Alvor-Silves

terça-feira, 6 de março de 2012

Nuno Gonçalves (14/12/2009)


Nuno Gonçalves
Painéis de S. Vicente de Fora

O que está representado nos Painéis de S. Vicente de Fora? 
Um longo instantâneo da família Avis, na sua interpretação em 1491-92.
Tese de ALVOR SILVES
14 de Dezembro de 2009

A época



Para compreender os painéis de Nuno Gonçalves é preciso perceber o que faz sentido e o que não faz...
Comecemos pelo 3º painel, dito Painel do Infante.

  • (i) O Infante D. Henrique está representado... isto é basicamente indiscutível, dada a imagem semelhante que existe nas Crónicas dos Feitos de Guiné de Zurara. 

Dado que na imagem das Crónicas o Infante tem um aspecto ligeiramente mais jovem, é de admitir que no mínimo, este quadro seja posterior ao das Crónicas, posterior a 1453. Isso exclui teses mais estranhas, que colocam esta pintura nos anos de 1440-50. É de notar que se o nome de Nuno Gonçalves aparece como pintor da corte em 1463, será difícil conceber que o tenha feito antes. E se não foi Nuno Gonçalves, então será preciso justificar outro autor...

Por outro lado, o quadro deverá ser anterior a 1492, pois Nuno Gonçalves terá desaparecido nessa altura. Surge uma hipótese habitual e que faz sentido ~ entre 1470-80 ~ mas então é preciso admitir que o Infante D. Henrique já está morto. Haverá maneira de ver isso?

  • (ii)  O Infante D. Henrique, tal como outros personagens no quadro, têm as mãos unidas. Típico sinal de falecimento, não será?
  • (iii) Assim, será ainda possível associar o Infante D. Pedro à figura (muito semelhante ao seu retrato mais jovem) que surge em primeiro plano no 5º painel, dito dos Cavaleiros.
Mas agora, reparemos noutro detalhe importante:

  • (iv) À excepção de um, no 5º painel (do qual não se vêem as mãos), todos os personagens sem as mãos unidas têm a barba cortada... nota-se aliás que há quem a use e a tenha mal feita.

Há algum facto de tal forma marcante, em que todas as pessoas do reino tenham feito a barba? 
Sim, ocorreu em 1491... foi a morte do herdeiro - o príncipe Afonso, filho de D. João II.

Estamos no limite atribuível a Nuno Gonçalves... talvez exactamente por razão deste quadro!

Este quadro terá sido encomendado por D. João II, para promover a sucessão de Dom Jorge, seu filho "bastardo", e ao mesmo tempo prestar homenagem ao filho morto... que não aparece no quadro.
Como a sucessão se deu pela linha oposta, ou seja, por D. Manuel, é natural que o quadro tenha sido escondido durante séculos!
Nada é acidental... nem a consequente morte de D. João II, escolhida para Alvor, nem o repouso em Silves, antes de seguir para o Mosteiro da Batalha. 
O clima fúnebre e sinistro do quadro, mantém-se hoje... 



Tese de Alvor Silves

Este quadro será um instantâneo único, de todo um processo que levou à morte de D. João II em Alvor, fora da corte, quase isolado. Esse desfecho até já se antevê no magnífico quadro!

Painel real (o terceiro)

Fará tudo o resto sentido, com base nesta hipótese?

