Alvor-Silves

terça-feira, 9 de julho de 2013

Com chás

Perante as informações dispersas, algo contraditórias, abundantes na irrelevância e escassas na importância, é sempre um risco especular novas hipóteses sobre as primeiras migrações humanas. Não há suficiente informação nem para rebater, nem para sustentar categoricamente nenhuma hipótese... o resto é inércia conveniente. Com chás, é mais fácil alinhar pela teoria que se foi estabelecendo, por mais interrogações que se deixem sem resposta... mas o espírito inquieto prefere o caminho das conchas - neste caso procurar uma versão consistente que responda a interrogações fundamentais.

Constava no Séc. XVI que o nome Nova Guiné era devido à oposição à outra Guiné, africana. Tal como a Guiana, todas estas terras partilhavam a proximidade equatorial em diversos continentes. 
O registo mais antigo do nome Guiana é o nome do território basco francês, na zona da Aquitânia, que esteve na origem da Guerra dos Cem Anos.
Essa Guiana occitana fazia parte dos domínios ingleses, nomeadamente de Eduardo III, fundador da Ordem da Jarreteira, que quebrando as promessas de paz com o rei francês, passou o Ducado da Guiana ao filho, o Princípe Negro, Eduardo de Woodstock! A mesma Guiana esteve em posse do irmão, Eduardo de Gant, pai de D. Filipa de Lencastre... e foi reivindicação inglesa até ao fim da Guerra dos Cem Anos.

De forma rápida, chegamos da Guiana occitana/basca ao nome da Nova Guiné, e no texto anterior procurámos ver se fazia sentido o caminho inverso, partindo de uma Velha Guiana.

Tudo isto parece arbitrário, mas há uma questão fundamental, que carece de resposta:
- Como manter no decurso de milénios uma guerra brutal entre tribos rivais numa ilha limitada?
- Não seria natural que uma das tribos ganhasse ascendente, aniquilando as restantes?
Quando a violência vai ao ponto de antropofagia cultural, o único valor dados aos outros parecia ser o de recurso alimentar... No entanto, as diversas tribos coexistiram ao ponto de criarem quase 900 línguas diferentes, o que mostra uma assumida diferença e herança ancestral.
Como manter o equilíbrio entre tribos que visavam aniquilar as outras?
Ao fim de tantos milénios, o que evitou que uma das tribos crescesse a ponto de criar um exército de guerreiros que derrotasse as restantes?... 
Como se deu o controlo populacional na ilha?
Eram as batalhas apenas rituais destinados a esse controlo populacional? Ou seja, não visavam a destruição dos rivais, mas apenas uma "selecção" dos mais jovens?
Afinal, se a agricultura deu ali os primeiros passos, e se havia uma técnica apurada no manejo de arco e flecha, acrescido do uso de venenos naturais, onde foi estabelecido o limite do génio inovador, para estabelecerem novas defesas e armamento? 
A imaginação ficou nos rituais algo estranhos e exóticos? 
Quem orientou essa educação guerreira ineficaz para batalha?
Quem aconselharia uma política não expansionista, deixando a tribo sob ameaça constante de se ver aniquilada (ou comida...) pelas tribos rivais?

Portanto, há aqui uma quantidade apreciável de perguntas que estão sem resposta.
À falta de melhor, a única resposta que encontro é a de uma coordenação global dos xamãs locais.
Os xamãs, conselheiros típicos da favorabilidade da batalha, da educação condicionada por rituais, exerceriam um papel fulcral na formação daquelas sociedades. A eventual fragilidade de cada um seria irrelevante perante o papel coordenado dos restantes. Ou seja, se um fosse banido, essa tribo arriscaria o ataque coordenado das outras tribos, ordenado pelos outros xamãs... 

Esta evolução para uma coordenação entre xamãs seria um processo natural de reflexão social. 
Afinal, quando uma tribo dominasse por completo a ilha, o que se seguiria? 
Uma regência única? Não havendo inimigos na ilha, entrar-se-ia numa competição interna... mas onde apareceriam esses focos de dissensão, seriam controlados pelos xamãs, ou organizariam-se contra eles?
Como se controlaria uma explosão populacional? 
Rapa Nui (pintura de Hodges, 1775) e o problema dos Coelhos da Páscoa...

