sido um mero acidente.

Poderá perguntar-se o que era isto comparado com um prescindir do ouro inca e azteca?
Aparentemente «o ouro da Mina» só existiu até ao Tratado de Tordesilhas.
Especialmente depois do reinado de D. Manuel, a Mina deixou de produzir "ouro"... e já agora seria interessante os nossos historiadores perguntarem-se: onde era a grande Mina de Ouro da "Guiné", de onde supostamente vinham 400 Kg de ouro por ano? 
Claro que depois houve minas exploradas, mas só no Séc. XIX. 
Poderia ser a pontapé, e fala-se que haveria rios com pepitas, mas o único Rio do Ouro que se regista era perto do cabo Bojador. 
Então como chegava o ouro à Mina, e qual era o interesse de proteger o Forte da Mina, se o ouro estava a pontapé pelos campos fora? Vinham caravanas carregadas de ouro, mas de onde, Tumbuctu? 
Porque não se meteram os portugueses pela África dentro à procura de cidades de ouro?
Onde ficou essa tradição de exploração de metais, de ouro, nos nativos africanos, digamos equivalente à que tinham os incas e aztecas?... mesmo que os portugueses tivessem derretido quase tudo?
Ou então, que ouro tiraram os holandeses do Forte da Mina, quando o conquistaram?
O que se passou após Tordesilhas é que a região da Guiné passou a servir para escravos em exclusivo.

O que me pareceu natural, foi que o ouro do Forte da Mina, em África, vinha directamente dos incas através do Castelo de S. Jorge da Mina, que seria na Colômbia. Não ia directo para Portugal, porque isso daria nas vistas, e poderia derreter-se em África, para simular outra proveniência.
Os espanhóis tentaram aproveitar-se das riquezas da Guiné, na Mina, tendo havido em 1478 uma batalha em que foram completamente derrotados, depois de aí permanecerem meses sem avistarem portugueses. E foi a partir daí que o Forte da Mina foi reforçado por D. João II, em 1481.

Além disso, economicamente, o ouro era apenas a moeda, que em excesso desvalorizou subitamente, mas a fonte principal de riqueza visada era o comércio em que os portugueses compravam e vendiam, com o lucro decidido pelo monopólio, até que a concorrência holandesa apareceu...

Francamente, portugueses a suarem nas minas de ouro africanas foi imagem que nunca passou pela cabeça de ninguém. Simplesmente nesta História de conto de fadas, o ouro caía do céu!

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Notas:
[1] A um preço interessante - quase mil dólares - mas mantenho-me abstinente nas compras, que se reduziram à Portugalliae Monumenta Cartographica em 2009. Ou seja, pago o mesmo que cobro, e nunca me faltaram estórias... faltou-me sim, tempo para elas.

[2] O incidente com Maximiliano está associado a uma história com 101 cisnes de Bruges, já que o seu escudeiro e amigo Pieter Lanchals foi decapitado pela população revoltada, e como subtil punição, Maximiliano obteve o compromisso da população de cuidar eternamente de 101 cisnes nos canais, já que Lanchals tinha um cisne no seu escudo.

[3] «Grulanda» poderá parecer foneticamente a Gronelândia, mas dadas as dimensões "corre por costa 300 léguas", ou seja ~ 1800 Km, é mais natural que se refira a Nova Zembla, que fora visitada pelos russos ainda no Séc. XI, justificando esse redescobrimento no reinado de Ivan III, o Grande. Não encontrei mais sobre estas explorações árcticas feitas por Ivan III, mas a maior bomba nuclear que explodiu na Terra foi justamente em Nova Zembla, chamando-se "Tsar Bomba" ou "Grande Ivan" e o seu cogumelo subiu a 67 Km, mais de 7 vezes a altura do Monte Evereste (vídeo russo), vendo-se a 1000 Km de distância. [Nota adicionada em 25.08.2020]

7 comentários:

  1. " muitos varões esclarecidos confessam digno o princípio do oriente habitável ser achegado assaz ao fim do ocidente habitável; são sinais (...) as canas que a tormenta lança da praia do oriente às praias das ilhas dos Açores."

    Isto vindo de um Alemão...
    Parece-me pois óbvio que os Portugueses têm procurado a América desde 1420s e que a encontraram definitivamente antes de 1470 - até antes dos Corte Real na Terra Nova.

    Interessante também seria investigar mais afundo a "dica" de Sancho Brandão que supostamente descobre um(a) "Brasil" no século XIV.
    Onde teria ido? Seria a Madeira?

