Alvor-Silves

sábado, 29 de outubro de 2011

Abalos de Sebastião - Marquês

Se há méritos na actuação do Marquês de Pombal, durante o reinado de D. José, eles não são muito fáceis de encontrar, ao contrário do que se institucionalizou na propaganda, formada durante os séculos seguintes, que o tornou numa figura central da História Portuguesa. 

Sebastião (de Carvalho e Melo) combateu o Sebastianismo, tornando-se numa espécie de último Sebastião, visto como último protagonista do papel de "regente esclarecido".

Se este último Sebastião pretendeu combater o sebastianismo, é bom notar que antes desses dois "Sebastiões", houve um terceiro Sebastião português... no Séc. V. 

Sebastião - general romano
Em 427 d.C. quando o Império Romano se fragmentava e a Hispania começava  a ser "concessionada" aos godos, há um general romano, de nome Sebastião que organiza os Lusitanos, derrotando uma coligação de Alanos e Suevos, ao ponto de conquistar Lisboa!
De acordo com Pinho Leal, esse general Sebastião decide então aclamar-se rei, contra a "vontade popular", e é assassinado... qual César. Pouco depois, os Alanos e Suevos reconquistavam Lisboa! 

Esta história, pouco ou nada conhecida (... e sobre isto agradeço mais informação!), talvez complemente o motivo do singular nome de Sebastião dado ao Rei Desejado. 
A posteriori parece infelizmente adequada a conexão a São Sebastião, o santo - cristão infiltrado que chega a capitão da Guarda Pretoriana, mas que é executado ao ser descoberto. Também D. Sebastião sendo capitão da Cristandade, poderá ter sido executado ao lutar no sentido de restaurar a verdade histórica.

(reconstituição da condenação de "falso" D. Sebastião)


A Fama do Sebastião - Marquês de Pombal
Houve vários factores que concorreram para esta fama do Marquês.
1º) A eliminação da Casa de Aveiro tornou-o personagem agradável à Casa de Bragança, que deixou de ter fantasmas a assombrarem a legitimidade da sua linha de sucessão definida na Restauração.
2º ) A sua ligação à maçonaria granjeou-lhe um clube de fãs que se propagaram na história, nas artes e ciências, nunca atacando o lado ditatorial e tirano. A maçonaria estava então particularmente activa, participando na criação dos EUA e na Revolução Francesa.
3º) Reabilitando os descendentes dos cristãos-novos, colocando-os a par dos outros cidadãos, terá sido uma medida positiva, certamente apreciada no contexto de influência judaica.
4º) Mesmo o lado jesuíta, ligado a Roma, tendo sido fortemente perseguido pelas repressões do Marquês, acabou por aceitar o personagem. Isto não deixa de ser algo estranho, e talvez diga mais sobre a evolução dessa organização católica, do que propriamente sobre o Marquês.
5º) Salazar viu no Marquês um exemplo de "despotismo iluminado", que adoptou como referência reformista para a ditadura do seu "estado novo". Estratégia inteligente, indo captar um herói caro à 1ª República, pelo lado maçónico, ditos combatentes encarniçados da influência da Igreja de Roma. Salazar, ao colocar o Marquês no mais alto pedestal de Lisboa - na Rotunda, coloca o símbolo maçónico no alto, perante o silêncio de uma Igreja rendida, que via em Salazar a sua maior esperança contra o anticlericalismo maçónico.

Assim, de forma algo singular, o Marquês apareceu como figura consensual entre lados opostos!
Os registos críticos que apareceram sobre a actuação do Marquês foram quase sempre tímidos e algo silenciados. 
A nova censura - o politicamente correcto, impede pôr em causa a obra do Marquês em Lisboa, após o Terramoto, ou na reestruturação administrativa ou da universidade, admitindo a crítica sobre a chacina dos Távoras. Os adeptos do Marquês tentam usar a semelhança com as execuções ordenadas por D. João II... sendo óbvio que a comparação é algo absurda. A execução dos Távoras teria melhor paralelo nos métodos da Antiga Roma, ao estender-se a toda a família.

Os agentes do encobrimento histórico parecem apreciar tornar vilões em heróis, e denominar como fracos os regentes mais lúcidos. Dessa forma ignoram os mais sensatos e elogiam os mais cruéis...  ficando assim mais próximos, pelos defeitos, daqueles que colocaram no panteão que inventaram. 

Assim, a maioria dos erros foram passados ao antecessor, D. João V, quiçá o melhor governante da dinastia de Bragança... já que ameaçava colocar Portugal de novo no caminho de potência mundial.
D. João V é criticado por trazer ouro do Brasil... esquecendo que essas remessas pararam pelo total desinteresse do Marquês no Brasil.
Ao Marquês elogia-se a pretensa obra nacional, omitindo o desastre que foi a sua condução do império... foi aliás durante essa pretensa "regência brilhante" que se serviu a Sandwich Havaiana e Australiana aos ingleses.
Se há mérito nalguma actuação será coisa de bastidores... e apenas se justificaria se a ruína nacional fosse necessária para algum bem maior!

Os sucessos de um rei, levam a uma absorção e a um descuido com a sucessão. Era assim habitual um investimento no príncipe seguinte, por aqueles que eram preteridos pelo rei.
Quando D. João V morre, é a rainha (austríaca, Habsburgo) Maria Ana Josefa que vai indicar Sebastião de Carvalho e Melo ao seu filho, D. José.
Este diplomata, antes embaixador na Inglaterra e depois na Áustria, e que D. João V acabara de demitir, aparece num lugar de destaque arranjado pela Rainha Maria Ana de Áustria, que o irá proteger (casando mesmo com uma austríaca). As ligações à maçonaria, essas parecem ocorrer aquando da embaixada em Londres... onde certamente terá privado com cozinheiros e sanduíches.

Porém, atrevemos também a sugerir um plano de longo curso, que estava já a ser testado pelos hábeis Habsburgos. De facto, uma maneira de controlar uma sociedade maçónica, em crescimento acentuado de poder, seria usar essa avidez de poder a serviço da aristocracia implantada. 
D. José I passa assim como figura despercebida, desfrutando das delícias da corte, longe dos assuntos de estado, encarregues a Sebastião de Melo... mas influenciando decisivamente as decisões mais controversas - como a execução dos Távoras. Em troca desses serviços, o Sebastião passa a Conde de Oeiras e depois a Marquês de Pombal. A aristocracia usaria o prestígio como moeda de troca na governação, e poderia descansar... mas a Revolução Francesa alterou um pouco estas contas.

Este plano aristocrata de longo curso seria inteligente... abdicavam das tarefas pesadas de governação, e passavam a desfrutar das vantagens do Reino. As quebras de popularidade passavam para os ministros, que tinham aparente carta-branca, mas que estavam condicionados.
Os Habsburgos austríacos, com Metternich, preferiam a via absolutista, que viam como única solução face à experiência caótica da Revolução Francesa de 1789. Os ingleses, que já tinham uma experiência revolucionária bem anterior, com Cromwell ao invés de Napoleão, preconizavam uma filosofia ainda mais inteligente - a Monarquia Liberal.

A Monarquia Liberal, tornou-se a forma comum de governo nos Séc. XIX e XX, especialmente após as Revoluções de 1848, e ainda hoje perdura na Europa. A legitimidade do Rei não era afectada, mas o governo passava a ser opção por eleição. No fundo a responsabilidade da governação visível passava para o próprio povo, por resultado de uma pretensa eleição, mas estes governantes estavam depois condicionados a todo o jogo que se passava nos bastidores, nas armadilhas cortesãs.
A população era co-responsabilizada nos erros governativos dos ambiciosos líderes que elegia, e a cabeça coroada passava incólume pelos pingos da chuva.

