Alvor-Silves

quarta-feira, 28 de março de 2012

Gás na Passarola


Já aqui escrevi sobre Passarolas e Balões, no entanto na altura não tinha conhecimento do texto de Pinheiro (Fr. Lucas de S. Joaquim) que vim a descobrir online no Arquivo da Torre do Tombo.
Este texto está incluso no final de uma compilação de cartas e obras de Alexandre de Gusmão até 1752, pelo que se conclui que Pinheiro, o autor desta transcrição viveu posteriormente, e pela descrição na sua Nota final, dá a entender que o texto foi escrito numa altura em que o Torreão da Casa da Índia estaria por concluir, após a reconstrução derivada do Terramoto de 1755. A frase final, assinalando a perda desta glória para Portugal, sugere que talvez as experiências dos Montgolfier já fossem conhecidas, remetendo esta transcrição para final do Séc. XVIII.

O que interessa é que a leitura deste texto coloca praticamente um ponto final sobre o assunto. É claro que não fui eu o único a ler o texto, que até se encontra online, pelo que se trata obviamente de mais um segredo de Polichinelo, silenciado pelos numerosos arlequins que embelezam esta tragicomédia popular.

Transcrevo as páginas manuscritas 202 a 204 que podem ser consultadas directamente no link da Torre do Tombo. Fica claro que houve de facto uma farsa, mas não no desenho remetido ao 2º Marquês de Abrantes, nem que se tratava de uma outra embarcação com ascenção por ar quente, conforme tinha lido e escrito no texto anterior... ou seja, em breves palavras:
  • Bartolomeu Lourenço terá criado o primeiro dirigível, que se elevava por auxílio de um gás leve, provavelmente hidrogénio. Isso tornava grande parte do restante aparato como uma grande ilusão, onde entrava o fascínio à época pelo magnetismo (pedras de cevar). Uma grande quantidade de gás poderia de facto permitir a ascenção independentemente da forma pouco convencional do aparelho.
  • Pinheiro sugere que o gás poderia estar colocado nas esferas e no velame, mas talvez seja mais natural considerar ainda que o corpo da barca também seria um depósito de gás. A isso acresce a descrição de que o corpo da barca era forrado a chapas de ferro e palha de centeio, talvez com algum propósito de calafetar o conteúdo. As duas esferas poderiam estar ligadas a dois depósitos internos, regulando a inclinação da barca pela libertação de gás, e finalmente permitiriam a descida do aparelho.
  • Isto não exclui que o próprio Bartolomeu não tivesse feito demonstrações com balões de ar quente, usando o princípio das Lanternas de Kongming (balões de S. João...). Porém a verdadeira novidade seria mesmo a utilização de um gás mais leve, o que evitaria a necessidade de alimentar uma combustão e daria a necessária autonomia.
  • É notável que na carta a D. João V, Alexandre de Gusmão refira o particular interesse de explorar as regiões mais vizinhas dos Pólos, dando a entender por isso que seriam apenas aquelas onde não seria possível a navegação... assumindo implicitamente que as naus portuguesas já teriam explorado as regiões navegáveis. Nada disto será de estranhar se lermos o que dizia Pedro Nunes, já 200 anos antes... e complementa-se pelo pouco relevo dado à descoberta das costas marítimas da Antártida (que nem tem descobridor atribuído...).
Após este gás no reinado de D. João V, que potenciaria uma nova ascenção portuguesa, percebemos que seria necessário um abalo de fortes consequências para que os sonhos caíssem por terra.

Segue a transcrição que fiz do texto manuscrito:
_________________________

Petição do Padre Bartholomeu Lourenço
sobre o instrumento que inventou para andar pelo ar e suas utilidades.

