Alvor-Silves

segunda-feira, 25 de julho de 2016

dos Comentários (22) cobre e cobra

(continuação)
Na sequência do texto anterior, há múltiplos aspectos por onde se pode seguir, e sob pena de não cobrindo todos, não cobrir nenhum, deixo algumas ligações, umas com mais interesse e relevância que outras.

Cocatrice e Serpe
A Coca aparece ainda ligada a uma figura heráldica, semelhante a um Basilisco (de que já falámos), chamada Cocatrice, que tem uma cabeça de galo, e aqui convém lembrar as palavras Cock (inglês) e Coq (francês), bem como a designação popular "Cocó", para um galo pequeno. Aliás, de certa forma a onomatopeia "cocóró" reflecte talvez a origem do termo.
A Cocatrice sendo um animal fantástico alado, prolonga-se com cauda de cobra, é ainda identificada a um tipo de dragão ou quimera, tendo a mesma faculdade do basilisco - um olhar petrificador.
Cocatrice
De igual forma, com aspecto muito semelhante, considera-se a Serpe, que é igualmente uma espécie de dragão alado com duas patas, e que é considerada na heráldica da vila de Serpa. O nome em inglês "wyvern" é ligado à origem latina de viper, ou seja, víbora.

Sefes
Na descrição do poema de Avieno, onde se fala de Ofiússa, são nomeados os povos Sefes e Dragani, prestados ao culto de serpentes ou dragões, que teriam expulsado os Oestrimínios.
O nome Ofiússa vem da designação grega para cobra que era ofio, e tal como ainda hoje usamos o termo serpentina para uma forma enrolada (como nas serpentinas carnavalescas), relacionar ofio com "o fio", ou seja com um fio, um filamento alongado, parece igualmente ajustar-se ao aspecto de uma cobra.

Povos ibéricos, na descrição de Avieno
Ainda a designação de Dragani ocorre-nos uma possível alteração para Bragani... ou seja, uma eventual ligação ao nome da cidade de Braga, pois a diferença entre Draga e Braga é razoavelmente pequena.
Mas talvez mais interessante será considerar uma eventual ligação dos Sefes (ou Saefes) à palavra "sefardita" usada para designar os judeus ibéricos. Isto porque já mencionámos há uns anos como o tetragrama judaico YHVH se poderia ligar à palavra JEFE, ou chefe... e há aí uma certa proximidade à designação Sefe. Acresce que o prefixo cefe pode ser remetido à chefia, à cabeça, pela palavra grega cefalo.

Ofiúco, Hermes e Pítia
Cefeu é uma das várias constelações, associada ao mito de Andrómeda e Cassiopeia, respectivamente filha e mulher desse lendário rei da Etiópia. Para além destas três constelações, outras duas são Perseu e Pégaso, o herói e o seu cavalo alado, que salvam Andrómeda, do monstro marinho Cetus, outra constelação também chamada Baleia.
Perseu usa a cabeça da Medusa para petrificar o monstro, copiando assim a ideia do poder do Basilisco, ou Cocatrice. Ao lado da constelação de Cefeu, encontra-se Dragão e depois Hércules, Serpente e Ofiúco. A constelação de Ofiúco corta a constelação de Serpente em duas partes - a cabeça e a cauda. Sendo contígua a Sagitário, tem sido apontada como candidata a 13º signo zodiacal, dada a deslocação da eclíptica.
Ofiúco esteve associada à medicina, justamente por essa ligação à serpente, lembrando que também o bastão de Asclépio, símbolo médico, é um bastão com uma serpente enrolada. Este símbolo tem sido apontado como resultante do tratamento da Dracunculiase, a infecção pelo verme-da-Guiné, um tratamento milenar, conhecido dos egípcios, em que o verme é retirado do paciente, enrolando-se num pequeno pau.
História diferente, ainda que sejam confundidas, tem o caduceu, bastão de Hermes, onde duas serpentes se enrolam em oposição uma à outra. É entendido que este bastão teria sido colocado entre duas cobras em competição, levando a que ambas se enrolassem, ficando presas ao bastão...
Nesse sentido, seria entendido como um símbolo de paz.
A associação das serpentes a Hermes é remetida por via de Apolo, no culto de Delfos, onde a Pítia (ou melhor, Pútia) celebrava a morte da cobra Pitão pelo deus-sol. Isso também estava associado a um mito de criação mais antigo, de Orfeu, relacionado com o "ovo cósmico".
Curiosamente, é na constelação de Serpente, na Nebulosa da Águia, que estão os famosos Pilares da Criação.

Ovo cósmico
Uma representação deste mito é a de uma cobra que envolve um ovo, o ovo universal. Pelo lado grego, encontra-se assinalado na tradição de Orfeu, mas o mito está espalhado em partes tão distintas, que vão da Polinésia ao Egipto, passando pela China e Índia.

Poderá ter havido várias razões para optar pela cobra como animal simbólico deste mito.
Por exemplo, é referida a característica das cobras mudarem de pele, o que simbolizaria uma eterna renovação, onde o substituir duma pele antiga por uma nova, não alterava o ser portador... permitiria aliás um rejuvenescimento.
O simbolismo do ovo como origem de toda uma estrutura seria particularmente visível nos répteis e nas aves, e dessa forma seria bem ajustado a qualquer mito de criação.

