Alvor-Silves

domingo, 27 de agosto de 2017

Âncoras (5) - Ancara, Angorá

Por vezes os novelos são tão intrincados trazem à memória coisas tão simples, como lembranças de infância, em que via a minha avó a tricotar, rendas (que não eram de altice, ou doutra chulice), e que me renderam apenas uma colcha, e sobretudo agradáveis memórias. 

A empresa Âncora já não existe, mas basicamente era a que fornecia todos os fios de tricotar, saindo da revolução industrial na cidade paroquial escocesa de Paisley (por via de George Clark), onde as instalações Anchor Mills já servem apenas como museu.
Esta memória teria relevo num blog de nostalgias, mas aqui o relevo diz respeito ao símbolo da cidade de Ancara, capital turca, que era expresso em moedas romanas antigas:
 
A representação de Ancara com o símbolo da âncora, em moedas romanas (imagens daqui, daqui e daqui).

Há assim uma ligação entre Ancara e Âncora.
Claro que poderíamos dizer que "âncora" e "ancara" são palavras muito parecidas, mas isso não seria nada mais do que simples especulação... e há bastante mais que isso!

Pausanias
Primeiro, é razoavelmente estranho associar uma âncora a uma cidade muito longe da costa, a 1000 metros de altitude face ao actual nível do mar. No entanto, há um registo lendário sobre o nome que justifica a âncora. É o geógrafo Pausanias que o refere, quando menciona a invasão gaulesa:
Este povo ocupou a terra na parte mais distante do rio Sangarius, capturando Ancyra, uma cidade dos Frígios, que Midas, filho de Górdio, tinha fundado em tempos antigos. E a âncora que Midas encontrou, até ao meu tempo [Séc. II], estava ainda no santuário de Zeus, bem como uma fonte, chamada Fonte de Midas, cuja água, dizem, Midas misturou com vinho para capturar Sileno.
Pausanias: Description of Greece (Tradução de W. H. S. Jones & H. A. Ormerod). Londres, 1918. 

Na tradução inglesa usa-se "Ancyra", outra escrita de Ancara, pois é usada a transliteração do upsilon em ípsilon, senão ficaria Ancura - quase idêntico à pronúncia de Âncora. Os tradutores colocam até uma nota de rodapé, afirmando "A legend invented to explain the name Ancyra, which means anchor". Por outro lado, a palavra grega tem um gama e deveria ler-se "agcura", que foneticamente continua quase igual a "âncora", e daí pode surgido a variante Angorá, adjectivo gentílico usado para dessa região turca. Em particular, gatos e cabras felpudas, angorás, cuja lã era apreciada em tempos vitorianos - levando à sua exportação para a Austrália, por exemplo. Poderia haver assim uma sugestão de ligação da marca Âncora à lã angorá, através do símbolo da âncora da cidade turca.

Âncora em altitude
Se Midas (ou quem quer que fosse) encontrou uma âncora em Ancara, o problema seria de saber como teria ido ali parar... ou seja, se fazia parte de uma construção para uma embarcação - e nesse caso não seria nada de muito estranho, que merecesse referência especial... ou se essa âncora fazia parte de um navio ali encalhado - bom, e nesse caso, a hipótese seria um dilúvio mundial. Ora, isso seria já algo digno de registo, que mereceria menção para a posterioridade, e daria um sentido profundo ao nome de Ancara.
É nessa hipótese que coloco este texto na sequência de outros textos sobre âncoras suíças, porque também na questão das âncoras encontradas em Basileia, o problema era semelhante... mas com menos de metade da altitude.
Há ainda um outro ponto... é que Ancara não está muito longe do Monte Ararat, a referência bíblica para o evento diluviano. Portanto, seja por razão histórica ou lendária, os eventos conjugam-se.

Galácia
Já falámos da invasão celta que Breno levou até às portas de Roma em 390 a.C. Essa mesma expansão celta teve um outro episódio significativo, com movimentações armadas que ameaçaram os gregos em 278 a.C., sob direcção de um outro Breno, tendo os gauleses sido derrotados nas Termópilas, antes de poderem saquear os tesouros gregos de Delfos.
Diversas expansões celtas entre o Séc. VI a.C. e o Séc. III a.C.

A pesada derrota celta, com a morte/suicídio de Breno, forçou os restantes a tentarem uma incursão pela Ásia Menor, cercando Bizâncio, e acabando por se fixar na região de Ancara, depois de terem sido convidados pelo rei Nicomedes da Bitínia e derrotados pelas tropas de Antíoco, numa história conturbada.
Interessa que um grande número de celtas, ou galátas, como eram também conhecidos pelos gregos, acabou por se instalar na região de Âncara, levando à definição de uma região que em tempos romanos - e ainda hoje - se chama Galácia (e que dá origem ao nome Galatasaray, como principal clube de Âncara).
É assim interessante que no centro da região turca, em torno de Ancara, se encontrasse um grupo de gauleses, que definiram um estado e identidade próprias, durante vários séculos.
Terão aderido ao culto da deusa Cíbele e de Átis, culto que era próprio da região vizinha da Frígia, e que foi adoptado pelos gregos e também pelos romanos. Os sacerdotes eram eunucos, denominados Galos (ou Galli) nome suficientemente ambíguo, mas que remeteria para também para os gauleses emigrados, que nas partes da Lídia, eram abstinentes de carne de porco (constando essa ideia de que teriam sido javalis e porcos, enviados por Zeus, a alimentarem-se dos restos humanos de Átis).

Bom, mas tirando os diversos detalhes, mais ou menos soltos, não deixa de ser curiosa esta ligação antiga entre a Gália e a Galácia... ao ponto de que as invasões turcas nunca parecem ter incomodado os franceses. De facto, entre França e Turquia basicamente houve sempre um "clima de paz", até à Primeira Guerra Mundial, onde a Turquia se teve que redefinir, para evitar a completa partilha do território pelos vencedores... mas já não com a capital em Istambul, mas sim em Ancara.
Assim, quando enquadramos a acção e documentação turca quinhentista, nomeadamente na cartografia, convirá não esquecer que pelo lado da Turquia aparecia também a França.


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