Alvor-Silves

domingo, 18 de novembro de 2018

Questão de... civilização

A propósito do IVA nas touradas, disse a ministra da cultura
- "Não é uma questão de gosto, é uma questão de civilização..."

Na civilização Azteca a questão sacrificial estava tão embebida na cultura que podemos ficar surpreendidos com relatos em que as vítimas, por questão de honra, pediam para ser sacrificadas, ao invés de ficarem satisfeitas com a libertação:
The conquistadors Cortés and Alvarado found that some of the sacrificial victims they freed "indignantly rejected [the] offer of release and demanded to be sacrificed". [wikipedia - R. Townsend (1979) "State and Cosmos in the Art of Tenochtitlan"]
O que ocorreria hoje, se os espanhóis não tivessem levado a cabo um dos maiores genocídios humanos e culturais, como aquele que foi feito com as civilizações Azteca, Maia ou Inca?

- O que restou na América Latina foi essencialmente uma civilização espanholada, fortemente educada pelos padres espanhóis que se dedicaram a instruir a população pelo fogo e pela Bíblia, e assim os registos mais cruéis que subsistem ainda hoje estão associados a gangues ligados ao narcotráfico, num registo de necessidade de violência ou terror, como forma de poder.

- No entanto, noutras partes do globo não houve propriamente uma quebra cultural com um passado de tradições violentas, e o caso mais paradigmático é o da Arábia Saudita. 

Há assim estados, onde práticas ancestrais se mantêm, como se nada se passasse... e tal como a Arábia Saudita pôde ser indicada para chefiar a comissão de direitos humanos da ONU em 2015, passados poucos meses pôde ordenar a decapitação de 43 condenados à morte, incluindo o carismático xeique Nimr.

A Arábia Saudita parece assim protegida por um estado de graça a que se chama politicamente correcto, ou simplesmente, petrodólares... ao ponto de ter mesmo decidido arriscar o assassinato fora de portas, na Turquia, de Jamal Khashoggi, crítico do regime exilado nos EUA em 2017, e que era jornalista associado ao Washington Post. Segundo o mesmo Washington Post, a CIA terá confirmado ontem que a ordem partiu do príncipe herdeiro da Arábia Saudita. Na lógica de Trump, que elogiava os negócios bilionários que a Arábia Saudita fizera com os EUA, a relação entre civilização e cacau, começa a ficar complicada, e esta pequena "falta de respeito" deverá ter que ser reencenada, na lógica do politicamente correcto.

Dir-se-à que há 40 anos a França ainda guilhotinava pessoas, que os EUA mantêm a pena de morte na maioria dos seus estados, ou que a China chega a executar mais condenados do que o resto do mundo... mas há uma grande diferença, que é a ligação a uma tradição corânica, milenar. 
Seria o mesmo que o México executar pessoas retirando o seu coração numa pirâmide, porque considerava correcta essa tradição religiosa azteca. 

Se as pessoas estiverem suficientemente anestesiadas, para considerar que é uma honra ser protagonista num espectáculo de sacrifício humano, como estavam algumas das vítimas aztecas, então poderá dizer-se que é um problema seu... e que não nos diz respeito. Só que esse espectáculo não é privado, é público, e como tal, todos participamos no sentimento da lâmina a deslizar pelo pescoço... sendo ainda claro, como na Arábia Saudita, que em muitos casos os motivos são políticos e não criminais, não havendo propriamente qualquer compreensão dos condenados.

Questão de... natureza
Sabendo que executamos milhares de milhões de animais diariamente, parece algo caricato colocar um problema num espectáculo como a tourada, que em Portugal só em casos excepcionais tem associada alguma morte em palco. 

Só que mais uma vez o que está em causa é a empatia.
Neste caso, a empatia com o animal, com o touro.
A sociedade actual tem ainda o lado ridículo de ter pessoas com mais empatia com animais, do que com outras pessoas... mas esqueçamos essa abnormalidade previsível.

A natureza teve uma evolução violenta a partir do momento em que definiu os animais, e implicou que a sobrevivência de uns só se pudesse dar pela morte de outros. No entanto, essa sobrevivência animal não era normalmente levada ao ponto da morte dentro da própria espécie, como passou a verificar-se com os hominídeos. 
Já referimos que essa evolução foi determinante para o desenvolvimento cognitivo, no sentido em que tanto os predadores evoluíam na capacidade de capturar as presas, como as presas evoluíam no sentido de escapar aos predadores. Quem melhor conhecia o predador era a presa, e quem melhor conhecia a presa era o predador. Quando estas espécies eram diferentes, o conhecimento era separado, e só quando passámos a hominídeos, os predadores e presas passaram a ser o mesmo sujeito - os homens... mesmo que pela têmpera uns tivessem mais postura de presas e outros tivessem mais postura de predadores.