Diz o licenciado Bartholomeu que ele tem descoberto um instrumento para andar pelo ar da mesma sorte que pela terra, e pelo mar, com muita mais brevidade, fazendo muitas vezes duzentas e mais léguas de caminho por dia, nos quais instrumentos se poderão levar os avisos de mais importância aos exércitos e terras mais remotas, quasi no mesmo tempo em que se resolvem - no que interessa a Vª Majestade muito mais que todos os outros Princípes pela maior distância de seus Domínios, evitando-se desta sorte os desgovernos das conquistas, que provem em grande parte de chegar tarde a notícia deles. Além do que poderá V. Mag. mandar vir todo o (?) delas muito mais brevemente e mais seguro. Poderão os homens de Negócio passar letras e cabedais a todas as Praças sitiadas: poderão ser socorridas tanto de gente, como de víveres, e munições a todo o tempo, e tirarem-se delas as Pessoas que quiserem, sem que o inimigo o possa impedir.

Descobrir-se-ão as regiões mais vizinhas aos Pólos do Mundo, sendo da Nação Portuguesa a glória deste descobrimento, além das infinitas conveniências que mostrará o tempo. (?) deste invento se podem seguir muitas desordens cometendo-se com o seu uso muitos crimes, e facilitando-se muito na confiança de se poderem passar a outro Reino, o que se evita estando reduzido o dito uso a uma só Pessoa, a quem se mandem a todo o tempo as ordens convenientes a respeito do dito transporte, e proibindo-se a todas as mais sob graves penas. E é bem se remunere ao suplicante invento de tanta importância.

Pede a V. Majestade seja servido conceder ao suplicante o privilégio, de que pondo por obra o dito invento nenhuma pessoa de qualquer qualidade que for possa usar dele em nenhum tempo neste Reino, ou suas conquistas sem licença do suplicante, ou seus herdeiros sob pena de perdimento de todos os bens, e as mais que a V. Majestade parecerem.

Consultou-se
No Desembargo do Paço a El Rey com todos os vossos(?) e que o prémio que pedia era muito limitado e que se devia ampliar.
Saiu Despachado
Como parece à Mesa, e além das penas acrescento a de morte aos Transgressores, e para com mais vontade o suplicante se aplicar ao novo Instrumento, obrando os efeitos que relata, lhe faço mercê da primeira Dignidade, que vagar nas minhas colegiadas de Barcelos, ou Santarém, e de Lente de Prima de Mathematica da minha Universidade de Coimbra com 600 mil réis de renda, que crio de novo em vida do suplicante somente.
Lisboa, 7 de Abril de 1709
(com a rubrica de Sua Majestade)

Explicação da Máquina
a. Mostra o modo velame para cortar os ares.
b. Mostra o leme para se poder governar
c. Mostra o corpo da barca levando em cada concha um fole e cano para lhe suprir a falta de ventos.
d. Mostra as Asas, que como pás servem para não voltar de todo à banda.
e. Mostra as Esferas feitas de metal, levando na base uma pedra de cevar e dentro dizia o Autor que ia o segredo. O corpo da barca era de madeira forrado de chapas de ferro forrado de esteiras de palha de centeio e tabuado capaz de conduzir até 11 Pessoas.
f. Mostra uma coberta feita de Arames com alambres enfiados fingindo que com o calor do Sol atrairão a si as esteiras com a barca.
g. Mostra a agulha de marear
h. Mostra o Piloto com o Astrolábio
i. Mostram as roldanas para se governar a escota.



Nota
Suposto como certo, e infalível, que o Autor achando o segredo do gás o havia de encobrir até estar certo da felicidade de suas operações, e de alcançar os prémios que pretendia, devemos confessar que justo o encobrisse fingindo que o ascenso da Máquina procedia de outros princípios atractivos com que o vulgo se enganasse.
Enfim, não obstante que diga que dentro dos globos ia a Magnete, cujo virtude faria subir a Máquina, ou barca, contudo a sua elevação não podia proceder da virtude atractiva, mas sim da expansão, e força do gás, a que o Autor chama segredo que ia dentro dos globos - ou talvez no velame. O certo é que o Autor era curiosíssimo na composição de fogo do ar e que esta Máquina foi experimentada, e lançada da Praça de Armas do Castelo, e que veio cair no Torreão da parte Ocidental da Praça, que então era Terreiro do Paço, e o Torreão Casa da India, e hoje é Praça do Comércio, e o Torreão está por concluir, e disto havia muitas testemunhas que alcançaram os meus dias. O fim desastrado do Autor foi causa de Portugal não ter a glória desta descoberta.

Pinheiro (assinatura)


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