A experiência mais decisiva ocorreria com as Repúblicas... mesmo com a destituição do Rei e das Cortes, os poderes instituídos seriam corrompidos pelas ligações ancestrais das famílias, e na prática esses elementos aristocratas voltavam a concentrar o poder sob forma camuflada. 
Aparentemente partilhavam o poder com uma nova parte da população burguesa, que subia nos degraus do poder, mas esses novos protagonistas eram seduzíveis a honrarias e festas, e poderiam ser manipulados em jogos cortesãos, onde a aristocracia reinava sem concorrência.
Talvez a última experiência, destinada a erradicar essa submersa influência aristocrática nas Repúblicas, terá sido tentada na Revolução Russa de 1917. No entanto, é fácil perceber como os jogos de bastidores assumiam, mesmo assim, contornos tenebrosos... a luta de poder na antiga URSS acabou por substituir um sistema oligárquico por outro - em que a aristocracia passou a ser o "partido único". 
Essa experiência russa foi fechada, expondo fantasmas semelhantes aos fantasmas do Reino de Terror, que se seguiu à Revolução Francesa. Os escritores da História decidiam assim fechar definitivamente a hipótese comunista, usando dos habituais reflexos pavlovianos - a palavra comunista ganharia um tom pejorativo automático.


Abalos Lisboetas antes de 1755
Voltamos a Sebastião, Marquês de Pombal, e aos sentidos abalos!
Um dos méritos propagandeados ao Marquês é a reconstrução de Lisboa após o Terramoto de 1755.
Isto é colocado como se Lisboa não tivesse passado antes por dezenas de terramotos severos.

Em 26 de Janeiro de 1531 estima-se que tenham morrido 30 mil pessoas em Lisboa, número até maior ao avançado para o de 1755. 
Também nessa altura foi feito um bairro com estrutura quadricular que sobreviveu - o Bairro Alto (ver p.ex. aqui). Assim, a proclamada "quadrícula inovadora" nas ruas da baixa lisboeta, pensada pelo Marquês, já tinha tido um precedente com 250 anos, durante o reinado de D. João III.

Vejamos então um registo de sismos em Lisboa (usamos os adjectivos de Pinho Leal):
1009 - grande terramoto que destroi "mais ou menos" Lisboa.
1117 - idem
1146 - ibidem
1290 - fortíssimo terramoto aluíram muitas casas de Lisboa.
1344 - idem
1531 - espantoso terramoto que dura 50 dias! Arruinados alguns templos e 1500 casas cairam. 
1551 - terramoto medonho destruiu 200 casas em Lisboa
1575 - violento terramoto sem vítimas
1598 - violento terramoto sem vítimas
1699 - violento tremor de terra de 3 dias com alguns intervalos 
1724 - fortíssimo tremor de terra, não causou desgraças 


O abalo sísmico de 1531, tendo até levado à construção do Bairro "Alto", parece ter um registo histórico mais devastador que o de 1755...
Porém o abalo do Marquês teve várias componentes - especialmente posteriores.

Selecção Herculana
O terramoto do Marquês e assessores foi de tal forma potente que parece ter feito cair as Torres de Hércules em Cadiz (construção que tinha aguentado milénios de terramotos), apesar de ter poupado o Aqueduto das Águas Livres em Lisboa, ou o Convento de Mafra.
As ditas Torres de Hércules tiveram ainda uma queda diferente em Coimbra, onde a Torre Pentagonal tombou pela outra proeza pombalina - a universidade!
Não terá sido a Universidade de Évora, que Pombal decidiu fechar, nem o Observatório Astronómico, que apenas serviu de pretexto para a destruição da Torre de Hércules. O que Pombal fez foi importar génios... ou melhor arrumar o génio nacional na prateleira e contratar a subsidariedade, pela ideia de que um bom estrangeiro seria sempre melhor! Os textos de autores do Séc. XVIII que ironizam esse estado de coisas são particularmente interessantes para se perceber quando se começou a venerar a importação externa de valores, e a consolidar a dívida subjacente, transformando os valores nacionais em resignados, menosprezados, e desconsiderados subsidiários de uma inteligentia externa.

Como era Lisboa antes do Terramoto?
Apesar de serem pouco vistas imagens de Lisboa anteriores ao Terramoto de 1755, sobreviveram algumas bem ilustrativas, onde se percebe que a "grande reconstrução", ou a "grande alteração", é essencialmente manobra publicitária.
Pormenor da zona do Palácio do Rei,  onde depois do Terramoto será o Terreiro do Paço.
Estampa na Biblioteca Nacional de Maillet (impresso em Paris, 1760)


Estampa na Biblioteca Nacional de Clara Black (início Séc. XVIII)


Podemos ver em particular que o posterior Terreiro do Paço e os edifícios pouco mais são do que a adaptação do que já era o Palácio do Rei. Aliás, o que se notará mais é que a zona do Paço terá até perdido alguma qualidade estética, a avaliar pelas estampas. Se havia caos urbanístico na zona interna até ao Rossio, pois isso é algo que não se consegue avaliar nestas imagens, e não seria no Bairro Alto. Mas há outras que mostram pelo menos uma grande rua com clara vista do Tejo, e podem ainda ver-se edifícios com altura de 5 andares.

Em resumo, para além da duplicação dos torreões no Paço, não se vislumbra propriamente uma "grande" alteração face ao que era Lisboa antes do terramoto.

A destruição de Lisboa, não terminou no Terramoto, e em larga parte uma das maiores perdas resultou do incêndio, que também destruiu os Arquivos da Torre do Tombo. Estes acidentes, ditos fortuitos, têm a particular selectividade de destruir a memória histórica, de forma quase definitiva. Este caso, ou a Biblioteca de Alexandria, são alguns dos muitos exemplos ao longo dos séculos (e.g. Grande Incêndio de Londres, ao tempo da nossa Rainha Catarina)...

Quanto à contenção do desastre, conhece-se a forma brutal de repressão que se processou após o terramoto, causando mais vítimas do que o próprio acidente (isso é habitualmente ilustrado nesta imagem).

Processo dos Távoras - 1758
Ainda no rescaldo do acontecimento, e devido à sensação de "castigo divino", a insatisfação sobre a actuação do Marquês acentua-se, mas irá terminar de forma contundente.
Três anos depois do terramoto, dá-se o incidente da "tentativa de assassinato" do Rei, que resulta no chamado Processo dos Távoras, sendo implicados o Duque de Aveiro, o Conde da Atouguia e toda a família dos Távoras, entre outros.

Processo dos Távoras
Teatro da Execução (estampa na Bibl. Nac., anónima, c. 1759-60)

Já aqui falámos sobre a particularidade dos mortos envolvidos no processo serem das mesmas Casas que estiveram até à morte ao lado de D. Sebastião em Alcácer-Quibir, e até de 1578 e 1758 terem os mesmos dígitos.
O que choca mais neste processo é a brutalidade envolvida nas execuções públicas. Talvez não fosse novidade, dado o tratamento de tortura e esquartejamento que Louis XV decidiu implementar a Robert Damiens em 1757... a novidade aqui foi a sua aplicação a uma casa aristocrata rival.
Convirá ler Pinho Leal sobre o Processo, num apontamento que tem sobre o sítio "Chão Salgado"... nunca é demais saber de que matéria são feitos os heróis que estão no pedestal mais alto da capital lisboeta.

Guerra Fantástica
Portugal participou na Guerra dos Sete Anos, ao lado da Inglaterra...
... e assim, ao contrário do que é habitualmente publicitado, os conflitos com Espanha não terminaram nas vitórias da Restauração. Houve a Guerra Fantástica.
A Espanha, aliada da França, entrou em Portugal, e ameaçou a invasão em 1762, durante a regência do Marquês... o exército português tinha sido reduzido desde 1754 a metade dos efectivos - manda dizer a publicidade instituída - que por culpa de D. João V - que apesar de este ter morrido em 1750, tinha costas largas para aguentar com esta culpa adicional, mesmo morto. Lê-se isto na wikipedia:


       "O Exército Português, abandonado desde a doença de D. João V, não tinha oficiais preparados para a guerra — fardamento, soldados e armas eram praticamente inexistentes."

Ainda que isso fosse verdade, será que a ausência de espírito crítico é tal que não se percebe que a doença de D. João V ocorreu em 1750... e que nos 12 anos seguintes as responsabilidades sobre o exército estariam a cargo de D. José e do ministro Pombal.

Há ilustrações dessas batalhas, que levaram a fortes derrotas das forças portuguesas.