Mas há uma diferença... Entre as aves os progenitores acompanham a saída do ovo, têm que chocá-lo, não o podem abandonar os filhos ao seu destino individual.
É diferente com os répteis, o réptil nasce para o mundo isoladamente, normalmente sem reconhecer quaisquer progenitores, e esse também será o caso da maioria das cobras.
Portanto, o mito de uma divindade auto-gerada, sem conhecer antecessores, pode ser tipicamente associado à figuração do nascimento de um réptil, como uma cobra.

Por outro lado, a ideia da incubação de diversos universos, como ovos, isolados entre si até à eclosão, também se adapta bem a algumas concepções metafísicas, que não entendiam o universo como único, mas apenas como uma manifestação de várias realidades possíveis.

Há uma diferença entre encarar o passado como o progenitor de um único futuro, e admitir que o mesmo passado pode gerar diversas possibilidades para o futuro... será o mesmo que admitir que o passado coloca diversos ovos, e que somos nós que decidimos em que universo, em que ovo, vamos parar, determinando isso pelas nossas acções, pelas nossas escolhas.

Finalmente, apesar da cobra ser um tetrapode, a sua evolução singular suprimiu a manifestação das quatro patas, tornando-a praticamente numa manifestação de um grande e flexível tubo digestivo.
Este aspecto é particularmente interessante, porque o tubo digestivo é o principal aspecto comum a todos os animais.
Ao contrário das plantas, os animais desenvolveram-se em torno do tubo digestivo, que processava uma alimentação baseada na interacção com a realidade exterior.
A alimentação passou ainda do sabor ao saber (palavras com raiz similar), no sentido em que os animais definiram-se não apenas pela matéria que processavam, mas também pela informação que passou a ser a ser processada no cérebro. E o circuito de memória, que privilegia umas informações em detrimento de outras, que despreza ou ignora, é especialmente tido como analogia digestiva.

Cobra e Cobre
Convém ainda mencionar a Cobra de Cobre, Nehustan, associada a Moisés, e que fez parte do culto hebraico, tendo depois sido banida, como todos os cultos secundários, num purismo monoteísta.
As palavras cobra e cobre não serão semelhantes por mera coincidência.
O problema do Cobre foi o des-Cobre... o descobrir dos metais.
Os metais foram mortais no desequilíbrio de forças.
Até ao aparecimento do cobre, a arma mais mortífera seria provavelmente a utilização de setas envenenadas, por exemplo, com veneno de cobra. Para uma elite com acesso a protecção metálica, essas setas nunca conseguiriam perfurar a armadura, e isso causaria uma enorme diferença de vulnerabilidade, entre quem tinha acesso a metal e quem não tinha... 
Afinal cobrir-se com escudos ou armaduras de cobre, tornaria os seus detentores autênticos deuses, invulneráveis a investidas das populações mais selvagens.
A descoberta dos metais pode ter ocorrido fora do contexto dominante, face a civilizações que usariam preferencialmente matérias clássicas - madeira e pedra, e poderá ter levado a profundas mudanças estruturais na organização social em todo o mundo.
A ilha do Chipre ficou definitivamente associada pelo seu nome (Cúpros) ao "cobre", e foi também a ilha onde Vénus terá saído da sua concha, a partir das ondas formadas pelo corte genital de Urano.

Há ainda diversas outras associações, nomeadamente com a própria evocação da serpente na Bíblia, enquanto reveladora de um conhecimento proibido... mas aí não tanto por cobres, massas ou maças, mas sim pela simples maçã proibida. Em todo o caso, parece claro que a cobra foi um animal venerado e associado numa religião mais antiga, que depois caiu em desuso, quando a sociedade se mudou ao entrar na Idade do Cobre.

2 comentários:

  1. Sobre a possível existência de Dipo, uma grande cidade dos Sefes, debaixo de Évora Monte:

    https://www.vortexmag.net/dipo-a-cidade-com-2300-anos-escondida-no-alentejo/

    http://ensina.rtp.pt/artigo/a-procura-da-cidade-de-dipo-no-alentejo/

    Ab

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    1. Por vezes, surpreendo-me com o que escrevi, é algo avassalador! Já não me lembrava nada deste texto, e ao lê-lo de novo, vejo que fui colando umas em cima das outras, de forma que me surpreendeu de novo. Estava inspirado...
      Só faltou no final, dizer que à Idade da Cobra, sucedeu a Idade do Cobre.
      Pensei-o, mas não o escrevi. Teria terminado melhor!

      É ainda curioso, porque a propósito desta nossa conversa no Odemaia, a frase que li em cima, ajusta-se bem à história:

      ... o réptil nasce para o mundo isoladamente, normalmente sem reconhecer quaisquer progenitores, e esse também será o caso da maioria das cobras.
      Portanto, o mito de uma divindade auto-gerada, sem conhecer antecessores, pode ser tipicamente associado à figuração do nascimento de um réptil, como uma cobra.


      O link da RTP tem como ficha técnica o ano de 2008, pelo que se andavam à procura, já deveriam ter concluído alguma coisa...
      Que o tal "vortexmag" tenha pegado no assunto, em jeito de reciclagem, pois isso já não me surpreende, mas o que é foi acrescentado?

      Abç

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