Alvor-Silves

sábado, 14 de maio de 2016

Discurso do mééé - todo! (1)

O que mais importa do que escrevi aqui, no alvor-silves ou no odemaia, são considerações filosóficas e científicas. A verdade ou a denúncia de falsidade histórica acabou por se revelar apenas um pretexto que me levou nessa direcção. Por isso, uma boa parte dos textos, ainda que reportasse uma questão de fraude ou encobrimento histórico, continha sempre algo mais.
Esse adicional dificilmente passa, por mais explícito, simples ou claro, que esteja... excepto se houver um "clique", e esse clique não se processa por falta de vontade ou incompetência do escritor ou do leitor, simplesmente só se dá quando se tem que dar... e isso ultrapassa quem escreve ou quem lê.
Discurso do Método - edição 1637,
sem Autor identificado.
Quando me foi dado a ler o Discurso do Método de Descartes, foi no âmbito da disciplina de Filosofia, e li-o como todos os alunos, sem perceber muito bem o alcance das palavras. Não é preciso entender, para se fazer de conta que se entende, ou até para acreditar que se entende. 
Descartes argumentava a dúvida sobre tudo, mas afinal quem ia mesmo duvidar de tudo?... Naquela idade, na melhor das hipóteses, duvida-se do que a sociedade propagandeia. Assim, quando Descartes conclui que não pode duvidar de si, parece uma grande treta... porque com efeito ninguém duvidaria de si, para a questão ser colocada verdadeiramente. Normalmente ninguém levaria a cabo esse exercício de duvidar de tudo, até de si mesmo.
Ora, como tinha feito o meu percurso de educação católica, para duvidar da existência de Deus, estava bem no caminho do ateísmo científico, que era moda na altura, especialmente após o 25 de Abril. No quadro desse ateísmo científico até pareceria bem duvidar de tudo... mas a ciência não ia ao ponto de duvidar das experiências físicas, que a sustentavam - isso ficara para os inúteis filósofos.
Só que, se a dúvida era total, até a informação experimental era igualmente digna de dúvida.
A única menção a Descartes aparece escrita à mão.
Isso correspondia a uma inversão do pensamento científico. Porque nessa fase adolescente, o meu pensamento era tão viciado quanto o de qualquer cientista... e quando se raciocina ao contrário, ao jeito da educação que recebemos, acreditamos primeiro na existência dos outros e do mundo exterior, e só depois é que aparecemos nós, como pequena parte que quer ser grande.
Somos educados a ver-nos como microscópicos face ao universo (o que deveria servir para contrabalançar os grandes egos inatos, mas tem o efeito oposto). Assim, dois anos antes, tinha já registado orgulhosamente a conclusão "Penso, porque sinto", o que era uma conclusão simples, assim explicada - se o cérebro nunca recebesse informação dos sentidos, nunca poderia formar pensamentos. Esta seria a forma de argumentar cientificamente, ao estilo de Damásio... afinal, o cientista típico raciocina de fora para dentro - nem ousa colocar em dúvida o exterior, é incapaz disso.

Explicado de forma simples, a filosofia colocou o indivíduo primeiro, e admitiu que tudo o resto é sujeito a dúvida. Ao contrário a ciência coloca o exterior primeiro, e ignora ou despreza o papel de quem pensa... esse sim, será sujeito a dúvida, por defeito do seu pensamento.

Do ponto de vista lógico, a posição científica é absurda, porque a ciência não existe sem que alguém a pense. Por isso, falar do pensamento relacionado com ter cérebro, é como julgar que aprendemos as palavras por um dicionário, ou que aprendemos a falar estudando gramática... ou pior, que sem gramática não saberíamos falar!

Do ponto de vista comunicacional, é boa ideia o Autor não duvidar da existência do Leitor, e por isso até se compreende que a primeira edição do Discurso do Método apareça sem o nome do Autor... mas como a dúvida é um exercício que aprecio, e atendendo a todo o plágio que foi feito dos autores da Antiguidade, após a Guerra dos Trinta Anos, não me é difícil considerar que esta obra seja outro caso desse género.

La Fontaine e Shakespeare - King Liars
Afinal, também La Fontaine, contemporâneo de Descartes, pegou em praticamente todas as fábulas de Esopo e publicou-as em seu nome. Os franceses nunca se incomodaram com isso... pelo contrário. Mas, como é óbvio, não é caso único... também os ingleses apreciam muito Shakespeare, outro contemporâneo, mas uma parte das obras (a maioria?), que lhe são atribuídas, já tinham versões escritas antes de si.
Por exemplo, Romeu e Julieta foi praticamente traduzida da versão do italiano Luigi da Porto (que também não seria o autor original), e noutros casos, sabe-se que Shakespeare primeiro apareceu como actor da peça, em peças "anónimas", e só depois ficou como autor da peça. Assim, no Séc. XVII houve patrocínio para este tipo de falsificações, juntando num nome obras de muitos. Com base nuns tantos casos, estive para escrever um texto chamado King Liar, mas achei que nem valia a pena.

Também não interessa muito saber se foi Descartes, ou outro, que reflectiu sobre o "método"... o que é claro, é que a obra aparece sem o seu nome, na versão original. Mas, mais que isso, o "método" aparece associado a outros temas: Óptica, Astronomia e Geometria, quando pouco ou nada tinha a ver com o assunto. Pela mesma ordem de ideias, poderia ter juntado ainda jardinagem, já que a única coisa comum aos tópicos - abordarem aplicações da geometria, conhecidas desde a Antiguidade... mas entretanto perdidas, ou ocultadas, em tempos medievais.
Assim, grande parte do discurso de Descartes é uma auto-biografia de um soldado francês da Guerra dos Trinta Anos, que a certa altura se lembrou de duvidar de tudo. Ora, isso nada tem de estranho, porque essa interrogação poderia ter ocorrido em qualquer momento da história da humanidade, por quase qualquer um, desde que disposto a isso, com um mínimo de conhecimento abstracto.

Mééé - todo?
Também aqui estou a fazer um pouco de auto-biografia... e lembro que, enquanto estudava Descartes na escola, a certa altura veio o clique após ter visto uma série na RTP, o então famoso Espaço 1999.
Caiu como um raio na cabeça... estava no quarto, sozinho, e cogitei "ok, então e se nada mais houvesse?". Ora, não concluí coisíssima nenhuma que isso implicava que eu existisse - até porque não estava a pensar minimamente em Descartes, ou em duvidar de mim. O que conclui alguém que pensa verdadeiramente nisso, que duvida de tudo o resto, é muito simples - conclui que está sozinho no universo. Ora, isso nada tem de bom... é como se uma criança tivesse ficado sozinha, e para sobreviver à solidão tivesse inventado amigos imaginários. Só que o pacote vem completo, e ao mesmo tempo traz a conclusão que tudo pode ser uma ilusão, um sonho, e assim traz virtualmente a ideia de que estando sozinhos no universo nada nos ameaça verdadeiramente. Claro que depois foi fácil perceber a matéria de Descartes... mas isso não me aproximou da filosofia. Pelo contrário, achei que disso daria conta sozinho, não precisaria para isso de nenhuma ajuda exterior.
Quanto à questão de Deus, arrumei-a rapidamente, e de forma bastante diversa de Descartes. Afinal, o que quer que se manifestasse perante mim, poderia sempre ser visto como produto de uma ilusão... e se não controlava as ilusões de um sonho, tinha essas ilusões como produto próprio. Esse foi um erro que demorei décadas para entender... e só o entendi bem escrevendo aqui, há quatro anos atrás.

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