"Guerra Fantástica"
O espanhol Conde de Aranda invade Portugal em 1762, durante a regência pombalina,
conquistando Salvaterra e ameaçando Lisboa. (**)

A solução pombalina recai mais uma vez na ajuda externa, pela organização militar do Conde de Lippe, aparentando quase que já não poderia ter sob controlo português um exército forte - aconteceu depois o mesmo com a ajuda de Wellington - as tropas portuguesas nunca parecem ter ousado responder sem haver direcção externa. De forma semelhante, mesmo a presença do Duque de Schomberg, durante a Guerra da Restauração nunca foi bem vista pelos nacionais (nomeadamente o Marquês de Marialva), e terá contribuído mais para a deposição de Afonso VI em favor de Pedro II, ou para colher os louros de da vitória portuguesa em Montes-Claros.

Esta "Guerra Fantástica" evidencia a acentuada degradação nacional após D. João V.
Dir-se-à uma decadência quase propositada, conduzida pelo Marquês de Pombal, e pelas forças infiltradas de traição nacional que continuam a promover a incompetência, de forma a suprimir qualquer renascimento organizado.
Foi essa a principal herança pombalina!

(**) ________________
Observação [18/05/2013]
Lê-se na legenda:
Vue perspective de la Bataille remportée par les Troupes Espagnoles et Françoises aux ordres de Mr. le Comte d'Aranda sur les Portugais aprés laquelle le Comte d'Aranda s'est emparé de la Place de Salvatierra ainsi que du Chateau de Segura sur le Tage ou il a laissé une partie de ses Troupes. Cette Ville a capitulé le seize Septembre 1762.
A figura induz em erro, pela extensão de água apresentada para o Tejo, pensando-se em Salvaterra de Magos. Porém, tratava-se da zona fronteiriça Salvaterra do Extremo e do Castelo de Segura, na proximidade de Idanha. 
Fica assim em dúvida a imaginação artística ao ponto de colocar navios numa parte montante do Tejo, que só faria sentido na zona do Mar da Palha, próxima da outra Salvaterra de Magos...
... a menos que consideremos alguma barragem na zona das Portas do Ródão, como falámos aqui:
http://alvor-silves.blogspot.pt/2011/07/portas-do-rodao.html
... algo que dificilmente justificaria a navegabilidade de embarcações consideráveis, pelo que é mais natural admitir a confusão do artista na mistura de paisagens das duas Salvaterras...

Nota 19/03/2014:  
Correcção de todos os links para as imagens, devido a mudanças nos links da Biblioteca Nacional.

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Bolonhesa e Carbonara

[reeditado e terminado em 8 de Outubro de 2011]

Não tinha pensado apresentar um texto sobre os 101 anos da implantação da República Portuguesa, mas junto pequenos detalhes que me mereceram alguma atenção.

O primeiro desses detalhes, é o excelente documentário, feito a propósito do centenário: 

Uma figura central da Revolução de 5 de Outubro, é aí bem identificada - Machado Santos, o jovem romântico, à frente das tropas populares da Carbonária, estacionadas na Rotunda.

No entanto, como é claro nestas coisas... uma coisa é ter um papel decisivo, outra coisa é obter o devido reconhecimento. Uma coisa é garantir a vitória militar na Rotunda, outra coisa diferente é determinar que afinal o momento da Implantação da República são uns gritos fotografados na varanda da Camâra de Lisboa:

 
(o elemento que parece ser Machado Santos, é afinal Marinha de Campos).

Os melhores heróis são os mortos... foi o caso do Dr. Miguel Bombarda e do Almirante Cândido dos Reis... todas as cidades viriam a ter uma rua com o nome estes personagens, cujo papel singular face aos restantes, terá sido o seu falecimento politicamente correcto - foram enterrados conjuntamente a 6 de Outubro de 1910.

Dos mortos não se esperam críticas à evolução do movimento... as críticas de Machado Santos.
Faltou, no documentário da RTP2, apontar o destino do herói da Rotunda... e bastava ligar a uma outra excelente mini-série da RTP: a Noite Sangrenta.
O destino de Machado Santos e José Carlos da Maia, heróis incómodos da implantação da República foi traçado pela "camioneta fantasma" que, na Noite Sangrenta de 19 de Outubro de 1921, levou para a execução estes antigos heróis da implantação da República, bem como o chefe de governo António Granjo e outros antigos apoiantes de Sidónio Pais.

Após 100 anos, houve finalmente um conjunto de informação transmitida pela RTP, e que tinha sido varrida para baixo do tapete republicano, que sufocou protagonistas, nomeando outros no seu lugar.
Após 100 anos, a informação ainda vem separada... há ainda receio de abrir os armários.
É fácil falar do apagamento de Trotsky nas fotos com Lenine, mas é complicado assumir que Machado Santos foi apagado nas fotos da República, e depois executado a mando de "desconhecidos" que organizam a Noite Sangrenta. Falar em "desconhecidos", ou acusar subalternos, é resultado da falha e condicionamento histórico.
Como contraposição à 2ª República de Salazar, desenvolveu-se uma mitologia própria de branqueamento da 1ª República, estratégia achada apropriada nas décadas pós-25 Abril, procurando definir um único monstro (Salazar) no conto de fadas republicano.
O número de protagonistas assassinados na 1ª República excedeu largamente os do Estado Novo, já para não falar da Monarquia Constitucional. Nos bastidores do "partido único" dito "democrata" de Afonso Costa o que mais se temia eram os verdadeiros democratas, que iam pagando com a vida as suas iniciativas. Assim, quando se fala em partido único, ao tempo de Salazar, importa notar que a grande diferença face ao estado anterior, é que era um novo partido único assumido, e não um regime colorido com vários partidos, em que dominava o Partido Democrático, com poucas políticas assumidas e muitas acções radicais definidas nos bastidores.

Republicanos e maçonaria
É especialmente elucidativo o documentário da RTP2 ao estabelecer a interacção da Carbonária com a Maçonaria na execução do golpe republicano de 5 de Outubro.
Os líderes da Carbonária, no quais se inclui Machado Santos, estão ainda na Maçonaria, e assim de alguma forma o projecto maçónico parece aproveitar-se da estrutura popular da Carbonária, usando-a como um braço armado. Isso parece tanto mais notório pela auto-extinção da Carbonária nos momentos seguintes à revolução. Se a maçonaria aparecia como elitista, era pragmático desenvolver uma estrutura auxiliar de interacção necessária à coordenação das forças populares. São essas forças da Carbonária acusadas da morte do rei D. Carlos, que aguentam a Rotunda, com Machado Santos à cabeça... ou seja, a estrutura que parece protagonizar o sucesso do golpe republicano desaparece com o sucesso da acção.

Porém, a acção é mais complexa, e a resistência de Machado Santos tem muito de simbólica, tal como a de Paiva Couceiro pelo lado oposto. São actores ocasionais que aparecem numa peça escrita nos bastidores. Acabam por aparecer como heróis isolados na luta simbólica que travaram na Rotunda. Irão repetir essa rivalidade no episódio da Monarquia do Norte, de 1919, que é uma reacção monárquica ao assassínio de Sidónio Pais.

O argumento já tinha sido escrito nos bastidores, e por isso Paiva Couceiro vê-se sozinho a defender uma monarquia moribunda. As deslocações do grão-mestre da Maçonaria, para garantir a não intervenção externa, inglesa e francesa, completam o ramalhete... Há uma organização que parece assim coordenar toda a acção, com influência em ambos os lados das tropas. Mas a organização tendo cariz maçónico não se confunde com a Maçonaria... o grão-mestre é candidato a Presidente da República, mas quem define a escolha é o Partido Republicano. O poder usa as diversas estruturas, mas não se identifica exactamente com a hierarquia de nenhuma delas. Assim, as presidências dos órgãos surgem como figurativas, escondendo um poder definido através da cúpula, mas não identificável, gerando a óbvia confusão nos opositores. As várias iniciativas disparavam em diversas direcções, sem conseguirem identificar exactamente a cabeça do poder.