  • (v) O rei ajoelhado no 3º painel é D. João II, aos 36 anos. A criança é D. Jorge, com 10 anos. Não está ao lado da Rainha, está na sucessão do pai, na linha do "navegador" D. Henrique.
  • (vi) Quem são as duas figuras femininas poderosas, que aparecem nesse 3º painel?
    A mais velha e também a mais poderosa, será Dona Beatriz de Viseu (com 61 anos), mãe da Rainha D. Leonor (com 33 anos), que se encontra ajoelhada, do outro lado do Rei. Ambas as figuras fazem jus a outros retratos contemporâneos. Haverá outras duas figuras femininas, mais marcantes, à época dos descobrimentos?
Todos estes protagonistas estão vivos, e sem dizer nada, dizem-nos muito!
Nuno Gonçalves capta a alma de forma muito sublime.
Nesse 3º painel, dito do Infante, falta apenas falar de uma figura que tem algum destaque, mas que está na sombra dos acontecimentos... com as mãos unidas, está morto. Poderia estar no 2º painel, mas não será acidental o espaço que surge entre o personagem que se ajoelha por terra, em sinal de penitência, e a personagem seguinte... trata-se de Dom Afonso, 1º Duque de Bragança. Aparece ao lado do meio-irmão, Henrique, em aparente oposição, e mais acima! 
O Infante Dom Pedro não poderia estar neste painel. Surge inequivocamente no plano do seu neto, o Rei D. João II, mas noutro painel, no 5º painel. 
A Batalha de Alfarrobeira nunca desaparecerá do futuro português.

Outros painéis

A partir daqui, não será tão fácil, mas é ainda assim possível encontrar uma linha de raciocínio consistente.
  • (vii) No 1º painel (dito dos frades), estão por ordem de sucessão os reis de Avis, anteriores a Dom João II. Ou seja, primeiro D. João I (mãos juntas, morto), depois D. Duarte (dá indicação das mãos juntas, morto), depois D. Afonso V (mãos juntas, morto). As figuras dos três estão dentro das descrições ou outras imagens que temos deles. Este será o Painel dos Reis... ou da Ordem de Avis, já que é natural que a sua representação invoque a sucessão de Avis pelo lado religioso. Dessa forma se justifica o aparecimento em bastidores de outros protagonistas de menor relevo, ligado ao seu papel enquanto mestres da ordem.
  • (viii) No 2º painel (dito dos pescadores), está a descendência pelo lado de Nun'Álvares Pereira. Será ele o protagonista, em penitência, com as mãos juntas (morreu bastante velho). Há um espaço em branco, de onde terá saído o sucessor genro, o Duque de Bragança, que passou para o 3º painel, por razões já explicadas (parcialmente). Por isso, a seguir aparece uma figura dúbia, representando uma neta. Poderá ser uma representação dupla, invocando a mãe de Dona Beatriz de Viseu, pois assim aparece ao lado da filha (no painel seguinte). Mas também, invocando a irmã, mãe da Rainha Isabel de Castela, a Católica. Parecerá um pescador?
  • (ix) É natural que essa importante figura do 2º painel se pareça com um pescador. Tem a rede, onde foi colocado o corpo do príncipe morto, e daí ter surgido o símbolo do camaroeiro da Rainha D. Leonor. A rede é uma rede política, muito complexa, que herdámos. D. João II olha de frente, nessa direcção da sogra, herdeira das irmãs Bragança, pela sua cumplicidade com a sobrinha, Rainha de Espanha. Procurará apontar aí as culpas desse destino do filho? É muito provável. Não tenho ainda dados suficientes consistentes, para alvitrar o personagem que se encontra ao seu lado... Com a herança deixada por este painel, torna-se clara a posição de grande penitência em que se encontra Nun'Álvares.
  • (x) No 4º painel (dito do Arcebispo), em primeiro plano surge uma corda. Representa, como habitual as navegações. Por razões, que mais tarde explicarei, deverá representar Gama, o escolhido pelo Santo, através de D. João II, para anunciar a Índia. Do outro lado, deverá ser Diogo Cão, que será preterido na escolha. Neste é momento, apenas posso conjecturar que colocado em posição semelhante à da mãe, surja D. Diogo, o duque de Viseu, com as mãos juntas, morto pelo rei. Para os outros dois há, entre os navegadores, demasiadas hipóteses. Em cima, aparece um Cardeal ou Arcebispo, morto, poderá ser D. Pedro de Noronha (mas não é de excluir a hipótese de ser Jorge da Costa, morto para D. João II, exilado em Roma). Os bispos podem ser os próximos de D. João II, o de Coimbra, de Tanger e do Algarve, e depois o prior do Crato.
  • (xi) No 5º painel (dito dos Cavaleiros), aparece em destaque o Infante Dom Pedro, o avô materno que foi grande inspirador de D. João II, morto pelo seu pai em Alfarrobeira. Depois deveria aparecer outro infante, o Infante Dom João, mas devendo estar morto, talvez as luvas verdes permitam uma excepção simbólica... permitindo ainda incluir o Infante posterior, o pai da Rainha Dona Leonor, Dom Fernando de Viseu, também morto, e no seguimento desta sucessão aparece o filho D. Manuel, irmão da Rainha e pretendente à sucessão. Por outro lado, seguindo a linha dos primeiros Infantes, mais acima confirma-se dever ser o Infante Santo, morto, e as suas mãos nem são vistas, indicando talvez que não teve o repouso de morte digna. 
  • (xii) No 6º painel (dito da Relíquia), devem estar representados em destaque os dois sábios em que mais confiava D. João II. O físico-mor Mestre Rodrigo (de Lucena) e o matemático Mestre Josepe (José Vizinho, de origem judaica). O mais velho, parece ser alguém representando o conhecimento popular, que não frequenta a corte, e por isso está curvo, tal como dois navegadores no 4º painel. A relíquia, o osso craniano, pode ser uma alusão ao defunto Afonso, indicando a fractura da futura cabeça do reino. Falta a relíquia - o cérebro, para ler tudo o que o painel representa. Falta ainda o cérebro para prosseguir a herança do conhecimento de Avis - é essa a relíquia que o Mestre Rodrigo nos mostra.