Um aumento descontrolado da população esgotaria os espaços e os recursos, entrando-se num conflito e colapso social, semelhante ao que se supõe ter ocorrido na Ilha da Páscoa.
As ilhas polinésias apresentavam esta dualidade... por um lado ambientes paradisíacos, mas quando a liberdade permitia o descontrolo populacional, a reprodução dos coelhinhos era um modelo inevitável para prever o que se seguiria - um esgotar de recursos, conflitos crescentes caóticos levando ao colapso social.
Por isso, a nova "Paz-côa", a "paz filtrada", trazia um ovo diferente do de Colombo[*], trazia um acordo de paz que visaria um controlo populacional... o "crescei e multiplicai-vos" tinha o limite Malthusiano, o limite da estrutura para os recursos disponíveis. 
[*] Sobre a tradição dos ovos da Páscoa, 

Não é preciso ler Robinson Crusoe, para ver que os paraísos tropicais traziam vários problemas, onde foram aplicadas diversas soluções ao longo de gerações... normalmente condicionando a mentalidade pela educação, pelos rituais, pela cultura, pelas histórias. Não se trataria apenas de um problema de sobrevivência, seguir-se-ia um problema de vivência... ou seja, que objectivos de vida manteriam um funcionamento regular da sociedade?  Sob esse aspecto, a manutenção dos inimigos tribais, como na Nova Guiné, reteria um foco de atenção para a vivência... parece ter sido essa a solução encontrada, durante inúmeras gerações.
No Taiti, ilha cuja descoberta deve remontar a Pedro Fernandes Queirós[**], ocorreu a famosa história da revolta da Bounty. Alguns marinheiros amotinaram-se, querendo viver em tal paraíso, ofereceram armas para o desequilíbrio de forças, em favor de um rei, Pomare I, que assegurou o controlo total da ilha entre 1788 e 1791. O capitão Bligh retornou, e perante a ameaça externa o rei entregou os amotinados que lhe tinham fornecido o poder. O Taiti entraria em contacto com os ocidentais como reino unificado, mas em 1842 os franceses usariam as famílias dos rivais depostos para impor um protectorado francês contra a rainha Pomare IV, e ainda hoje o Taiti faz parte da França (... o país modelo da liberdade dos povos, que nunca abdicou das suas colónias, sem deixar de acusar os outros de colonialismo).
Sim, é verdade que falta a folha com as páginas 110 e 111, mas o 
borrão consegue fazer ler o nome de Pedro Fernandes Queirós
(... foi pior a emenda que o soneto!)

Ainda sobre o Taiti, o mesmo livro "O Viajante Universal" refere a particularidade de na viagem de Wallis ter sido reportado haver habitantes "ruivos", e Bougainville, chegando no ano seguinte, refere o uso de conchas como castanholas, e de pérolas como o único meio de moeda de troca. 
O Taiti afinal tanto tempo incógnito é abordado por Wallis, Bougainville e Cook em 1767, 1768 e 1769.
Os espanhóis cruzariam o Pacífico durante 250 anos, e afinal parecia difícil era não passar pelo Taiti.
A viagem de Cook tem um propósito científico - o trânsito de Vénus em Junho de 1769.
O mítico nascimento de Vénus, como pérola saída de uma concha
... parece "maluquice" uma mulher sair de uma concha, mas isso depende do tamanho da concha:
Segundo o National Geographic as conchas da 
zona do Recife Australiano podem atingir... 1m 20cm.
Com essa dimensão, poderiam bem albergar uma criança!

Portanto, afinal a ideia de uma criança poder sair de uma concha, faz sentido na zona das Ilhas Malucas, nos Mares Austrais... e as pérolas, as pérolas saem de "Ostras", ou será preciso "ostracizar" para dizer que saem de "Austras"?
Quanto às pérolas taitianas podem ser "pérolas negras", e como dissémos, serviam de moeda. 
Desde os primeiros registos civilizacionais que foi dada grande importância às pérolas, antes mesmo de pedras preciosas, porque saíam naturalmente brilhantes da "ostra". 
Sumérios, chineses, egípcios, japoneses, gregos, romanos, etc... todos tinham os seus pescadores de pérolas... os hindus afirmariam que teria sido Krishna a criar a primeira. Diferentes culturas, algumas que pouco teriam de marítimas, teriam os seus mergulhadores especializados em suster respiração e encontrar pérolas nas ostras. A maior pérola é disforme e ostenta o nome de Lao Tzé. Cleópatra dissolveu uma pérola para mostrar a Marco António que poderia ter uma refeição mais cara que o orçamento de uma cidade, e outras pérolas como "La Peregrina" têm histórias de 500 anos.