Os republicanos, enquanto partido, tinham obtido uma derrota histórica nas eleições de 1910, que antecederam a revolução armada. Precisaram de restringir o universo eleitoral e suprimir partidos monárquicos para que não houvesse surpresas no parlamento, já que o povo menos informado poderia continuar a votar na "direcção errada". É esta minoria que passará a completa maioria pela via revolucionária...
Curiosamente, durante estes 100 anos republicanos, as constituições votadas ocorrem com Sidónio Pais, e com Salazar. A população é chamada para escolher partidos, mas não a forma de governo. Independentemente de todas as necessárias críticas, a forma ditatorial do Estado Novo foi legitimada por consulta popular na Constituição de 1933, aprovada esmagadoramente. A parte incorrecta surge na não renovação dessa legitimação... passados 20 anos. Passado esse tempo, haveria toda uma geração votante que não se pronunciara sobre o regime. Mas isso não foi defeito ocasional... os regimes actuais, ditos democráticos, têm constituições com mais de 20 anos, que nunca foram sujeitas a nenhum escrutínio desse tipo. Os cidadãos nascem condicionados ao funcionamento do sistema, sem hipótese de se pronunciarem sobre ele.

Os contos e as histórias
Se nos é ensinado que a evolução histórica caminhou no sentido de uma maior consagração da liberdade individual, extensiva a toda a população, também fica evidente que a poderosa ocultação histórica - que está em curso - pode ter falsificado toda a informação que dispomos, e sobre a qual não há testemunhos pessoais fiáveis que ultrapassem o Séc. XX ou o final do Séc. XIX (contando até com os relatos de avós ou bisavós). É claro que isto é um exagero, mas convém atentar, por exemplo, no caso das Colunas de Hércules... que passam por um mito da antiguidade, tendo-se até perdido o registo popular das torres existentes em Cadiz, e que desapareceram apenas no Séc. XVIII ou XIX.

Há teorias com origem na Rússia, que afirmam uma supressão histórica de 1000 anos!
Pode parecer absurdo... mas convirá observar a excessiva ausência de registos da Época Medieval, que comporta esses mil anos. Invoca-se uma estagnação de mentalidades, colorida com uma atribuição de monumentos padrão a esse período, mas o único obstáculo sério a essa hipótese é a necessidade de uma coordenação das diversas culturas na preservação e colaboração do embuste. Mas, à excepção de casos singulares, na aristocracia, onde há algum registo de antepassados que perdura por séculos, a restante maioria da população dificilmente conhece mais do que registos dos seus avós ou bisavós.

A disseminação da Escola, uma conquista da República (que acabou por ser mais efectiva na 2ª República, e que já estava bem presente na Monarquia), levou também a uma quebra da tradição familiar. A história familiar passou a reduzir-se a pequenos episódios pessoais, sem o enquadramento da época. Os pais passaram a negligenciar a transmissão da sua vivência e interpretação dos acontecimentos, confiando à Escola essa transmissão... assumindo que ela seria objectiva e formativa. Porém, é fácil perceber que para a maioria dos filhos, essa vivência vai resumir-se a duas ou três frases aprendidas num livro escolhido. Uma informação complementar simples perde-se nos silêncios familiares, que remetem o conhecimento antigo à escola estatal.
É depois habitual caricaturizar-se isto com o desconhecimento sobre o 25 de Abril... quando os próprios caricaturistas dificilmente sabem que o 5 de Outubro foi também a data da assinatura do Tratado de Zamora, que consagrou a independência nacional em 1143.
Se as iniciativas revolucionárias republicanas começaram a 3 de Outubro, a chancela oficial acabou por surgir apenas depois, num dia que ficaria assim duplamente simbólico. Coincidência?

Carbonara e Bolonhesa
No meio deste processo haverá boas intenções misturadas com intenções castradoras.
O processo republicano aparece assim identificado com a mesma massa, mas com dois molhos:
- A Massa Carbonara - que é feita de molhos de população, liderada pela Carbonária, uma organização ocasional, que surge no Séc. XIX para liderar processos republicanos na Itália, Espanha e Portugal, e cujo nome fica definido pela troca do B pelo V.... ou seja, o nome Carvonária resultaria das reuniões secretas iniciais efectuadas em casas de carvoeiros, na Sardenha. E sobre a Sardenha parece sempre haver muito pouco a dizer... a enorme e paradisíaca ilha mediterrânica parece ter passado pela história despercebida, ao contrário da Sicília ou da Córsega.
- A Massa Bolonhesa - cuja carne é misturada nos molhos de pedreiros livres da Maçonaria. A ligação a Bolonha surge na origem reportada a 1248 da Carta de Bolonha:
Statuta et Ordinamenta Societatis Magistrorum Tapia et Lignamiis
ou seja, os primitivos estatutos e regulamentos da Sociedade dos Mestres Maçons e Carpinteiros.
Esta pasta bolonhesa será da mesma Bolonha italiana que foi primeira universidade, e cujo nome serviu para um tratado de graus universitários europeus (o chamado Tratado de Bolonha).

Afinal, parece que a típica massa italiana, "a pasta", mais característica de Nápoles e Sicília, onde leva apenas azeite, ganhou outros molhos noutras ilhas e paragens, tendo sido exportada com sucesso.

sábado, 17 de setembro de 2011

Peça por Peça

- Uma Peça, de Teatro Isabelino: - The Battle of Alcazar, de George Peele (1591)
Peça por outra peça - e do pedido sai nova peça:
- Uma Peça, de Teatro Carolino: - Believe as you list, de Philip Massinger (1631).

Há mais peças... e peça por peça vão colando uma história diversa, neste caso de D. Sebastião.

Em 13 de Dezembro de 2009 foi iniciado o tópico Alvor-Silves com um texto sobre D. Sebastião, que seria o primeiro de sete textos, finalizados a 31... Alguns argumentos colocados nesse texto inicial podiam ser considerados especulativos, e acabei por deixar cair parcialmente o assunto.

Não deixa de ser coincidência que D. João de Áustria desapareça, tal como D. Sebastião, no ano de 1578!
Ambos eram jovens, ver-se-iam como guerreiros no modelo de Aquiles, e o brilhante cometa que apareceu no início desse ano (mais precisamente entre Novembro de 1577 e Janeiro de 1578), concretizaria alguns presságios de sorte funesta.

Sebastião foi levado no coração da batalha, João de Áustria foi levado pelo tifo... mas que necessidade haveria de dissecar o corpo do herói de Lepanto, no transporte para o Escorial, sendo só depois juntadas as partes? Recebia ambos os corpos, Filipe II, irmão de João e tio de Sebastião.

D. João de Áustria, morto em 1578

Acerca de Lepanto, que em 1571 terá catapultado D. João de Áustria para a celebridade, o Grão-Vizir de Selim II, Mahamet Sokulu, terá afirmado:  
- Ao tomarmos Chipre, ficaram sem um braço, enquanto ao derrotarem a nossa armada [em Lepanto], só apararam a nossa barba

Foi desta forma que os Otomanos desvalorizaram o resultado de Lepanto.
A Sagrada Aliança, que reunia o Império Habsburgo Espanhol, Veneza e Génova, a Savóia, Malta e os Estados Papais, tinha vencido os Otomanos, mas dificilmente essa vitória permitira alterar a disposição das peças no terreno... e Chipre teria caído definitivamente.

Numa luta que carregava o epíteto sagrado, seria natural ver um "fervoroso rei católico" juntar as forças nacionais nesse empreendimento pela cristandade. Porém, não será esse rei D. Sebastião, que já governava o reino há três anos. O rei de Portugal não estará representado na coligação naval de Lepanto. Convém notar que o Infante D. Luís (tio de D. Sebastião) tinha estado presente na Conquista de Tunis, em 1535, comandada por Carlos V, pai de Filipe II. Era habitual uma colaboração cristã contra os otomanos...

Quando falha a potência militar, entra em jogo a diplomacia... os acordos em jogos de bastidores.
Se Lepanto não travava a expansão Otomana já consolidada na Europa, por onde poderia ela progredir sem apoquentar mais os Estados Italianos e Austríacos? 
- Um caminho claro seriam os outros estados islâmicos do Norte de África.
Assim, apesar do resultado de Lepanto, três anos depois, em 1574, a cidade de Tunis volta a cair em mãos otomanas.
Será neste contexto que aparece a ameaça de implantação otomana em Marrocos, e consequente perturbação da vizinhança ibérica, não apenas nas navegações, mas até num eventual reeditar de desembarques muçulmanos - a queda de Granada faria em breve um século e seria natural inflamar um espírito de reconquista pelo outro lado.

