Alvor-Silves

segunda-feira, 9 de julho de 2018

Mustang

Este é um daqueles postais que se resume à ilustração:


Na ilustração vemos a musa Lusitania acompanhada pelas musas da  (Fidae) e da Força (Fortitude), em cima do globo terrestre, indo à frente quatro elementos típicos dos continentes:
  • América - um chefe índio americano, em cima de um cavalo;
  • Europa - um rei europeu, em cima de um boi, digamos de um touro;
  • Ásia - um marajá indiano, em cima de um elefante (indiano);
  • África - um chefe africano, em cima de um leão.
Para quem ainda não achou nada de estranho, é perfeitamente natural ver o leão como símbolo de África, o elefante como símbolo da Índia, da Ásia, o touro como símbolo da Europa - atendendo até ao mito do rapto de Europa por Zeus, disfarçado de touro branco... mas há um pequeno problema ao considerar o cavalo como símbolo da América.

Porquê? - Porque, segundo a nossa notável estória, historieta feita História, não existiam cavalos na América até à chegada dos Europeus.

A ilustração está no livro "Historia del Reyno de Portugal", de Manuel de Faria e Sousa (1590-1649) que escreveu a maior parte da sua obra em castelhano, tal como seria natural a um catalão não optar pelo catalão, para uma maior divulgação dos seus escritos.
Para além da "Epítome de las Historias Portuguesas" que é de 1628, a primeira edição desta "História" aparece postumamente em 1677, à qual não tive acesso, mas esta figura antecede pelo menos a segunda edição de 1730, à qual tive acesso:

Esquecendo, o exagero de se colocar um rei africano em cima de um leão, ou um rei europeu em cima de um touro, ou eventualmente os freios no cavalo índio, qual seria a ideia de colocar um chefe índio associado a um cavalo, se tal não fizesse sentido? Faltavam ao desenho lamas, alpacas ou alces?

Admitindo que o desenho estava apenas nesta edição de 1730, mesmo nessa altura não é reportado o uso extensivo do cavalo por parte das tribos índias norte-americanas. Aliás, nessa altura grande parte da colonização era ainda instável e muito circunscrita aos territórios leste, junto à costa.

Aquilo que se procura difundir é que os cavalos ibéricos perdidos pelos espanhóis tinham fugido, e ficaram selvagens. Ou seja, por exemplo, os mustangs, uma das raças americanas mais famosas, teriam saído do México, e tornando-se selvagens desenvolveram características próprias. Só depois, os índios passaram a usá-los com grande agilidade... digamos, isto já na altura de 1800, que foi quando começaram a haver confrontos na expansão norte-americana
Para esse efeito, fazem-se estudos de DNA, tão "minuciosos" que praticamente concluíriam que todos os homens que tivessem um sinal na cara tinham o mesmo pai. Na prática há um estudo geral sobre as relações entre as diversas raças da cavalos, que permite ver que está mais próximo o cavalo Lusitano de um pónei do Cáspio, do que está de um Tenessee Walker.

Quem fez esta tabela escusou-se a inserir os Mustangs... ("There are several mustang registries, but overall there is just too much complexity to consider them in breed ancestry analysis.")

Parece claro que no México Azteca, ou no Perú Inca, não existiriam cavalos, ou pelo menos disso não ficou registo. No entanto, isso não significa que não existissem em abundância nas pradarias da América do Norte, ou nas pampas sul americanas. No Séc. XIX, com o estabelecimento dos grandes fazendeiros, é natural que tenham sido desenvolvidas raças particulares, com diversos cruzamentos, mas essa é uma questão completamente diferente, que não se colocava em 1677 ou 1730.

É ainda natural que os espanhóis, começando a colonização pelo México e pelo Perú, onde não havia cavalos, quando chegaram a novos territórios americanos, consideraram que os cavalos selvagens aí existentes seriam ferais - ou seja, eram selvagens resultantes de animais domesticados.

Isso poderia ser assim, mas nesse caso nunca justificaria assumir-se o cavalo sob um índio como emblema americano.
O que esta gravura mostra é que havia uma clara consciência no Séc. XVII e XVIII de que os cavalos eram de origem americana. Talvez a questão surja mesmo na direcção oposta - ao ponto de os cavalos ibéricos poderem ser descendentes dos americanos (... excluindo o garrano que aparenta ser uma raça autóctone). Para isso falta apenas considerar que muito antes de haver exportação, poderia ter havido importação...