Se há local que tipicamente se prestava a uma população marítima vocacionada para apanhar as primeiras pérolas terá sido a Oceania. Bom, e agora vamos regressar ao mapa do logotipo:
O que tem de especial, de novo, este mapa?
Não é o que tem... é o que falta.
O último registo marcado a Oriente... é a Nova Guiné!
Os mapas começam a ser modificados, e são sucessivamente inventados contornos alternativos...
A Nova Guiné vai ficar incompleta, a Austrália não vai aparecer, o mundo fica suspenso até Cook.
Timidamente serão marcadas as Ilhas Salomão (o nome parece simbólico), ao lado da Nova Guiné, e os holandeses vão arriscar entrar pela Austrália até ao limite definido pelo meridiano português de Tordesilhas (convém reparar que os holandeses se especializaram mais no hemisfério português).

A pérola com o nome "La Peregrina" leva-nos à continuação!
Qual era a rota de peregrinação típica durante quase toda a Idade Média?
Havia a cruzada a Jerusalém, a via Francigena, que levava a Roma... mas curiosamente a peregrinação mais importante, era a de Santiago de Compostela:
Caminhos europeus de Santiago de Compostela
"Estrada de Santiago"... a Via Láctea 
A vieira indicando o Caminho de Santiago.

O que fazia tantos peregrinos europeus seguirem a rota do Apóstolo Santo Iago?
É claro que havia todo o factor religioso, mas nem sequer podemos considerar que se tratasse de uma figura crucial no cristianismo, e mesmo a lenda envolvendo a sua presença na Galiza seria muito controversa.
Acresce que a Estrada de Santiago nem acabaria ali... muitos seguiam o caminho até Finisterra!
Finisterra, onde seria o ponto mais ocidental (por erro, já que era o Cabo Magno), e constando que as rotas eram mais ancestrais, remetem-nos para uma tradição celta, associada a quê?
- À Vieira... que se diz também "venera", ou seja, a uma Vénus, saída da concha!

É claro que a vieira foi tida como símbolo do peregrino pela sua eventual utilidade para beber água, tal como a cabaça... mas sobre a cabaça evitarei falar. Apenas direi que se a concha tinha este lado feminino, a cabaça, um dos primeiros alvos de agricultura, poderia encerrar um aspecto masculino... que se resume no contexto da Oceania à palavra koteka, porque as coisas são como são, e o resto são preconceitos induzidos pelos xamãs da nossa cultura. É assumido que os cultos de fertilidade foram primevos.
Bom, e se as taitianas usavam conchas, a migração cigana da Índia até à Andaluzia popularizou as castanholas
... que têm origem reportada aos fenícios, afinal a civilização que se baseou num domínio marítimo, desde o Mediterrâneo até ao Atlântico. Seriam os fenícios a definir o alfabeto que dominaria o mundo das línguas indo-europeias, e não só.

Compostela poderia aparecer no contexto de peregrinação marítima como uma rota que terminava num grande lago proibido à navegação, seria um "santo lago" que se ligava a "Santo Iago", tal como alguns cultos de Santo Antão estão claramente ligados às Antas. Curiosamente a outra Santiago, do Chile, foi repousar à beira de um lago ainda maior, o oceano Pacífico. Com o decorrer das descobertas, o caminho estava aberto para o lago atlântico, e a contra-reforma terminou a harmonia católica - o caminho de Santiago deixou de ser popular durante os quase cinco séculos seguintes, tendo apenas sido reavivado recentemente.

Objectivamente, o que se pode reter daqui?
Muito pouco, grande parte do texto pode ser considerado especulativo e arbitrário nas associações.
Afinal, se Vénus é Venera, daí tanto vem a palavra "venerar" como a palavra "venérea". 
Se um Puto é um pequeno anjo, associável a Cupido, para fazermos o feminino associado à mãe Vénus, devemos recorrer ao filme japonês LaPuta: Castle in the Sky, em que o nome Laputa se refere a uma cidade nos céus, na obra Gulliver de Jonathan Swift.
Os xamãs guardaram os métodos e as conchinhas, os cravos e as pimentas, e no seu percurso peregrino fizeram as naves subir aos céus, até que reencontraram o simbolismo perdido. Superada a prova, passaram a magos que bebem chá... os problemas são os mesmos, e os métodos pouco diferentes.

2 comentários:

  1. Extractos de "O Viajante Universal", Vol. XX, sobre o Taiti.
    Das cartas de Bougainville vê-se que este navegador foi quem mais se encantou com a ilha, referindo:
    Tudo ali inspira sensualidade, a beleza do clima, do terreno, das mulheres, o ar que se respira, as cantigas, as danças lascivas em extremo, e por esta razão chamamos esta ilha Nova Cythere, pois Vénus tem ali tanto império como pode ter na antiga.