É lixado, mas se prezamos a nossa capacidade cognitiva, não podemos dissociar que ela foi só possível em termos evolutivos, pela competição violenta entre animais, e depois entre homens.
É perfeitamente natural que haja ainda quem pense que uma evolução cognitiva só será possível estimulando a competição humana, colocando uns como predadores e outros como presas. Há assim uma elite social que gosta de se ver como predadora, vendo toda a restante população como presa, como gado, do qual se "alimenta", ou o qual conduz como "rebanho", estando a esses guardado o papel de "pastores". Tem ainda como ideia condicionada que as maiores evoluções técnicas resultam de grandes guerras... ignorando que essas guerras apenas libertam um potencial técnico já existente, e escondido dos olhos da maioria.

Questão de... nova civilização
Ora, o que é claro é que a partir do momento em que o confronto foi colocado na própria espécie, só falta encontrar o último adversário. Só percebe quem chega ao topo da pirâmide que, tendo eliminado todos os restantes adversários, o último adversário que se opõe a si, é o próprio.
Se chegou a essa conclusão só depois de eliminar todos os adversários, pois é tarde demais... acabou por se encontrar num universo sózinho, do qual não tem saída.

Se chegar a essa conclusão antes disso... pergunta-se o que fazer daqueles que continuam a comportar-se como predadores, e daqueles que gostam de se armar em presas?... mas essa é a mesma questão que os humanos tiveram quando se depararam com predadores e presas de outras espécies. 
O que fizeram? 
Foram falar com o leão e tentaram convencê-lo a não os comer?
Claro que não, simplesmente evitaram-no enquanto puderam, e depois, quando pela arte e engenho suplantaram a ferocidade do bicho, circunscreveram-no à sua insignificância animal.

Portanto, quem entender o suficiente, sabe exactamente o que há a fazer.

8 comentários:

  1. Trump iguala Trump, ao relativizar o relatório da CIA como "nada de definitivo", e lembrando que:

    "If you want to go see oil prices go to $150 a barrel, all you have to do is break up our relationship with Saudi Arabia".

    Trump 'stands with' Saudi Arabia and defends crown prince over Khashoggi.
    President issues extraordinary statement of support and repeats Saudi claim that murdered journalist was ‘enemy of the state’

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  2. li no Face que uma Rainha em Portugal tinha abolido as touradas, não creio nos relatos dos espanhóis sobre os sacrifícios dos aztecas, porque não colam com a descrição da sociedade por eles descrita, podiam continuar as touradas com bandarilhas de borracha como na Florida, até montar a cavalo é uma violência ao animal, e é, já substituem a ferragem por uma espécie de sapato em vez de ferradura, aqui vamos a votos para acabar com a pratica de queimar a matriz dos cornos dos bezerros, são feitos com anestesia, mas sofrem, por mim animais são para viverem livres na natureza longe dos homens, passo bem sem touradas circos e bifes, não concordo que fanáticos dos bichos lidem com eles como se fossem pessoas, ridículo, isto está a voltar ao que faziam os egípcios com os bichos…

    Cumprimentos de Genebra
    José Manuel

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  3. Bom dia a ambos,

    Caro José Manuel agora surpreendeu-me... pela negativa.

    Eu sou todo pró ambiente e protecção na Natureza mas temos de manter alguma sensatez no assunto.

    Primeiro, os touros não são animais "naturais". Foram criados precisamente para a prática da tourada. Sem a touradas eles simplesmente não existiriam. Não penso que a abolição seja o caminho mas evolução sim. Por exemplo substituir as pontas das fartas por um pequeno pote de tinta que rebentasse ao tocar no animal e descarrega-se um pequeno choque eléctrico apenas para causar alguma reacção ao touro. Uma capa no dorso do animal onde as fartas não ferissem o animal, sei lá qualquer coisa mas acabar com uma actividade lúdica, tradicional, económica e campestre não me parece a solução correcta. Acabemos com tudo o que é tradição e acabemos de vez com o que nos distingue dos demais em prol de um mundo cinzento e uniformizado.

    Segundo, quantas sociedades existiriam que nos vislumbram como "avançadas" (e outras nem tanto) e que no entanto mantinham a prática dos sacrifícios humanos? Os aztecas não foram excepção só porque não quer.

    Terceiro, em que Natureza viveriam os animais em paz? Essa escassa Natureza é residual. Devemos tentar preservar a que existe e sermos eficientes ao ponto de conseguirmos alargar os espaços verdes e naturais mas não vamos querer que andem ursos, leões e tarântulas entre nós. Se não fosse a malta tauromáquica, esses toiros que vivem em semi-liberdade por essas lezírias fora existiriam onde? No meio das localidades às cornadas a quem apanhassem pela frente? Ou nos eucaliptais onde não arranjariam alimento e muito menos água? Ah e não esqueçamos de que se fossemos todos vegetarianos, teríamos de desflorestar tudo o que é floresta para plantar soja e cearas que nos alimentassem a todos.

