Alvor-Silves

sábado, 3 de setembro de 2016

Estado da arte (7) - a gestão da sugestão

No ano passado publiquei 6 textos sobre o "Estado da arte": (1), (2), (3), (4), (5), (6); em que o sentido da expressão era duplo ou triplo... já que "estado da arte" é uma expressão genérica que significa o estado de um conhecimento, de uma certa arte, num dado momento, mas pode ainda referir-se ao estado em que está a arte, a arte pictórica por exemplo, ou ainda a um estado que é dominado pelo conhecimento artístico... como se fosse a arte a mandar no estado das coisas. 

Há um site muito bom, que reúne muita informação e imagens sobre arte rupestre:
Don's Maps (de Don Hitchcock)

No texto de Don Hitchcock dedicado à gruta de Combarelles, vêem-se imagens de grande qualidade, por exemplo, o grande realismo na cabeça de um cavalo:
 Heinrich Wendel (© The Wendel Collection, Neanderthal Museum)
 ... que está inserida num conjunto, que evidencia uma característica típica - sobreposição de imagens:
Desenho das inscrições feito em 1902 por Capitan e Breuil, onde se vê a cabeça do cavalo fotografada em cima.

Há aqui várias coisas que ocorrem tipicamente.
Uma delas é a enigmática sobreposição de desenhos, cujo propósito ou significado não parece fácil de decifrar. Ao visitar o museu de Foz Côa, o arqueólogo explicava que uma das placas que tinha acabado com as dúvidas acerca da datação das inscrições tinha sido uma placa enterrada cujo solo que a cobria fôra datado (por Carbono 14) como tendo 18 mil anos. Assim, a placa em causa não estava exposta há 18 mil anos, e as inscrições seriam obrigatoriamente mais antigas, e além disso dizia que as sobreposições de desenhos não tinham sido de várias épocas... o desenho tinha propositadamente as sobreposições!
Outra coisa que ocorre frequentemente é não identificarmos os desenhos... ou seja, pelo menos alguns deles, só os conseguimos ver depois de consultar a cábula auxiliar (ou nem isso). No desenho de 1902 aparece outra cabeça de cavalo, que não consigo ver na fotografia acima, ainda que pareça ter havido uma degradação da rocha.

Assim, poderá bem ocorrer que algumas das interpretações feitas pelos arqueólogos resultem de um fenómeno conhecido como pareidolia ou apofenia.
Ora, acresce que uma coisa conhecida é que os artistas rupestres usavam as saliências ou buracos na rocha como auxiliares para os seus desenhos.

Pois bem, para explicar melhor o ponto deste texto, vou buscar uma imagem de um silex que está na página de Don Hitchcock sobre o Abrigo de La Madeleine:
Sílex cortante, no abrigo de La Madeleine (França)
Depois de olhar para vários desenhos constantes em arte rupestre, os olhos ficam treinados para tentar decifrar imagens de bicharocos nas rochas, existam ou não... porque à partida não sabemos.
É claro que num sílex ninguém está à espera de ver nenhuma inscrição rupestre, mas olhando para este sílex pareceu-me que seria igualmente possível ver ali animais, ou mais precisamente, a partir das saliências do sílex fazer aparecer animais... que lá não estavam:
Animais que "aparecem" - uma sugestão de desenho, criada pelas saliências da pedra.
Ora, o ponto que aqui pretendo levantar é simples.
Seria esta a fonte de inspiração dos pintores rupestres?
Ou seja, vendo algumas linhas que lhes poderiam sugerir contornos de animais, seguiam essa via, e limitavam-se a adicionar alguns traços que permitissem completar o desenho?
Devo dizer que o resultado final surpreende, porque não teria sido capaz de fazer os mesmos desenhos se não tivesse usado as inspiradoras linhas já existentes no sílex.
Usei a imagem do sílex, porque se tivesse pegado numa imagem de uma rocha, colocar-se-ia a hipótese de ter havido ali um verdadeiro desenho, e neste caso isso parece-me fora de hipótese.

O que adianta esta suposição? 
Ainda que não se aplique certamente a todos os desenhos, no caso em que há sobreposição de imagens, isso poderia resultar de o pintor ver vários bichos aparecerem de diversos contornos que se sobrepunham. 
Considerando importante dar relevo a todos eles, para que aparecessem no campo, tal como apareciam na rocha, não via desvantagem nem confusão na sobreposição de imagens - muito pelo contrário, isso antevia uma abundância para a caça. O valor da superstição poderia ser diferente se fosse apenas um desenho resultante da sua imaginação (esses seriam arbitrários em número), ou se resultasse de identificar nas cavernas alguns escassos contornos que sugeriam o aparecimento de caça.

Esta hipótese de superstição daria ainda motivo para que não se desenhassem figuras humanas (algo que é raro, ou praticamente inexistente, na arte rupestre europeia). Porque, ao fazer aparecer pessoas, ainda que os contornos o sugerissem, isso significaria fazer aparecer desconhecidos, que poderiam ser competidores inimigos. 

Voltando à imagem do cavalo, podemos notar que há traços mais demarcados do que outros, que podem ter sido os traços originais, que serviram de inspiração à figura que se seguiu. Por outro lado, parece nunca ter havido uma tendência de alisar, de retirar confusão da rocha, para que uma imagem pretendida ficasse mais clara e liberta da confusão de riscos. Esta hipótese poderia ser melhor verificada, analisando se as pinturas seguem nalgumas linhas contornos pré-existentes (algo que está fora do meu alcance pessoal). 

Em paisagens graníticas, com grandes blocos de rocha, como é o caso da Beira Interior, há ainda formações naturais que sugerem diversas formas, e poderá ter ocorrido terem sido feitas pequenas alterações de escultura nas pedras para evidenciá-las. As melhores talvez tivessem sido depois destruídas, já que especialmente durante o período cristão, seriam associadas a idolatria de deuses pagãos, algo bastante reprimido pela Roma papal, que sucedeu à Roma pagã.

Em todo o caso, seja a situação de aproveitamento dos contornos das rochas muito ou pouco acidental, como técnica de pintura ou escultura seria mais fácil produzir excelentes desenhos vendo a imagem do animal em traços pré-existentes, do que procurar fazer o desenho de raiz, sem outro auxílio. Talvez essa simples descoberta tenha feito a diferença entre a qualidade dos desenhos que vemos na Europa, e outros desenhos bem mais toscos que apareceram noutras paragens.

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