A representação dos diversos estratos sociais não é errada. Foram todos habilmente vestidos para que os painéis permitam ainda essa interpretação imediata. O 1º, 3º e 5º painéis representam protagonistas de realeza, contendo figuras de infantes e reis, são os painéis ímpares. Os outros, painéis pares, representam de alguma forma personagens igualmente fulcrais, mas que não tinham ascendência directa na realeza.

O impacto deste retrato de família, promovendo como herdeiro Dom Jorge, para além dos outros detalhes referidos, deve ter sido devastador na facção já dominante na corte, que pretendia ver apenas como solução de sucessão Dom Manuel. Essa sucessão foi mesmo inserida como condição no Tratado de Tordesilhas. Não admira o desaparecimento do pintor, depois do quadro, e finalmente o envenenamento do Rei (bem enfatizado por Garcia de Resende, dadas as circunstâncias...) que ainda assim demorou mais tempo a morrer.



Detalhes



A dualidade Poente-Nascente

Nuno Gonçalves, é um ímpar entre ímpares... e este quadro poderá ter influenciado a "última ceia" de Leonardo da Vinci, que aparecerá poucos anos depois. Estranho?

Os painéis exploram uma dualidade esquerda-direita, i.e. poente-nascente, ou ainda ocidente-oriente!
O mesmo santo, S. Vicente, apareceria ora virado para ocidente, ora virado para oriente!
Mesmo se S. Vicente estiver de fora... será irrelevante, pois o nome tanto poderá resultar de terem ocultado os painéis, como pode ser o nome original, e querer indicar que há dois santos.
Havendo dois santos é natural que possam representar uma dualidade entre São Tiago e São Tomé, ou ainda entre São Jorge e São Bartolomeu... aqui há demasiadas hipóteses!