    Refere-se à ilha grega Cythere, mitologicamente formada pela queda da genitália de Urano, pelo corte de Cronos, feito a pedido de Gaia. Seria das ondas geradas pela queda que se formaria Vénus/Afrodite.

    Portanto, esta ligação do Taiti a Vénus fazia-se para os marinheiros franceses conforme descreveu Camões no episódio da Ilha dos Amores... essa é uma descrição artística cuja visão idílica pareceria confirmar uma prévia e natural visita portuguesa, antes de Queirós!

    Se falámos das pérolas e das gigantescas conchas, faltaria assinalar estes registos mais lascivos. Lêem-se coisas como estas, nos registos seleccionados para a-prender as mentes dos nossos petizes:
    O mito da Ilha dos Amores, narrado por Camões, é fruto da sua imaginação, quer povoada dos lugares maravilhosos onde as suas viagens o levaram, quer influenciada pelas míticas ilhas da literatura grega ou de outras lendas árabes e indianas.
    Prodigiosa imaginação de Camões que, para juízo crítico, era bom ser comparada com a descrição de Bougainville sobre o Taiti.

    Tudo pareciam rosas, mas Bougainville mais à frente acaba por reconhecer:
    - Disse mais acima que os taitianos viviam numa felicidade digna de inveja, ao meu parecer: eu cuidava que eram iguais entre si, ou ao menos gozavam duma liberdade que não estava sujeita senão às leis estabelecidas para o bem de todos, porém enganei-me. A distinção de classe no Taiti é muito grande e a desproporção muito cruel. Os Reis e Grandes tem faculdade de vida e morte sobre os seus escravos e criados.

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    1. Ainda no mesmo registo, Bougainville descreve duas castas:
      Os taitianos compõem-se de duas castas de homens mui diferentes, que sem embargo têm a mesma língua, e costumes, e parece se misturam uns com outros. A primeira, que é a mais numerosa, produz homens da mais alta estatura, e é comum ver alguns com seis pés e mais de alto (ou seja, 2 metros), vi homens constituídos e mais bem proporcionados para pintar Hércules ou Marte, em nenhuma parte se achariam melhores modelos. Suas feições não se distinguem em coisa alguma dos Europeus, e se estivessem vestidos, e não andassem tão expostos ao sol, e ao ar, seriam tão brancos quanto nós. São geralmente pretos os seus cabelos.
      A segunda casta é de mediana estatura, tem os corpos crespos e fortes como crina, sua cor e feições se distinguem pouco dos mulatos.


      Com a posterior chegada dos europeus, e a colonização francesa, acabou por se perder esse registo. No entanto, ainda é possível ver mencionadas pessoas de mais de 6 pés, na Enciclopedia Britannica de 1911:
      http://www.1911encyclopedia.org/Tahiti
      Acresce a isto o registo anterior de Wallis que falava em pessoas com cabelo ruivo...
      Não deixa de ser curioso o nome invocado para a máxima divindade ser Eri-Te-Era, o que nos faz lembrar foneticamente o vermelho de Eritreia. Essa divindade máxima não era representada por nenhum símbolo, e estava ligada a um "rei sol", ou melhor "rei da luz". Tinham outras divindades menores a que chamavam "Eatúa", e não encontrámos referência a nenhum mito de nenhuma deusa que saísse de uma concha (... nem sempre as coisas encaixam no modelo que fazemos, e convém registá-lo sem problemas).

      A questão das classes estava ligada às guerras constantes que tinham contra ilhas rivais, levando mesmo a sacrifícios humanos.
      Cook, que visita a ilha no ano seguinte, fala numa elite sacerdotal muito influente, que ele diz "usar entre si uma língua diferente da dos restantes, como aconteceria na China".
      Neste pequeno registo somos afinal informados que a utilização de uma língua alternativa era prática não só dos sacerdotes egípcios (já o tínhamos referido), mas também dos chineses, e até de pequenas ilhas no Pacífico.

      Por isso, a questão linguística, da diferença entre línguas, passou pela construção consciente de uma alternativa, que incluíram propósitos de secretismo, conforme tínhamos vindo a assinalar.

      Há ainda outros detalhes interessantes nesse registo de viagens, mas para evitar o penoso trabalho de enumerar todos, aconselhamos a leitura, ainda que diagonal, do manuscrito original.

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