Alvor-Silves

terça-feira, 8 de janeiro de 2019

Heresia toponímica

Uma das improbabilidades mais descaradas é ver na toponímia holandesa dos descobrimentos nomes associados a santos. Não é que tal fosse impossível, simplesmente era altamente improvável, ou as probabilidades andariam ao nível de árabes baptizarem uma ilha com o nome de "Santa Maria". Com os ingleses passar-se-ia algo semelhante, mas em menor escala.

Vejamos aqui um mapa holandês, que foi depois copiado pelos franceses, de forma que se trata de um mapa publicado em França em 1663-66, mas que se assume ter sido copiado de um mapa de 1644 do cartógrafo holandês Joan Blaeu.

A questão é agora saber de quem os holandeses copiaram... mas não parece difícil perceber.

Em cima, ao centro, lê-se facilmente "TERRA DOS PAPOS".
Não é holandês, flamengo, ou francês. 
Ainda que "TERRA" seja também latim, a contracção da preposição "DOS" só ocorre mesmo em português. Quanto aos "papos" podemos entendê-lo no significado de "papou-os" dado o historial antropofágico das tribos dessa ilha. Trata-se da ilha Papua - Nova Guiné.

Curiosamente o meridiano vertical, que separa "Terra dos Papos" de "Nova Guinea" é praticamente o mesmo que separa hoje a parte da Papua indonésia, da parte independente da Nova Guiné.
Para quem ainda não percebeu... esse meridiano era o do Tratado de Saragoça, o correspondente ao meridiano de Tordesilhas, mas como anti-meridiano - uma dor de cabeça que só foi resolvida no tempo de D. João III. A razão pela qual os holandeses o colocam ali, pode ser apenas coincidência, é claro.

Mas não há apenas essa designação. Acima da "Terra dos Papos" vemos C. de Goede Hoope, o que em holandês quer dizer "Cabo da Boa Esperança". O que faz ali outro "cabo da boa esperança"?
Logo ao lado lemos "Vilems Schoutens Eyl - Olim I. de aguada". Esta "ilha de aguada" parece também vir do mapa português, tal como logo de seguida "I. Arimoa" e "I. Moa".
É ainda curioso aparecer a palavra francesa "Rivier" e depois como abreviatura aparece "Riv" mas escrito como "Riu", ou seja quase como "Rio". Pode ler-se isso na parte da Carpentaria, que eu diria que se fosse coisa portuguesa e não remetida a um Carpentier, pareceria "carpintaria".

Mais abaixo, nesse mesmo mapa podemos ainda ver:

... e, em baixo, do lado direito, vemos então as ilhas "I. St. François" e "I. St. Pierre". Os nomes estão já em francês, mas estas ilhas de São Francisco e São Pedro, seriam designações dos santos padroeiros do capitão e do seu comandante! Ora, normalmente estas histórias arrumam-se de outra forma, por vezes com o nome do navio, mas é mais difícil quando não é o caso, e esta malta eram holandeses protestantes, sem qualquer vontade social de exibir santos padroeiros. Ou seja, no contexto da sociedade holandesa, muito influenciada pelo judaísmo comercial, e protestantismo rígido, estes nomes de santos seriam uma "heresia toponímica"... a menos que já tivessem sido assim designadas, e nesse caso foi apenas honestidade puritana, ou vontade de afirmação de presença num sítio pelo uso da sua designação antiga.

Pode ainda ver-se a designação de Houtman Abrolhos de que falámos antes, que tal como "Pedra Blanca" no sul da Tasmânia. Estas são duas designações que reconhecidamente derivam do português, no caso dos Abrolhos enquanto "abre olhos" similar às ilhas Abrolhos no Brasil, e no caso da Pedra Branca por eventual semelhança com a ilha de Pedra Branca em Singapura. Ver no mapa seguinte, em baixo:

Ainda que se quisesse estabelecer uma qualquer semelhança com Singapura, faz pouco sentido não usar a tradução para holandês do termo, quando tantos outros eram traduzidos. 
Quereria isto significar que os holandeses teriam descoberto que havia uma semelhança entre os mapas portugueses de Singapura, que pretendiam representar ali a Tasmânia? Não parece provável, e vai ficando a curiosidade bem expressa neste mapa, de que os holandeses nunca procuraram completar a informação da viagem de 1643 de Abel Tasman e foram deixando o tempo rolar 125 anos até que Cook, com o simples intuito de observar o "trânsito de Vénus", achou acidentalmente o restante território australiano que falta a este mapa holandês. 
Uma preciosidade do género "novela histórica".