    Cumpts,

    JR

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  4. O João não leu bem o que comentei, sim podemos passar sem touradas circo e comer animais, não imponho isto a ninguém! ser vegetariano ou vegan (uma forma de viver que busca excluir, na medida do possível e do praticável, todas as formas de exploração e de crueldade contra animais, seja para a alimentação, para o vestuário ou para qualquer outra finalidade -in Wiki) não implica tornar o planeta numa enorme quinta vegetariana, com as tecnologias ao dispor podemos viver sem o trabalho dos animais e sua carne, não se perdia nada se o fizéssemos, só teríamos a ganhar, sem estar à espera da carne de frango feita de células dos galináceos em laboratório, ou algo parecido, tem tanta coisa proteica a consumir como a Espirulina, as algas, o Homem de Neandertal consumia vegetais que cultivava, sim os animais sofrem, não serei vegan, sou celíaco já me chega, mas como simpatizante budista antes de comer carne faço o meu pequeno ritual interior da compaixão Om Mani Padme Hum, se isto tudo o surpreende pela negativa fico entristecido por si caro João Ribeiro.

    Cumprimentos de Genebra
    José Manuel

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    1. Eu percebi caro José Manuel e acho que faz muito bem em ser como é. Também longe de mim querer que me dê explicações daquilo que acha correcto. Também eu desejo viver em harmonia com a Natureza e já o disse várias vezes que considero o verdadeiro "conhecimento" o saber viver em harmonia com a Natureza. O problema é que existem muitas premissas nesta equação...Por exemplo, simplesmente não existe ecossistema hoje em dia para albergar todos os animais que neste momento fossem postos em liberdade. O próprio facto de termos animais de estimação é cruel porque os esterelizamos, porque vivem enclausurados em apartamentos, em jaulas nos zoos, etc... Matar animais para alimentarmos os outros animais, é moralmente correcto? E quais os animais que teriam permissão de viver e os que não teriam essa permissão? Os ratos e ratazanas que transportam doenças e vivem espalhadas pelas cidades e se multiplicam aos milhões? E os insectos? E as plantas, quem nos garante que elas não sofrem uma vez que são seres vivos? É válido comê-las só porque não se queixam da sua dor? Enfim são muitos os exemplos. Quanto à alimentação, penso que estamos a viver um momento de transformação com esta moda gourmet de que apenas se aproveita o facto de redescobrirem novas fontes de alimentação, inclusive de proteína. Por exemplo já se começa a fazer farinha e produtos alimentares vindos da bolota, antigo alimento dos Lusitanos. Eu não sigo nenhuma dessas modas sofisticadas de alimentação mas implementei aqui em casa as segundas-feiras verdes em que não se come carne nem peixe. Também faço um dia de jejum por mês. Fui vegetariano um ano e considero que perdi qualidade de vida nesse ano. Sou um bom garfo! Adoro um bom peixe grelhado e aquelas comidas de conforto bem à portuguesa...

      Bem, um abraço e não se chateie comigo.

      JR

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  5. A questão das touradas é daquelas questões que pode suscitar acesas discussões, e devemos mantê-la tão perto quanto possível do que podemos concluir em comum, sem grande polémica.

    Que há uma tradição tauromáquica nacional, niguém pode duvidar, e que está enraizada mais a sul do Mondego do que a norte, também é mais ou menos claro. Esses também foram os terrenos mais próprios para a criação taurina, e o João tem razão quando argumenta que os touros foram mantidos e apurados para o efeito das touradas.

    No entanto, não nos podemos esquecer das imagens cretenses sobre "taurocatapsia":

    https://pt.wikipedia.org/wiki/Taurocatapsia#/media/File:Bull-leaping.jpg

    ... e ainda que os animais não fossem negros, tinham um mesmo porte e aspecto que os remete aos nossos touros.

    Além disso a paixão pelos touros, exibida por esse argumento ganadeiro, entra em conflito com a paixão ser alimentada pelo propósito final da lide, que não é propriamente uma forma carinhosa de tratar a paixão.

    Se o estado tiver o cuidado de obrigar a que sejam mantidos touros nas grandes propriedades, que sempre os tiveram, pois isso permitirá avaliar acerca dessa paixão taurina... sendo certo que esses pedintes, irão sempre pedir compensações financeiras.

    Mas tem razão, creio que a evolução natural das touradas seria um espectáculo mais inofensivo, em que o touro seria corrido sem ser espetado na carne.
    Não será suficiente para o PAN, ou similares, mas esses senhores precisam de mostar tanta compaixão pelos homens, quanto têm pelos animais.
    Até ao momento em que se continuar a gozar com pessoas, na forma de autênticas touradas, como são por exemplo as praxes, não há qualquer razão para proibir que se faça o mesmo com animais.

    Abç

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    1. No norte as corridas de touros não têm tanta expressão mas por outro lado têm as chegas de bois que consistem em 2 bois a enfrentarem-se. Pois, nisto das touradas haveria muito a dizer e como por vezes o melhor é mesmo não dizer nada, por aqui me fico.

      Abraço,

      JR

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