Se D. Sebastião pareceu preocupado com o problema, a ponto de oferecer ajuda a Mulei Mohamed, já Filipe II pareceu negligenciar a ameaça turca das suas fronteiras a sul.
Convém notar que num avanço dessa forma, os primeiros pontos vulneráveis seriam as possessões espanholas no Norte de África. Tunis fora logo perdida em 1574, mas havia várias outras... antes de chegar aos fortes portugueses, que começavam apenas em Ceuta.

Uma derrota pesada, que envolveu a morte do Rei, deixaria as possessões portuguesas em Marrocos como desígnio apetecível de embalo na reconquista. Porém, com Filipe II no trono português esse perigo muçulmano sob influência turca nunca se efectivou... aliás Filipe II será particularmente expediente na forma como irá tratar de aparecer como parte intermédia na resolução do problema de resgate dos sobreviventes de Alcácer-Quibir.

Os contactos de Filipe II com o lado vencedor na contenda de Alcácer-Quibir são particularmente proveitosos. Às expensas de fortunas enviadas para este intermediário no resgate, regressa alguma da nobreza e fidalguia nacional. Aparece como salvador de famílias dos cárceres dos infiéis, e certamente que tais famílias lhe ficam gratas apesar das somas dispendidas. Um dos prisioneiros resgatados era o Conde de Barcelos, filho do Duque de Bragança... tinha então apenas 10 anos de idade.
Os franceses chamavam a Filipe II "demónio do meio-dia"... mas não foi assim encarado em Lisboa, e a prova disso foi a Monumentalia Filipina - dezenas de grandes Arcos de Triunfo erigidos em Lisboa em 1581 (... dos quais nenhum sobreviveu!). A reacção da fidalguia à invasão filipina foi muito moderada, como pôde constatar o Prior do Crato... que teve entre os portugueses os seus principais amigos de Peniche!

Quando falamos de Filipe II, de D. Sebastião, e de D. João de Áustria, convém não esquecer o problema interno que se desenrolava em Espanha, entre Albistas e Ebolistas!
Esta luta interna, nos meandros da corte espanhola, teve uma clara vitória pelo lado Albista, do Duque de Alba, afinal o vencedor contra D. António. Do lado dos Ebolistas, e como Rui Gomes morre em 1573, será a sua jovem mulher, a notável Ana Mendonza de La Cerda, que procurará liderar o partido do seu marido - um português da Chamusca que, de tutor de Filipe II, ascendeu a Príncipe de Eboli, e Duque de Pastrana.

Ana de Mendonza y de La Cerda, Princesa de Eboli, com o devido olhar.  

A Princesa de Eboli acabou por ser denunciada em conspiração com Antonio Perez, sendo presa em 1579... estavam abertas todas as portas para a anexação portuguesa que o rival Duque de Alba concretizou no ano seguinte. O motivo principal da acusação seria a morte do secretário de D. João de Áustria, em Março de 1578, mas ligava-se primeiro o problema de D. Sebastião e depois o da sucessão,  que envolviam "segredos de estado".  

As versões que dispomos tiveram de sobreviver à forte censura que imperou nos reinados filipinos.
Não apenas nessas regências... afinal é sabido que o Marquês de Pombal fez queimar publicações que evidenciassem um teor sebastianista! 
Foi mesmo um pouco mais longe... sendo claro que o Duque de Aveiro e os Távoras foram protagonistas ao lado de D. Sebastião em batalha, foram também esses as vítimas principais do Processo de 1758, que condenou essas famílias a uma cruel execução pública.
- Coincidência?... Para quem gosta de numerologia, reparará ainda que 1578 e 1758 têm os mesmos dígitos!
Para quem não gosta, é claro que a Casa de Bragança não foi uma escolha consensual na Restauração!
Estaria demasiado ligada ao partido de Filipe II, a quem Catarina de Bragança acabou por abdicar o direito do trono, e essa foi também a Casa que mais beneficiou sob domínio filipino. 
D. João IV teve pois que admitir abdicar num eventual regresso de D. Sebastião. O episódio de Luísa de Gusmão, preferindo ser "Rainha por um dia...", reflecte implicitamente a parte da Casa onde Portugal queria rever-se. Não era na linha do anterior Duque de Bragança - que tomado por febres, se tinha escusado a partir com o Rei.... seria talvez mais na linha de Luísa, a bisneta da Princesa de Eboli.
O Duque de Aveiro ainda era, à época do Marquês de Pombal, um candidato ao trono, pela linha mais antiga... que vinha da descendência de D. João II pelo filho D. Jorge, preterido a D. Manuel.
As três casas ducais formadas por Afonso V, ou seja Coimbra, Viseu e Bragança... tinham-se enfrentado desde a Batalha de Alfarrobeira. 
E se o ducado de Viseu foi vencedor na sucessão de D. João II, obrigando o ducado de Coimbra a mudar de nome para Aveiro; após a extinção da linha com D. Sebastião, a sucessão pela via de D. Jorge permaneceu como ameaça à casa de Bragança até à execução definida em 1758. O problema era de tal forma evidente que o filho do Duque de Aveiro só escapou à morte com a promessa de não ter sucessores. 


Prisioneiro de Veneza
Por isso, é importante encontrar registos um pouco mais longínquos... na Inglaterra!
Há uma excelente compilação de escritos (que encontrei agora), publicada em 1985, pelo Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, do Ministério da Educação:
... e parece ser um dos poucos registos onde se fala das importantes obras inglesas que abordaram o assunto da Batalha de Alcácer-Quibir e do destino de D. Sebastião.

Uma dessas obras é Believe as you list, de Philip Massinger (1631), que foi censurada!
"Acreditem enquanto ouvem" só teve autorização de publicação depois do autor mudar por completo o enquadramento! Ao invés de falar do reaparecimento de D. Sebastião, colocou-o como reaparecimento de Antíoco, rei da Síria no Séc. II a.C.

O motivo da peça era o aparecimento de D. Sebastião enquanto o "Cavaleiro da Cruz", em Veneza, em Junho de 1598. Consegue convencer portugueses aí sediados, e por isso o homem é preso pelo Doge de Veneza em Novembro de 1598, a pedido do embaixador espanhol. É libertado por intervenção do filho do Prior do Crato, e consegue escapar até Florença onde volta a ser preso pelo Duque da Toscana, mais uma vez a pedido do embaixador espanhol. É visitado pelo Conde de Lemos em 1601, mas acaba por ser primeiro condenado perpetuamente às galés e finalmente executado em 1603. 
Esta história contada por Frei José Teixeira e usada por Massinger, está bem documentada no artigo de Isabel Oliveira Martins (ver pág. 121-145), incluso no dito livro de 1985.

É claro que o "Prisioneiro de Veneza"(*) aparenta ser apenas mais um caso de reaparcimento, após os de Penamacor, Ericeira e Madrigal, com desfecho funesto para os pretendentes. Havendo interesses em depor a linha espanhola, também é natural pensar que alguns portugueses alinhassem nesta solução alternativa. O prisioneiro de Veneza, talvez um certo Marco Tulio Catizone, acabou por ter repercursão ao ponto da peça ter sido proibida no reinado de Carlos I, rei inglês que teve depois destino igualmente funesto!