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NOTA (10.01.2019):
Em comentário (de David Jorge) está a observação do uso do termo malaio Nusantara que se ligaria à designação Nuca Antara para Austrália por Godinho de Erédia (ver post anterior). O termo resultaria das palavras malaias ou javanesas: nusa (ilha) e antara (entre), e aplicava-se a territórios tributários do império Majapahit, centrado na ilha de Java. 
Aproveito para adicionar as referências no mapa (1ª imagem) à Batochina e às designações Terra Alta, Cera ou Mola, que teriam sido tiradas também de mapas portugueses.

8 comentários:

  1. Caro Alvor,

    "Nunca" explorou a codificação/significado de Nüca Antara? em Malay?
    Pode encontrar alguns tesourinhos muitissimo interessantes nesse nome para o território!

    Cumprimentos,
    DJ

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    1. Para o Indonésio, ler-se-ia Nusantara que tranduz para Arquipelago, ou interpreta-se para "a nossa pátria".
      Repare que no creolo "nôs" lido como "noss" ou entendido como nosso também é uma possibilidade.
      Ou seja NossAntara -> A nossa Antaria -> A nossa Pátria.

      O facto de Nuca poder ser lido como "Nussa/Nuça" não é de todo descabido, pois o que mais se encontra, em documentos antigos, são regras de escrita não-uniformes (o que por si pode ou não ser prepositado com uma finalidade oculta).

      No Malay "Nuca Antara" traduz para "Nuca Entre" (onde o Entre é Between em Inglês ou Meio em Português)
      Assim, teriamos para o Português, "Nunca Entre" no caso de o "u" possuir um tilde, que levaria a uma ordem "Nunca Entre!", ou uma constatação por ex. "Nunca entre (no meio)" / Sempre ao largo.
      No caso de ser uma leitura literal temos ainda "Nuca Antara(Meio)", ou "Meio da Nuca".

      São apenas umas ideias que explorei, nada mais.
      Considero, no entanto, um conjunto de letras demasiado invulgar para não conter algum significado.

      Cumprimentos,
      Djorge

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    2. Excelente informação.
      De facto, pode ler-se aqui:

      https://en.wikipedia.org/wiki/Nusantara


      "Nusantara is a Javanese word which appears in the Pararaton manuscript.
      In Javanese, Nusantara means "outer islands", from nūsa, meaning 'island' and antara, "within".
      Based on the Majapahit concept of state, the monarch had power over three areas:
      1...
      2...
      3. Nusantara, areas which did not reflect Javanese culture, but were included as colonies which had to pay annual tribute. This included the vassal kingdoms and colonies in Malay peninsula, Borneo, Lesser Sunda Islands, Sulawesi and Maluku."


      Essa informação é especialmente concordante com este post

      https://alvor-silves.blogspot.com/2012/11/o-panorama-austral.html

      ... onde se afirmava que a raça dominante na Austrália era a dos malaios... ou seja, não havia apenas aborígenes, conforme é habitualmente veículado.

      Por isso, faz todo o sentido tratar-se de uma palavra malaia, respeitante à Austrália, conforme é descrito no termo Nusantara, que seria o mesmo que Nuca Antara.

      Quanto às possíveis conexões com o português, pois gostei especialmente delas, e acrescento outra coisa. Parece claro que "antara" e "entre" estão próximos, mas além disso "nuca" tem raiz indo-europeia ligada à palavra "noz":

      https://www.etimo.it/?term=nuca
      https://en.wiktionary.org/wiki/nux

      ... isso também se adequa a possível interpretação da palavra malaia "nusa" que foi escrita "nuca" e significa ilha. É interessante ligar-se a Austrália a uma parte que "está por detrás da cabeça"!

      Abraço.