Ficou-nos o mito de que os cavalos lusitanos tinham uma origem bizarra... eram "filhos do vento", ou seja que as éguas eram inseminadas pelo vento Zéfiro, o vento de Oeste.
Não poderia servir esta alegoria para ilustrar que foi o vento de Oeste que permitiu insuflar velas para ir à América buscar uma raça de cavalos bem diferente dos cavalos originais, com compleixão de garranos, que aparecem pintados nas pinturas rupestres?

Finalmente, um pequeno detalhe.
Qual era o deus egípcio associado ao cavalo? Se os egípcios associaram muitos dos seus deuses a animais (inclusive o escaravelho), não encontramos entre os seus deuses o cão, o galo, ou o cavalo (entre outros). As primeiras representações de cavalos dão-se aquando da invasão dos Hicsos, c. 1600 a. C., um povo de origem indo-europeia... e esses animais ausentes da mitologia egípcia acabam por estar ligados a uma herança indo-europeia, céltica. A presença dos cavalos no Egipto pode ter tido o espanto conjecturado que os cavaleiros tiveram na Grécia, sendo vistos como centauros... um misto homem-cavalo.
É razoavelmente diferente ter um exército montado em cavalos, ou ter um exército montado em burros... tornando claro que não era indiferente a raça de cavalo que tornaria os cavaleiros um factor decisivo em múltiplas batalhas da Antiguidade. Especialmente se atendermos que até 2000 a.C. pouco ou nenhum registo há do uso de cavalos... começando apenas nas estepes euroasiáticas.
Assim, na altura da Guerra de Tróia, Séc. XIII a.C., apesar da rápida difusão após o Séc. XVI a.C., o cavalo seria ainda um factor relevante no equilíbrio ou desequílibrio de um cenário de guerra. Fosse ele prenda dos visitantes, ou prenda aos visitantes, por ser criado na região. Digamos que, se Tróia venerava os cavalos, a sua apropriação pelos visitantes gregos equilibraria as coisas...
E a própria palavra equilibrio, ainda que se decomponha em "equi" (igual) e "libra" (peso), também tem o prefixo equídeo e sufixo liberal.

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Nota adicional (13.08.2018):
Encontrei agora diversos textos de Gunnar Thompson (falecido em 2017):
http://marcopoloinseattle.com/wp/articles-by-gunnar-thompson/
um dos quais com o título
que começa assim:
According to most leading scholars in history, anthropology and geography, none of the Native Tribes had horses until after Columbus. “On the contrary,” say elders of the Plains Indian Tribes, “our ancestors always had horses.”
Este texto lançara apenas a suspeita motivada especialmente pela figura encontrada. 
Gunnar Thompson adiciona muito mais elementos, mas seria bom começar por dar a palavra aos próprios índios das grandes planícies americanas... 
Também não é difícil perceber que nesta sociedade de pedestal a conta está feita, e pouco interessa o que dizem as parcelas que não se têm em conta.

Não se pense que isto é culpa dos que figuram no pedestal, isto é culpa de todos os que os colocam num pedestal, ou seja 99.99% das pessoas, simplesmente para não terem que se aborrecer com assuntos que acham que não lhe dizem respeito. 
Habituados a aceitar sem questionar, só quando questionam percebem que ficaram sozinhos.

domingo, 8 de julho de 2018

dos Comentários (38) - Amtonio ...

Segue-se uma troca de comentários via email, com David Jorge, a propósito de um mapa de 1545, atribuído ao cartógrafo português António Pereira. O mapa tem a particularidade de lhe restar apenas a parte ocidental, onde se lê "Amtonio"... do lado oriental ler-se-ia "Pereira". A parte oriental pode-se ter perdido por diversas razões, sendo a mais natural de todas ter aí desenhado uma ilha como a Austrália.

----  (extracto do email de D. Jorge em 04.07.2018) ----

Eis que da John Carter Brown Library, surge um mapa datado de 1545, que não só corrobora que Portugal tinha domínio da costa Este no continente Norte Americano, como também diferencia (e a meu entender, delimita) bem a ocupação Portuguesa, Castelhana e Francesa à data.