Moluco
Um aspecto que se mantém particularmente intrigante é a designação Mulei Moluco para Abd-al-Malik (ou Abdilmelec), especialmente se o conectarmos a um período em que as Ilhas Molucas estiveram sob disputa no Anti-Meridiano das Tordesilhas, desde D. João III. 
A fundação de Manila após 1571, e subsequente renomeação daquelas ilhas como Filipinas, em honra a Filipe II, mostram que se mantinham questões territoriais a resolver naquela parte oriental, entre Filipe II e D. Sebastião. Essa questão é especialmente notória pela oferta dessas mesmas ilhas como dote da filha de Filipe II, se D. Sebastião tivesse aceite esse casamento! Porém, obstinadamente, D. Sebastião sempre recusou essa proposta de casamento espanhol.
As ilhas eram inicialmente denominadas Malucas, e a conotação do termo "Maluco" só tem um significado de loucura posteriormente. Convém a este propósito referir que, na Jornada de África, Jerónimo de Mendonça diz:
(...) e Mulei Audelmelic, vendo isto se passou ao Gram Turco, o qual vulgarmente se chama Mulei Moluco, porque sendo pequeno era tão afeiçoado aos Christãos, que seu pay lhe mandou fazer huma bragua d'ouro chea de muitas pedras ricas, e lha pôs hum dia chamando-lhe Moluco (como quem diz servo) donde lhe ficou o sobrenome tambem assentado, que muitos lhe não sabem o nome verdadeiro. Andou pois Mulei Molucco em Constantinopla muito tempo, sem poder alcançar socorro do Gram Turco contra seu sobrinho (como tambem del Rey de Espanha , não havia podido alcançar, fazendo primeiro os mesmos ofícios).
O significado de Moluco é assim explicado como sinónimo de "servo", e de forma clara é estabelecida a tentativa de contacto de Mulei Moluco ao rei de Espanha, antes de obter o apoio de Murad III, o Sultão Turco, que lhe concederá uma tropa de janízaros.

Portanto, o combate de D. Sebastião foi contra uma ameaça otomana, entretanto colorida como uma questiúncula interna de legitimidade de sucessão marroquina, por diversas interpretações testamentárias.
Se não há nada que aponte para uma participação espanhola contra a incursão portuguesa em Alcácer-Quibir, há muito que aponta para um combate directo contra uma coligação com forças otomanas em solo de Marrocos, e não apenas contra uma facção do exército marroquino. Pior do que isso, há algumas suspeitas sobre como uma batalha, aparentemente ganha numa primeira fase, e em que o próprio Mulei Moluco morre no seu decurso, se vai desenrolar com uma desastrosa descoordenação posterior, não do lado marroquino, mas sim indiciando problemas internos no lado português.

Foram à época colocadas dúvidas sobre o papel de Filipe II, sobre o conselho ao sobrinho de não participar, sobre a falha de envio de tropas, sobre a oferenda do Elmo que o pai, Carlos V, teria usado na Conquista de Tunis. Ou ainda, sobre o pedido do próprio Mulei Moluco a D. Sebastião, com o compromisso de não usar o apoio turco como ameaça às possessões portuguesas. Essas dúvidas podem fazer sentido, na sequência de acontecimentos, dado que Filipe II obteria vantagens com a vitória de D. Sebastião, ao afastar a ameaça turca... mas também com a derrota, pela sua pretensão à sucessão do trono português.
Porém, a derrota de D. Sebastião não afastaria a ameaça turca...
Onde ficou a ameaça turca após a derrota de Alcácer-Quibir?
Teria sido travada pelos marroquinos?
Pelo partido dos mesmos marroquinos que juravam fidelidade ao Sultão Murad III?
O plano de Filipe II só seria perfeito com uma prévia negociação com os turcos...

De facto, durante o período seguinte a Europa vai entrar numa grande guerra interna, a Guerra dos Trinta Anos... quase esquecendo a ameaça turca, ameaça que parece evaporar-se após Alcácer-Quibir.
Assim sendo, como não pensar num extenso acordo entre os beligerantes de Lepanto?
- Constatado o equilíbrio tácito, há uma certa aceitação da presença turca.
O espírito de Cruzada, de reconquista da Terra Santa tinha sido perdido por completo e a conquista de Jerusalém deixa de ter importância como tema europeu.
Curiosamente, os Otomanos ocupam o papel de Constantinopla... não apenas com a renomeação da capital para Istambul, também porque os seus domínios vão concentrar-se nos domínios do Império Romano do Oriente.
A Europa Ocidental parece assim conformar-se ao império ocidental e deixa o oriental para os Turcos.

O Quinto Império
O Império Ocidental era do tio, Filipe II, mas D. Sebastião ousa pela primeira vez colocar uma Coroa Imperial num rei português.


As coroas dos seus antecessores, mesmo de D. João II ou D. Manuel, tinham sido sempre abertas... em obediência a Roma e ao Sacro-Império, porém a atitude de D. Sebastião parece unilateral.
Tal atitude seria semelhante a uma cisão do Império Romano Ocidental, não passaria facilmente despercebida. Como o Sacro-Império será colocado em causa durante a Guerra dos Trinta Anos, a atitude poderá depois não ser tão notória, e até vista como uma questão de moda... mas o fecho da coroa significava implicitamente não estar sob o Sacro-Império.

A empresa de D. Sebastião é representada pela junção de vários componentes cristãos, que podemos ver na moeda seguinte:
Moeda de D. Sebastião

Há uma vieira sobre um peixe acima do mar, e uma lua (crescente) que abre sobre algumas estrelas (quatro aqui, embora haja quem desenhe 7 invocando a Ursa Maior... poderiam ser ainda as Pleiades).
Este símbolo pode ser encarado como uma reencarnação no seio do amor de Cristo, excepto no que se refere especificamente à configuração da Lua e estrelas.
O moto - Serena Celsa Favent... algo como o esclarecimento (ou a serenidade) favorece a excelência, parece sugerir que D. Sebastião, o Desejado, estava em sintonia com uma filosofia que o veria como executante escolhido para nova missão divina.

Essa mesma ideia de um Novo Império acaba por passar no mito que é gerado em torno do seu desaparecimento.
Conforme notado por alguns autores (ver Lucette Valensi), a batalha de Alcácer-Quibir não será alvo de efusivas comemorações pelo lado marroquino, apesar do seu aparente desfecho glorioso, e é ao contrário um símbolo de união portuguesa, em torno da ideia do Quinto Império.
É afinal uma derrota que parece motivar um desígnio imperial, nunca antes explícito!


Nesta ilustração podemos ver o pensamento dessa saudade sebastianista, nas frases:
Dois retratos vês q são.
Hum velho só na aparência
Do Rey D. SEBASTIÃO.
Repara q têm mistério
Pois a mão da Providência o guarda
Para o V Império
 
SI  VERA  EST  FAMA  SEBASTIUS
O Incoberto. Esperado. Sebastião. O dezejado.
O Quinto Império está alegoricamente representado na incompletude dos degraus da pirâmide... há quatro degraus bem definidos, e um quinto malforme que se parecia desenhar, e onde fica explícita uma intenção de construção ao colocar-se sobre a pedra uma coroa imperial.
Se na mão do jovem Sebastião está aberto o bastão...
... na mão do mais velho o bastão aparece já sem ponta solta.
De bastão passa a bastião, num outro Sebastião!
As figuras estão ainda em reflexão, em orientações opostas, mas exibindo em ambos os casos coroas imperiais, só ligeiramente diferentes.

Importa assim notar que não é um Rei que parte para Alcácer-Quibir, é um assumido imperador.
As pretensões imperiais poderia tê-las tentado D. Sebastião pela união com a filha de Filpe II, seguindo o plano Habsburgo, uma Casa que cumpria as regras, crescendo por casamentos planeados que foram eliminando sucessores até que a família austríaca detivesse a coroa imperial.
Porém, parece claro que D. Sebastião pretendia outra via... um novo Império.
Num mapa do Museu da Marinha, feito em 1970, que já aqui apresentámos, surge uma mistura entre linhas de costa actuais, e símbolos de posse antigos:

O mapa foi certamente inspirado num outro mapa que desconhecemos...
O notável é aparecerem bandeiras portuguesas numa extensão que cobre toda a parte leste da América do Sul, numa área da Argentina, bem como um escudo sobre o Canadá/Labrador/Terra Nova.
Esta pretensão sobre a zona da Terra Nova (aí denominada Terra de Corte-Real) foi claramente assumida por D. Sebastião, pelo que nos parece que este mapa terá inspiração nalgum documento desse período.
D. Sebastião estaria convencido em bastar impor a legitimidade de pretensões territoriais sem uma necessidade de chancela de Roma, e por isso definia-se como imperador por direito autónomo. Isso causaria enormes dificuldades, não apenas contra o Imperador designado, o seu tio Filipe II, mas também contra as pretensões marítimas francesas e até inglesas. Isso colocava Portugal praticamente isolado, conduzindo quase sem alianças um império mundial. Foi uma pretensão elevada, que teve um preço correspondente.
Porém, se o poder centralizado no Sacro-Império Romano acabou por cair definitivamente na Guerra dos Trinta Anos, assinado o Tratado de Vestfália (70 anos depois de Alcácer-Quibir), esta iniciativa de D. Sebastião é a única nacional que segue para além da linha da actuação de Henrique VIII, em Inglaterra (quando os Tudor passam a invocar a coroa fechada), e que marca o início do movimento para um outro Império Europeu, definido por nações independentes do poder central de Roma.