De facto, não é acidentalmente que há personagens virados para ocidente e outros virados para oriente. E isto não tem a ver com aspectos que promovam a centralidade do quadro... o Infante Santo é o mais claro, e a sua direcção oriental desfavorece essa centralidade:
  • Ocidente - é o lado de D. João II, e do Infante Dom Pedro, e por agora ficamos por aqui...
  • Oriente - é o lado dos que se lhe opuseram, é o lado da gloriosa cruzada contra os infiéis a Oriente, é o lado da guerra na Índia. Será o lado de S. Bartolomeu... ou será coincidência que o nome de quem "dobra" o cabo da Boa Esperança é o - até então - anónimo Bartolomeu Dias... ou será melhor escrever mesmo:
    DIA S   BARTOLOMEU

    e será preciso dizer que o DIA S. BARTOLOMEU se torna um dia repetidamente importante?  Será preciso dizer que S. Bartolomeu é suposto ter pregado o cristianismo na Índia? Será preciso dizer que a tomada de Arzila, crucial para os preparativos da Cruzada, se deu no Dia de S. Bartolomeu? Já não falo do Massacre de S. Bartolomeu, em França... porque isso faz parte de capítulos seguintes. Claro que deve ter havido alguém encontrado, que foi assim rebaptizado, mas isso não foi feito com o devido profissionalismo, e deixou estas dúvidas.

Os painéis exploram assim a ideia de reflexão num espelho, e essa reflexão faz parte da Relíquia do conhecimento nesta obra... mas há um desequilíbrio propositado, tal como na "Última Ceia" de Leonardo de Vinci. Há uma força que se vira para Oriente que é maior do que a força virada a Ocidente. Dada a importância de Portugal à época, enquanto grande potência, convém notar que o problema português está colocado num tabuleiro muito maior. 
Na "Última Ceia", Da Vinci coloca obviamente um só Cristo, que se vira a Oriente, e coloca mais vida numa representação de Andrea del Castagno (... época da morte do Infante Dom Pedro). Em Da Vinci, a centralidade da coluna, atrás no horizonte, é deslocada e Cristo, ao centro, vira-se para o lado que irá dominar, o lado Oriental-Nascente. - É o lado da Cruzada, dos sacrifícios de guerra por Cristo, é o lado da Ordem de Cristo, e tem 8 elementos (inclusivé Cristo). Virado a Poente está João, o lado Evangelista, ao lado de Cristo, mas caído (1495: data atribuída ao início do quadro, morte de João II). Há apenas 5 elementos virados a ocidente, que ou protestam/ou se resignam a mais esta decisão de Cristo. Podem parecer forçadas as comparações, para um posicionamento de reinos e não de figuras nacionais, e por isso não adiantarei mais... já que não me parecem acidentais todas as relações que aparecem na tese do "Código da Vinci", similares nas conexões, mas diferentes no moto e na essência!

Leonor

Acerca de Camões, faltará dizer muito, e não é para já... mas não posso deixar de incluir aqui a descrição que ele faz de Leonor - se o leitor quiser fazer o esforço de se libertar de condicionantes culturais.... deveremos ver Leonor como uma camponesa dos "amores mundanos" de Camões?




À esquerda, a loura e alva Princesa Perfeitíssima, Leonor
Em baixo, o poema de Luís Vaz de Camões

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Descalça vai para a fonte
Leonor pela verdura
Vai fermosa e não segura
Leva na cabeça o pote
O testo nas mãos de prata
Cinta de fina escarlata
Sainho de chamelote
Traz a vasquinha de cote
Mais branca que a neve pura
Vai fermosa e não segura
Descobre a touca a garganta
Cabelos de ouro entrançado
Fita de cor de encarnado
Tão linda que o mundo espanta
Chove nela graça tanta
Que dá graça à fermosura
Vai fermosa e não segura

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Talvez me esteja a antecipar, Camões não será assim tão óbvio! 
Onde está a fonte? Quem está descalça? Onde está a verdura?.... 

Optar por entender que é Leonor que vai descalça para a fonte... é opção do leitor/comentador.
Retirei as pontuações, pois não tenho acesso ao original. Alguém terá? Fica a cargo do leitor decidir.

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