    Bom post.
    Cumprimentos,
    IRF

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    1. IRF, creio que se está a referir a São Brandão, que é o suposto monge que, quando soube da invasão árabe em 711, zarpou da costa portuguesa com um conjunto de navios em direcção ao mar a oeste. Isso deu origem à lenda que haveriam sete cidades resultantes desse povoamento.
      A ilha passou a figurar nalguns mapas, como possível sítio de avistamento.

      A história da "cana-dá à costa", também creio ser um argumento usado por Colombo para convencer os reis católicos.
      Se essa da cana-dá originou o Canadá, pois fica no convencimento de muita gente que sim, que os Corte Real, e outros antes deles, teriam ido e vindo ao Canadá.

      Cumprimentos.

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  2. Não. Referia-me a um navegador de nome Sancho Brandão que no século XIV afirma ter descoberto o Brasil... com a consequência de Portugal reportar o tal achado ao Vaticano.
    Deixo aqui o primeiro texto que encontrei sobre a matéria no google, certamente saberá a que me refiro:

    https://iarochinski.blogspot.com/2016/04/o-brasil-foi-descoberto-em-1342-por.html

    Cumprimentos,
    IRF

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    1. Caro IRF,
      Sancho Brandão é resultado de uma brincadeira, com base no assunto sério da ilha de São Brandão.
      Simplesmente houve alguém que decidiu interpretar "San" como Sancho, colocou uma invenção numa coisa de "história alternativa" e foi-se propagando.

      Cumprimentos.

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  3. Epá... mas eu tinha ficado com a ideia que estava naquele livro da Descoberta do Brasil... creio que tinha um capítulo para navegações antes de Ceuta...

    Repare que isto foi - supostamente - por altura da aventura nas Canárias... Cabo Verde não fica tão longe, e a distância entre Cabo Verde e Portugal ou Cabo Verde e o Brasil é a mesma.

    E depois há registos destes, no século XIX, pelo que quase tudo é possível:

    https://pt.wikipedia.org/wiki/Viagem_do_Ca%C3%ADque_Bom_Sucesso

    https://www.visitalgarve.pt/pt/538/replica-do-caique-bom-sucesso.aspx

    Cumprimentos,
    IRF

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    1. Quanto ao suposto « Sancho Brandão », tem um link onde a estorieta está bem contada (aliás o texto tem alguns pormenores interessantes):

      https://fantasia.fandom.com/pt/wiki/Ilha_Brasil

      onde é dito assim, e passo a citar:
      Segundo uma "teoria alternativa" sobre a descoberta do Brasil, muito difundida na internet, um certo capitão Sancho Brandão, da armada do rei de Portugal Afonso IV (que reinou de 1325 a 1357), teria descoberto "uma nova terra, habitada por homens nus e opulenta em tinta vermelha". A origem dessa lenda moderna é um livro do jornalista, escritor e historiador Francisco de Assis Cintra, intitulado Nossa Primeira História, de 1921.
      (...)
      (algumas citações do texto e documentos)
      (...)
      Assis Cintra, é preciso dizer, foi nessas passagens muito mais ficcionista que historiador. Não existiu Sancho Brandão algum fora de sua imaginação e tanto a Ilha Brasil quanto a Ilha de São Brandão à qual supostamente teria dado o nome eram citadas nas lendas e nos mapas antes de Afonso IV.


      Não está nada no livro de Tomás Marcondes de Souza.

      Enfim... também poderia ter havido um Sancho Brandão, e que face ao escândalo, os monges tivessem inventado e divulgado a história de um Santo Brandão.

      No entanto é suposto já estar uma ilha de S. Brandão neste "mapa":
      https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/c/c4/Ebstorfer_Weltkarte_2.jpg

      Creio que há ainda uma confusão com um S. Brandão relativo a fuga aos bárbaros circa 500 e outro que teria partido circa 711, com um grupo de cristãos, para Ocidente, para fugir à invasão árabe.
      Indo mais para trás no tempo, o assunto é ainda mais nebuloso...

      Quanto à tal embarcação do Bom Sucesso, que fez Portugal-Brasil em 1808, pois não conhecia!
      Tão notável é ainda a história que trouxe Rainer Daehnhardt:

      Um piloto português veio da Índia para Portugal num pequeno barco a remos com uma só vela, tendo o Rei D. João III mandado queimar a minúscula embarcação para não constar que uma viagem destas fosse possível.

      https://zefiro.pt/homens-espadas-e-tomates

      Cumprimentos.

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    2. Ok, que pena... seria interessantíssimo se essa do Sancho Brandão fosse verdade.
      Ainda bem que mandei o link do Bom Sucesso, sendo assim.

      Cumprimentos,
      IRF

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