Batalha dos Três Reis
A Batalha de Austerlitz é também conhecida como a Batalha dos Três Imperadores, onde o conceito imperial já se havia difundido, e se confrontam os Impérios Francês, Russo e Austríaco (o que resta do Sacro-Império Germânico após Vestfália havia ficado na linha Habsburgo de Viena). A derrota austríaca vai marcar decisivamente o fim dessa linha imperial que remontava a Carlos Magno. O conceito imperial era já mais difuso, mas não ao ponto da iniciativa imperial de Napoleão que ignora um Papa que é forçado a assistir à sua auto-coroação. Napoleão acaba por sucumbir às suas pretensões de esmagar também o Império Russo e aparecer como imperador único. O ressuscitar de um Sacro-Império Germânico ficará ainda marcado pelas derrotas alemãs nas duas Grandes Guerras do Séc. XX... Porém essa reorganização europeia em torno de um poder centralizador, fazendo reviver o velho império germânico, não deixou de fazer parte da agenda política.

Antes da Batalha dos Três Imperadores, onde não morreu nenhum imperador, a Batalha de Alcácer-Quibir ficou conhecida como Batalha dos Três Reis, quer na nomenclatura marroquina, quer na inglesa.
O nome pretende invocar a morte de D. Sebastião, de Mulei Mohamad, o Rei de Marrocos deposto, e também de Mulei Moluco, o tio que o depôs, um vencedor que morre no decurso da batalha.
Estas três mortes numa batalha foram algo de único, e justificaram o nome adoptado.
É ainda particularmente estranho o monumento marroquino que marca a Batalha dos Três Reis:
À esquerda: Monumento marroquino à Batalha dos Três Reis, 
duas estrelas marroquinas certamente lembrando os Muleis,
e sobre elas uma invocação a Allah, conforme se confirma na figura à direita.
Falta D. Sebastião... ou o que representa afinal o terceiro círculo?
(observação devida a Carlos S. Silva)

Com Lucette Valensi vemos que as comemorações da derrota portuguesa são especialmente celebradas pela comunidade judaica marroquina, expulsa de Portugal... ao ponto de terem visto D. Sebastião como uma ameaça ao nível de um Holocausto:
Disputée entre le monarque et le saint [Sebastião], la mémoire de la bataille des Trois Rois suscite en terre marocaine une pluralité de récits: historiques, hagiographiques, folkloriques. Mais elle ne fait l'objet d'aucune célébration. Seules les communautés juives établies dans le nord du pays et habitées par le ressentiment contre ceux qui les ont expulsées de la Péninsule ibérique fêtent la défaite du roi Sébastien lors du Pûrim de los cristianos, le premier eloul de chaque année. Le texte biblique est mobilisé pour donner la signification de l'événement: la dévastation de la communauté juive de Marrakech par Muhammad al-Mutawakkil est identifiée à la destruction du Temple, le roi Sébastien au Haman du Livre d'Esther qui a décidé l'extermination de tous les juifs, sa défaite et l'exécution de ce dernier. Comme Pûrim célèbre l'éloignement de la menace de destruction qui pesait sur Mardochée et les siens, le nouveau pûrim, institué par les rabbins après la bataille de 1578 (5338 dans le calendrier juif), rend grâce à Dieu d'avoir détourné un péril mortel. (cf. wiki)
Assim, se por um lado se instituiu em Portugal uma visão Messiânica ligada a D. Sebastião, a opinião é absolutamente oposta pelo lado judeu! Para além de um ressentimento difuso, talvez houvesse uma noção de perigo por uma "falsa identificação messiânica", algo explícita no símbolo da empresa de D. Sebastião. Esse perigo seria tanto maior se as comunidades muçulmanas não o vissem como um inimigo cristão, e antes o acolhessem como um novo Messias. Assim, uma infiltração de Sebastião com adesão na comunidade magrebina poderia ter efeitos revolucionários na geografia política.

É conveniente referir que na obra de George Peele transparece claramente que o lado certo, o lado dos deuses, é o lado de Mulei Moluco. D. Sebastião aparece aí como um rei levado no engano, para o mau partido de Mulei Mohamed...
Mulei Moluco tem o apoio de Murad III, que é designado como "deus dos reis terrenos":
Abdil Reyes: Long live my lord, the sovereign of my heart, Lord Abdilmelec, whom the God of kings, The mighty Amurath hath happy made; And long live Amurath for this good deed. 
[Nota: Abdilmelec: Mulei Moluco; Amurath: Murad III]
O poder do Sultão Murad III é sempre enfatizado, colocado ao nível da expressão do poder divino na Terra... e se podemos ver isso como uma natural visão parcial do personagens, a invocação de deuses do panteão Romano, como Júpiter, não sofre da simples crítica de ignorância, que é feita por críticos de Peele, convenientemente ignorantes. Ao colocar nas palavras de Mulei Mohamed:

(...) Be Pluto, then, in hell, and bar the fiends,
Take Neptune’s force to thee and calm the seas,
And execute Jove’s justice on the world (...)

Peele saberia perfeitamente que os mouros não se refeririam aos deuses do panteão romano, mas decidiu inserir esse discurso no Mouro, aliado de D. Sebastião, que assim se rebelava contra o destino que lhe preparavam os deuses do panteão clássico.
Apesar de se pretender reduzir o interesse inglês na batalha à participação de Thomas Stukeley, um personagem controverso na Corte da Rainha Isabel, que alguns diziam ser seu irmão ilegítimo... é óbvio que a Batalha de Alcácer-Quibir só foi desvalorizada por algumas censuras explícitas, mas depois foi-no por censuras muito mais poderosas - as implícitas, que levaram o posterior Shakespeare a aparecer como fundador do Teatro Inglês, esquecendo estas obras de George Peele, aliás supostamente anónimas. Shakespeare emerge como encenador no teatro inglês apenas após a morte de George Peele, e só traz uma particularidade efectivamente nova - o não abordar explicitamente assuntos incómodos nas suas peças.

O argumento estava definido para as peças seguintes:
- a fama seria bondosa com temas abstractos ou ligeiros, mas severa com representações explícitas!
O argumento desta peça... o argumento desta grande peça encontra-se desde então em exibição por todas as salas de teatro, por todas as salas de cinema, por todas as nossas salas através da televisão.


___________
(*) Curiosamente o título "Prisioneiro de Veneza" será depois usado como título numa obra de um soldado metereologista, que decide publicar um "Panfleto sobre a contingência"... obra depois renomeada como "A Náusea", ou seja falamos de Jean Paul Sartre.

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Puto de Vénus

Um famoso quadro de Botticeli, "Nascimento de Vénus" ilustra o nascimento de Afrodite/Vénus, das ondas do mar (Ponto), resultado do corte adamantino de Cronos a Urano:
(é dito que Botticeli teria seguido uma descrição de Angelo Poliziano)

A modelo usada para o quadro foi Vespucci, Simonetta Vespucci, que casou em Florença com Marco, um primo de Alberico, depois dito Américo, Vespucci.

Convém notar que há uma confusão de Afrodites... uma original, que é a que sempre referimos - a Afrodite Uraniana, ligada a Dione, e a sua filha com Zeus, designada Afrodite Pandemos, ligada ao amor físico.
Parténon: Vesta, Dione e Afrodite (Pandemos).

Se começámos a "Questão Gaia" com uma ousada ligação de Gaia pela substituição de I por J, o que daria Gaja, e falámos ainda dos gaiatos, vamos terminar o tópico com os "Putos".

