Alvor-Silves

sábado, 20 de janeiro de 2018

Espada à Cinta

No mês passado, ao responder a um comentário de Gualdim, indiquei um site que me pareceu excelente a vários níveis:
ou Atlas do Sudoeste Português

É um projecto conjunto de várias câmaras do litoral alentejano, até Sagres, e reúne informação diversa, alguma arqueológica, da qual gostaria de destacar dois apontamentos que me despertaram a atenção. 

1. Pintor dos Tirsos Negros
Trata-se de um pintor do Séc. IV a.C. supostamente associado a cerâmica de influência grega encontrada perto de em Alcácer do Sal (na necrópole do Senhor dos Mártires):

Na legenda a esta figura lê-se:
Fig. 41B - Kratêr-de-sino. Cerâmica ática de figuras vermelhas, pelo pintor dos Tirsos Negros, 375-350 a.C.. Cena dionisíaca. Ménades e Sátiros. Alt.: 29cm. Diâm. máx. 28cm. Necrópole do Senhor dos Mártires, Alcácer do Sal. Colecção do Instituto de Arqueologia da Universidade de Coimbra. Cf. Pereira, 1962.
Encontramos mais informação sobre vasos gregos em MatrizNet ou em livros, após o trabalho de Helena Rocha Pereira sobre vasos gregos (aquém das Colunas de Hércules), que acerca do Pintor dos Tirsos Negros diz o seguinte acerca da cena dionísica:  «Uma particularidade que distingue o seu autor é o facto dos praticantes deste culto usarem tirsos com a parte superior escura e diferente do desenho habitual.» 
Daqui explica o epíteto "tirsos negros" dado ao pintor. Porém, a questão mais importante é o registo de pelo menos 104 peças, com motivos gregos, metade das quais completa, encontradas em 36 sítios arqueológicos. Ainda que haja quem duvide da presença grega após as Colunas de Hércules, ou seja na costa não mediterrânica, este espólio permite pelo menos assegurar que o comércio trouxe bastantes produtos com influência grega até Portugal, na Antiguidade... Ou então, existiria mesmo uma comunidade grega nestas paragens, definindo um toque diferente nas representações.
No texto "Pinha na pinha" já falámos sobre o significado do tirso, enquanto objecto conotado sexualmente no culto de Dionísio, ou Baco. É minha opinião amadora que os traços desta cerâmica são suficientemente diferentes dos traços gregos habituais, para podermos talvez considerar uma raiz autóctone diferente... Ou seja, haveria no território nacional uma comunidade que partilhava origens, tradição, e língua, com os gregos.

2. Espada à Cinta
O outro apontamento arqueológico diz respeito a duas estelas datadas c. 1300-1250 a.C., encontradas na Herdade da Defesa e na Herdade da Abela (Santiago do Cacém), representando espadas:
 
... que são descritas da seguinte forma: "espada com cinturão e idoliforme insculturados, insígnias de elite guerreira, proto-estatal".

Portanto, especialmente no segundo caso é bastante visível uma cinta ou cinturão. Temos uma espada e uma cinta, que refere provavelmente o uso da espada à cintura, e o que parece ser um copo ou bainha onde a espada poderia ser colocada, e cuja forma parece assemelhar o aspecto da cruz de Santiago... algo que seria coincidentemente apropriado à região de Santiago do Cacém, já que a Ordem de Santiago deteve terrenos nessa costa.


Como as estelas são classificadas como pertencentes à Idade do Bronze, seria de esperar que igualmente se refiram a espadas de bronze. 
Não me parece vulgar, nessa altura reportada ao período da Guerra de Tróia, este tipo de representação que envolvia o conjunto de espada, cinta, e talvez a bainha.
Parecem exemplares que sugerem uma espécie de brazão familiar, ou distintivo guerreiro, aludindo à posição militar  de uma elite poder ostentar uma espada à cintura. 

3. Freixo de Espada à Cinta
Este tipo de representação levou-me naturalmente a pensar na vila de Freixo de Espada à Cinta, cujo brazão era assim desenhado no Séc. XIX:
(ver: As cidades e vilas da monarchia portugueza que teem brasão de armas, Ignacio de Vilhena Barbosa, Volume 1, página 176, ano 1860) (ver também Portugal Antigo e Moderno de Augusto Soares)

Ora tem Freixo de Espada à Cinta uma curiosidade significativa - o seu castelo que remonta a construção ao reinado de D. Dinis apresenta uma curiosa torre octogonal:
Torre octogonal (à esquerda da igreja) em Freixo de Espada à Cinta.
... e ainda surpreendente é ter havido na vila uma tradição de produção de seda, o que levou à inauguração recente de um museu da seda. Sendo claro que Trás-os-Montes não fazia o papel da China, enquanto Rota da Seda... a introdução dos bichos-da-seda da amoreira em Portugal terá ocorrido especialmente desde o início do Séc. XIX, com foco especial na região de Freixo de Espada à Cinta. No entanto, como é conhecida a produção de seda em Itália, desde o Séc. XI, a tradição de produção de seda pode ter sido bastante anterior.

4. A localização das localidades
Algo que é significativo é a persistência das localidades. Exceptuando grandes catástrofes naturais ou sociais, que obrigam ao abandono e deslocalização de populações, do seu lugar de origem, as localidades são bastante estáveis no tempo, podendo facilmente remontar a vários milhares de atrás, na sua fundação. Não é propriamente habitual toda a população abandonar uma cidade de dimensão razoável, pelo que o lugar original pode ir-se mantendo, com pequenas alterações. Talvez a única grande excepção conhecida foi a que ocorreu aquando da Queda de Roma, em que grandes cidades foram completamente abandonadas, muito devido a razões económicas e especialmente religiosas.

Ora, o nome "Freixo de Espada à Cinta" está associado a lendas algo bizarras, e pode ter origem bem mais antiga... a um tempo em que o privilégio de andar de "espada à cinta", seria privilégio guerreiro, ilustrado em estelas, como as encontradas em Santiago do Cacém. Nem tenho razões mais fortes para suster esta hipótese, do que as restantes parecerem mais bizarras.


Estes foram só 2 dos vários motivos de interesse que podem ser encontrados no site "Atlas do Sudoeste Português".

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