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    3. Pois bem Caro Alvor,

      Mais uma preciosidade que encontrei num "outro" mapa de Dieppe, que penso, ainda não ter sido mencionado aqui no seu blog.
      Trata-se de:
      Titre : [Mappemonde en deux hémisphères] / Ceste Carte Fut pourtraicte en toute perfection Tant de Latitude que / Longitude Par moy Guillaume Le Testu Pillotte Royal Natif de / La ville Françoise de grace... et fut achevé le 23e jour de May 1566
      Auteur : Le Testu, Guillaume (1509-1572). Cartographe
      Date d'édition : 1566

      Existente na BNF com o link: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b5906267c/f1.item.r=atlas.zoom

      Ora, até ao momento, a cópia que tinha visto, não permitia zoom suficiente que desse para ler o texto na caixa sobre o território Austral "pacífico".
      No entanto, uma pesquisa por outro tema, resultou num único link, mas com 2 versões do mesmo mapa, e, esse link que lhe apresento tem um nível de zoom superior e permite a leitura seguinte:

      "Auleuns Portugays Allans aux Indes Furent par Contrarieté de Temps trasportes Fort su, du Cap de Bonne esperance Les quélz Firent Raport que Ils auorent eu Quelque Congnoisance de Ceste Terre Toutefoys por Navoir este descouverte Aultemp le layseullemt y ey Notée Ny voullant adiouter Foy."

      Que traduzi/interpretei para PT do seguinte modo:
      "Alguns portugueses, indo para a Índia, foram, por inconveniência do tempo, transportados fortemente para o Sul do Cabo da Boa Esperança. Os quais relataram que tinham algum conhecimento "desta terra", embora, por não dever ser descoberta no momento, deixaram-na e anotaram-na e não a quiseram adicionar (conquistar)"

      Convém, no entanto, obter uma opinião de um letrado em Francês com mais experiência que o meu "Quebecois" de liceu, confirmar o que transcrevi.

      Melhores cumprimentos,
      Djorge

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    4. Muito interessante, sem dúvida.
      Juntamente com a descrição de Ramusio, é mais uma prova de que os portugueses foram, sem margem de dúvidas, até à Antárctida.
      Assim que tiver tempo, vou fazer um post com estas informações que trouxe.
      Muito obrigado.

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    5. Fiz o post correspondente, com uma pequena alteração no fim da tradução, pois creio que na parte final, Tetu está a falar de si e não dos portugueses. Aliás, ele faz o mesmo noutras caixas de texto. Há umas palavras que não são bem legíveis de forma que também não será esta a melhor tradução, mas creio que pelo menos já não mudará o sentido da última afirmação.
      Abraço.

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    6. Caro Alvor,

      Sabe? Suspeito que se trate da Australia e não da Antartida.
      Repare que a geometria do continente Australiano está rodado os tais 90º ou seja o ESTE deveria ser o NORTE como os restantes mapas da escola de Dieppe. Houve claramente um erro de interpretação dos mapas, prepositado ou não pelos Portugueses, visto serem cópias de originais copiados, o facto é que esta rotação dos mapas de facto iniquivocamente comprova que se tratam de mapas do continente australiano.

      Assim, rodando o mapa mas mantendo a caixa, seria mais o Continente Australiano que o Antartico.

      Cumprimentos,
      Djorge

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    7. Entendo, e isso lembra-me os "Roaring 40's", ou seja, os ventos que permitiam ir depressa do Cabo da Boa Esperança até à Austrália... conforme fez a nau S. Paulo, e conforme depois faziam as naus holandesas quando iam para a Indonésia ou a Austrália, seguindo a Rota de Brouwer.

      Tinha pensado incluir isso no postal que fiz sobre essa nau:

      https://alvor-silves.blogspot.com/2018/09/a-nau-sao-paulo.html

      ... mas depois esqueci-me, e não era justificação um postal só sobre isso.

      No entanto, tal como acontecia na cartografia, também os relatos sobre os ventos seriam misturados. Creio que Tetu se limita a reproduzir o habitual, ou seja, a mistura entre Antárctida e Austrália.
      Por um lado, chama-lhe "Region Glacialle", mas por outro lado coloca animais que seriam mais próprios de África, que de outro lado.
      Mas estou de acordo, conforme já referi a propósito de Brouscon e Bouache, pareceu haver uma incompetência propositada, no sentido de representar a Austrália - ou na América do Sul (menos habitual), ou na Antárctida (mais habitual):

      https://alvor-silves.blogspot.com/2011/01/brouscon-incompetencia-na-america-vs.html

      Abraço.

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