Link para o mapa (ainda não está na biblioteca, mas vai estar):  
https://jcb.lunaimaging.com/luna/servlet/detail/JCBMAPS~1~1~1673~102490002:Amtonio--North-and-South-America-



Do autor, António Pereira, ainda não encontrei grande informação pois ainda não tive tempo suficiente para aprofundar mais os arquivos, o próprio modo de arquivar das bibliotecas americanas dificulta as pesquisas, pois arquivam sobre o "inglesismos" ou com informação insuficiente [neste caso Amtonio (apenas o primeiro nome)] o que por vezes torna o nome quase impossivel de encontrar em cruzamento de dados de oturas bibliotecas (outro exemplo. Henricus Martellus está arquivado na Yale Library como Heinrich Hammer) mas repare que a própria biblioteca não se ocupa muito com a analise do mapa, apenas se dedica a dar relevo à expedição de Orellana colocando de parte a importãncia das várias bandeiras pela costa Americana tudo isto dificulta a pesquisa.


Neste mapa temos bandeiras das quinas, desde o Norte do Lavrador até quase à Florida, e as Francesas não descem abaixo do Rio São Lourenço (coerente com a história de Cartier).
Temos bandeiras justamente onde há registos de ocupação Portuguesa como a pedra de Dighton (coerente com as viagens dos Corte-Real e contrario ao que em mapas Castelhanos colocam as terras dos Corte-Real a Norte do Rio São Lourenço).

Como se isto não fosse por si importante, pelo facto de corroborar mapas que, erradamente, estão datados de 1590, onde estou de acordo com a sua datação para 1560 (ie. Mapa de P.Lemos e S. Lopes), este mapa também corrobora a teoria dos mapas de Dieppe terem sido copiados dos Portugueses, e neste caso eu diria mais, não foi apenas o conteúdo dos mapas que foi copiado, mas o próprio estilo de representação é igual. A diferença entre o atlas Vallard, por exemplo, é de 2 anos para este mapa no entanto parece que foi pintado ao estilo do mapa de António Pereira.


----  (extracto da resposta de 'da Maia') ----

.... é uma óptima descoberta, pois também nunca tinha visto uma demarcação tão clara das posses portuguesas na América do Norte. Normalmente ficam-se por uma ou outra bandeira na zona canadiana. Aqui claramente vai mais abaixo, deixando uma zona francesa pelo meio.

O mapa está um pouco distorcido/comprimido, mas eu diria que a bandeira mais a sul (quinas em verde) estará pela zona da Virginia/Delaware, e a norte (vermelha quinas azuis) estará pela zona de Massachussets/Maine. Infelizmente o cabo Cod não está bem identificado, e mesmo a baía Chesapeake não é clara qual seja. Também estou com dificuldade em ler as legendas, consegui perceber poucos nomes.

As outras duas bandeiras portuguesas - já na parte canadiana - Labrador, são diferentes, mas mantêm verde ou vermelho no contorno.
É bastante interessante e estranho.... 
A datação de 1545 corresponde ao tempo em que foi declarado o Japão. Apesar de não ser já o fulgor dos descobrimentos, é uma data em que os portugueses tinham ainda um controlo quase total sobre o mar (é a época do galeão Botafogo...)

Na minha opinião, o que se passava é que havia uma série de portos de contacto ao longo da costa dos Estados Unidos. Pelo tratado de Tordesilhas, deveriam ficar para Espanha, mas creio que depois da polémica no anti-meridiano - Tratado de Saragoça, os portugueses já não estavam com tanta vontade de entregar tudo aos espanhóis. Concretamente, a parte da Terra Nova (que tem bandeiras mais formais) creio que estaria nos planos ficar portuguesa.

Com a evolução das coisas, os portugueses acabaram por perder a independência, e a Rainha Isabel I só dá ordem de colonização da Virgínia em 1584, provavelmente com o acordo do Prior do Crato, para o apoio inglês. A partir dessa altura, os ingleses tomaram a parte dos Estados Unidos como sua, como "presente" português...  especialmente depois da Restauração, com o casamento de Catarina de Bragança.


A existência desse mapa seria muito interessante para a história dos EUA, caso eles tivessem mesmo vontade em mexer no assunto - coisa que por agora não têm.


----  (extracto da resposta de D. Jorge) ----


Entretanto, encontrei em Jstor.com umas páginas de um artigo escrito por Armando Cortesão em 1939 para a American Geographic Journal descrevendo exatamente a mesma dificuldade que encontrei em encontrar informação que ligasse, o nome de Antonio Pereira à cartografia:


Cortesão descarta, tal como o arquivista da John Carter Library, a importancia das bandeiras Portuguesas na costa Este americana e também se defronta com um dilema pois encontra um António Pereira, que não está ligado à cartografia, a viver em Portugal exatamente no periodo que Orellana regressa do Amazonas e é retido em Portugal pelo Rei durante 15 a 20 dias.