Putti
Os Putos são pequenas crianças, representados na Arte Renascentista e Barroca, e que não são exactamente os habituais anjos (Querubins e Serafins) - têm "estatuto inferior" por serem associados a entidades pagãs - ou seja, Cupido/Eros:


A associação de Vénus a Cupido é bem conhecida e antiga. A entidade pagã, a pequena criança que dispara setas de amor, é o original Puto de Vénus. Há uma relação maternal que se estabeleceu entre estas duas divindades, caso raro em que são representadas quase sempre em conjunto:

Afrodite com Eros 
(terracota do Séc. IV a.C., Hermitage Museum)

Após o Renascimento, esta representação singular de associação divina, numa relação mãe-filho, será retomada em múltiplos quadros... e como é óbvio não estamos a referir-nos apenas à representação destas divindades pagãs. Esta relação nem será nenhuma novidade, pois há vários textos que sinalizam as semelhanças.

A relação divina entre mãe e filho passa claramente para o catolicismo, e será um dos focos de cisma entre protestantes e católicos. Numa primeira análise superficial esta associação seria desadequada para ser retomada pelo catolicismo... mas depende do nível a que a colocamos. Tal como existia uma Afrodite primordial, na Teogonia de Hesíodo também Eros é colocado a um nível ainda mais primevo, um amor surgindo como fonte de luz, e resultando do Caos, tal como Gaia e Tártaro (Eros, é assim mesmo anterior a Urano, filho de Gaia). Como Afrodite, também Eros tem uma segunda encarnação, mais conhecida, enquanto filho de Afrodite e Ares, e é aí representado como uma criança que surge da relação entre os deuses do amor e da guerra, que dispara flechas de paixão. (Este novo Eros será mesmo vítima da sua própria flecha, ficando apaixonado por Psique, numa história que terá inspirado o beijo da Bela Adormecida.)

A representação simultânea de Vénus e Cupido, está muitas vezes presente na pintura e escultura:

 

Não colocamos aqui a imagem da mais famosa Vénus de Milo... mas, seguindo esta linha, talvez não faltassem apenas os braços, talvez faltasse ainda um Cupido ao colo (assim o sugere o olhar, a posição da perna avançada e do braço elevado). Uma representação assim poderia colidir de "forma grave" com as imagens clássicas, denominadas "Madonas"... isso justificaria a mutilação, uma polémica secreta e a consequente fama associada à estátua. Se Renoir a chamou "grande polícia" talvez não se referisse à falta de beleza, que claramente possui, mas sim ao que representaria a sua mutilação. 
Mais precisamente, aludimos a uma possível representação desta forma:

Há, é claro, uma versão alternativa, relacionada com a devolução da Vénus de Medici, que tem ambos os braços em baixo,  tal como a Afrodite de Cnido (onde Eros está ausente). Aliás a própria "Vénus de Medici" tem uma cópia com um Cupido maior:

"Venus de Medici" (de Praxiteles?) e "cópia romana" (imagens)


Vieira
Na representação de Botticeli temos essa Vénus primordial, que emerge adulta da espuma do mar primevo, como uma pérola de uma vieira (ou ostra). Isso já ocorre antes, conforme podemos ver num fresco de Pompeia:

Há assim, uma associação muito antiga, que liga o nascimento de Vénus, enquanto deusa primeva do amor, a uma vieira, e que foi recuperada no quadro de Botticeli.
Não podemos deixar de notar que essa vieira é ainda o símbolo de Santiago, e que os peregrinos seguiam esse caminho levando num cajado esse símbolo primevo do amor. A mensagem profunda da vieira de Santiago, é assim o reflexo em Cristo desse símbolo ancestral do amor espiritual, ligado ao nascimento da Afrodite Uraniana.
Isso terá tido uma grande influência na comunidade peninsular que já venerava Cupido (chamado Endovélico), conforme escreveu Carvalho da Costa. Venerar, de Venera (Vénus), é aqui mesmo a palavra correcta. A relação entre mãe e filho terá factores acrescidos de ligação, na propagação dessa mensagem de amor primeiro. O caso singular do cristianismo enquanto religião é a capacidade de colocar um Deus omnipotente em posição humana, com as fragilidades inerentes na situação de reflexão literal, recuperando uma noção primeva de amor, complemento ao equilíbrio dinâmico, possível com o corte temporal de Cronos.
A lâmina adamantina de Cronos cindiu um universo de todos os tempos, de Úrano, mostrando um tempo de cada vez, em contínuo. As ideias, os verbos, iriam ser definidos pela sua emergência dessa sequência imparável. O tempo surgia assim como uma ilusão de reprodução dinâmica do estado anterior, saindo de todo o caos possível uma aparente inteligibilidade. É assim que emerge a noção de amor, de partilha dinâmica do mesmo universo, pelos seres pensantes... e esse amor pode ser local, quando os seres reduzem o seu universo, a uma pessoa, ou a uma ocasião, ou pode ter contornos mais profundos, procurando uma harmonia global. Digamos que estão definidos todos os caminhos das Moiras, mas não o caminho que cada um decide seguir... é isso que o define enquanto ser emergente da estrutura estática, e que assim passa a "existir" na "ilusão" temporal.

Pombas e Peleiades
Se o Corvo está muitas vezes associado a Helios/Sol/Apolo, por outro lado, a pomba está associada a Afrodite e a Eros, havendo várias representações nesse sentido!

Será escusado dizer que também a pomba foi colocada no cristianismo como elemento revelador a Maria, para a concepção de Jesus, e ainda como um símbolo de paz e amor ligado à mensagem cristã.

Deus ao colocar-se numa posição humana através de Cristo, terá o seu complemento, o Espírito Santo, representado na pomba. Fica obviamente definida a trindade inevitável, pela abnegação do todo numa parte... teria que existir o seu complemento. 
Convirá referir que Zeus, escrito com um dzeta, se poderá ler Dzeus, da mesma forma que na componente romana, Júpiter tinha como nome alternativo Jove, que não difere muito de Jeova. Ou seja, os nomes não são assim tão diferentes quanto aparentam, à primeira vista... 

Peleiades significa em grego - pombas, e encontramos aqui ligação à designação das Pleiades, que enquanto agrupamento estelar representa as filhas de Atlas, um bando de pombas perseguidas pelo caçador Orion,. As referências às Pleiades são variadas, e estão inevitavelmente ligadas ao Ocidente, ao paraíso perdido, após o Atlas e Atlântico. 
Limite do Atlântico que será quebrado, após o Corvo (ilha), por um pombo que se chamará Colombo.
Colombo terá sido antes Colón, ou terá tido outro nome... mas seria afinal um pombo que se iria juntar às pombas passando o Atlântico, do pai Atlas que sustentava o mundo. A viagem de Colombo toma assim um aspecto simbólico de revelação, que ultrapassou o limite ocidental do Corvo, ave de Apolo.
[Peleiades era ainda o nome das sacerdotisas do templo de Dodona, ligado a Gaia, Reia e Dione (de alguma forma identificadas), sendo Dione a Afrodite Uraniana.]

Vénus ou Lucifer?
Uma das Pleiades é Maia, filha de Atlas e mãe de Hermes/Mercúrio. Tal como Gaia e Reia, também Maia acabou por ser uma divindade ligada à Terra, em diversas culturas. 
Se Vénus estava ligada a Mercúrio, e como ambos os planetas têm órbitas aparentes próximas um do outro, e próximas do Sol, não é de excluir que Mercúrio possa ter sido identificado ainda a Eros/Cupido. Há outros aspectos que concorrem nesse sentido, nomeadamente a célebre menção do Hermes Trimegisto e o hermético Hermetismo, onde a mensagem do caduceu se complementará com as ligações pelas setas de Cupido.

Um aspecto sinistro nestas ligações mitológicas, acabam por ser as contradições propositadas, criadas com objectivos obscuros... um dos mais evidentes é transformar Lucifer (em latim "o portador da luz"), a estrela da manhã, ou seja Vénus, a deusa do amor, numa personificação do mal. Como vimos, as contradições disto seriam totais, se Vénus não fosse também a estrela da tarde, e como tal Hesper... a esperança! 
É claro que, pretendendo-se manter a obscuridade, qualquer luz será encarada como um mal, que subverte a ordem instalada... nem que para isso se tenham que colocar educacionalmente reflexos condicionados. Pensar-se-à assim sobrepor uma "verdade social fabricada", mas até quando? Até que ponto será preciso ir, para que a verdade do passado deixe de pesar sobre o presente e ensombrar/assombrar o futuro?