Esse facto, e o detalhe na toponímia do mapa coerente com o relato de Orellana, datariam o mapa em 1543 (anterior ao mapa de Cabott de 1544), no entanto Cortesão refere, (e mal, a meu entender), que atribui uma data de 1545 ao mapa pelo facto da Terra Nova estar representada como um conjunto de ilhas, faltando o relato de Alfonse transmitido por volta de 1546 a Freire. Para mim, esse pormenor do mapa, só comprova que o ele seria muito anterior, e não posterior ou próximo de 1546.

Tenho dúvidas, se o "Amtonio" não terá sido de o de Hollanda, pois a datação do mapa por Cortesão de 1545 ou anterior 1543, assim como o estilo artístico do mapa, enquadram-se na tanto na personna como no periodo em que esteve activo para a corte portuguesa. 
Outro ponto a favor desta suspeita, é que este mapa não é exatamente uma carta de pilotagem, nem o seu estado comprova utilização na navegação, encontrando-se bem conservado sem indícios de marcas de rumos com pontas de compasso ou manchas, indicando que provavelmente teve um destino mais decorativo que propriamente para uso no mar.

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quarta-feira, 4 de julho de 2018

O "ovo cósmico" do Algarve

Talvez com algum benefício para a região turística do Algarve, o History Channel, canal das estórias que se dedica quase em exclusivo à ficção científica OVNI, decidiu dar eco a uma interpretação fantasiosa sobre um menir que está no museu de Lagos:


Trata-se de um menir encontrado na região de Silves, com a datação de 5000 a.C., que tem uma forma arredondada (que é vista como um "ovo"), acrescentada uma interessante inscrição de alto relevo - que é interpretada especulativamente como figurando uma cadeia de DNA.

A receita é quase sempre a mesma. Os olhos são sintonizados para uma interpretação, e depois tudo cabe nela, com mais ou menos especulação.

Já aqui falámos no símbolo do "ovo cósmico", que é uma noção mais geral, e que está enquadrada numa mitologia da Antiguidade:

Que o símbolo em alto relevo no menir se pudesse referir a alguma coisa desse género, relacionada com algum culto da cobra, ainda seria uma coisa razoável.... mas depois vem a necessidade de especular com um conhecimento da estrutura helicoidal do DNA, que serve apenas para colorir com cores berrantes, próprias do negócio. Sim, porque as estórias alienígenas transformaram-se em pouco mais do que uma grande negociata esotérica, em que curiosos ou investigadores medíocres ganham algum estrelato popular. No meio disto tudo, como em tudo, encontra-se alguma gente séria...

A estrutura helicoidal do DNA não está minimamente representada porque há nenhuma linha vertical, que não tem significado molecular, como acontece com o caduceu de Hermes:

... e ainda que, no caso do caduceu, essa linha possa ser vista como figurativa, não o seria no caso das inscrições. 

Ora, o interesse deste tipo de especulações, é que acabam por chamar a atenção para objectos que de outra forma ficariam esquecidos nas arrecadações dos museus... 

Ao invés de se especular que está ali uma hélice de DNA, seria muito mais aceitável especular simplesmente que poderia ali estar a origem do símbolo do caduceu de Hermes/Mercúrio.
Porque, para além de alguma semelhança geral, o número de entrelaçamentos parece ser o mesmo.

A hélice do DNA nunca foi "vista"
Apesar de ser conhecimento comum que o DNA tem uma estrutura helicoidal, há muita bonecada que o ilustra, mas não há nenhuma foto dessa estrutura. Em 2012 foi feita uma fotografia com cristalografia de Raio X, que deu o melhor que se conseguiu até ao momento - a fotografia de um molho de cadeias de DNA enrolada (e não de uma única):

Ou seja, fala-se na dupla hélice do DNA por razões teóricas que resultaram de cálculos levando à justificação de uma difracção de ondas, nomeadamente a chamada "Foto 51":
Foi a partir desta "Foto 51", (do laboratório de Rosalind Franklin) que foi idealizado o modelo da dupla hélice em 1953 por Watson e Crick.

A partir daqui entram os ET's que transmitem essa informação aos trogloditas, mas sempre ao ponto de não trazerem nada mais do que rabiscos ondulados, que qualquer um poderia ter feito em qualquer altura, sem nenhum significado. Com o mesmo grau de certeza, esta seita poderá dizer que qualquer criança que faça dois rabiscos ondulados, está a antever a estrutura do DNA.