Alvor-Silves

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

De Luanda e de Angola à contra-costa...

Continuamos com o registo precioso do Cardeal Saraiva sobre as viagens portuguesas.
Saraiva queixa-se frequente da forma pela qual os franceses procuravam reescrever o nosso período de descobrimentos. Um dos problemas era justificar a limitação dos portugueses ao território descoberto entre 1498 e 1514, sempre com D. Manuel (adiciona-se apenas o Japão trinta anos depois, com D. João III).
Em particular, era invocado pelos franceses uma falta de curiosidade de explorar o interior dos territórios... assunto que estava em voga na época em que o Cardeal Saraiva escreve o seu texto (anterior às expedições africanas de Stanley e Livingstone).
Como exemplo da crítica de Saraiva, apresentamos este excerto sobre uma pretensão francesa para a descoberta de Tombuctu:
(Saraiva cita o autor): "A sua viagem é anterior a 1670. Ele acompanhava seu amo, Português renegado, enviado a Tombuctu pelo governador de Tafdet" ;   (Saraiva então escarnece) : aonde achamos notável que o douto escritor nomeie o francês Imbert como primeiro Europeu que chegou a Tombuctu sem advertir que o Português, amo de Imbert, naturalmente iria adiante do seu criado, e entraria primeiro na cidade!
O protesto do Cardeal Saraiva é contínuo, e suportado por documentação, em que se mostram diversas ordens de expedição ao interior de África para a ligação entre a costa ocidental e oriental.
Saraiva vai mais atrás e relata a crueza das explorações terrestres, logo no início... Gama e Cabral levavam criminosos, que lançavam em diversas paragens na costa com instruções de penetrarem no interior, tanto quando possível. João da Nóvoa em 1501 teria encontrado um António Fernandes em Quíloa, lançado por Cabral em Melinde. Cyde Barbudo e Pedro Quaresma tiveram instruções de ir do Cabo da Boa Esperança até Sofala. Fala depois duma expedição de Francisco Barreto em 1569, seguido por Vasco Homem, que chegaram às terras de Monomotapa e às minas de Chicova, Rutroque, Chicanga e Mocarás...

É particularmente interessante a citação que faz ao Padre Manoel Godinho em 1663:
O caminho de Angola por terra à India não é ainda descoberto, mas não deixa de ser sabido, e será fácil em sendo cursado (...) quem pretender fazer este caminho de Angola a Moçambique, e daqui à India, atravessando o sertão da Cafraria deve demandar a sobredita lagoa Zachaf, e achando-a descer pelos rios aos nossos fortes de Téte e Sena, destes à barra de Quilimane, de Quilimane a Moçambique, etc. Que haja a tal lagoa dizem-no não só os Cafres, senão os Portugueses que já lá chegaram, navegando pelos rios acima, e por falta de prémio se não tem descoberto até agora este caminho. (...)
Este registo é aliás invocado por Hermenegildo Capelo e Roberto Ivens, no seu livro posterior, "De Angola à contra-costa", 1886, acabando de concretizar essa ligação, que lhes foi oficialmente reconhecida... embora esse (re)feito nacional esbarrasse com o ultimato inglês sobre o mapa cor-de-rosa!
Dizemos (re)feito, porque Saraiva é claro:
Finalmente, no ano de 1807, sendo Governador e Capitão-General do Reino de Angola (...) António Saldanha da Gama, Conde de Porto Santo, se realizou, de mandado dele, a primeira expedição de Luanda à contra-costa, a qual voltou no ano de 1809, trazendo a embaixada dos Molluas, nação que já comerciava com Moçambique. Imediatamente enviou o digno Governador outra expedição com ordem expressa de ir até Moçambique, o que efectivamente se executou, voltando esta expedição a Luanda com cartas de Moçambique estando já a governar Angola José Oliveira Barbosa.
1885 - Capelo e Ivens: de Angola à contra-costa
~80 anos antes: de Luanda à contra-costa: 1809.

Capelo e Ivens vão honrar com nome similar a sua viagem, e usam uma citação esclarecedora, agora do francês L'Abbé Durand (em carta à Soc. Géographie de Paris, 1880), no início do seu texto:
L'Afrique intérieure a été découverte et parcourue par les Portugais au XVI siècle... Les portugais de cette époque connaissaient mieux l'intérieur de ce continent, la Région des Lacs, etc. qu'on ne la connaît aujourd'hui... Livingstone a donc retrouvé seulement ce que les anciens portugais avaient découvert, et encore il s'est servi de renseignements portugais sans avoir la loyauté de le dire.
Capelo e Ivens fazem relato semelhante ao do Cardeal Saraiva, podem acrescentar novos nomes, como o de Silva Porto, e explicam o não reconhecimento desta viagem... porque Saldanha da Gama encarregara um tenente Honorato de enviar Pedro Baptista e Amaro José, que não foram considerados homens que garantissem "o mais singelo valor científico" à viagem.

António Saldanha da Gama será o representante de Portugal no Congresso de Viena, em conjunto com o Duque de Palmela. Este feito de 1807-09 não terá sido reconhecido pela posterior Conferência de Berlim, em 1885, pelo que Ivens e Capelo repetiram a proeza, de acordo com as normas estipuladas na conferência, para direito colonial.
Gravura no livro de Capelo e Ivens (1886).

O Cardeal Saraiva que morre em 1845 já não presenciará esta repetição... não sabemos como a sua ironia descreveria o ridículo da situação. Como é habitual, já não encontramos referências actuais ao feito ordenado por Saldanha da Gama... e que certamente era já uma repetição continuada. 
A História com a sua real-politik obrigava a escrever Capelo e Ivens como descobridores desse interior africano. 

Será como dizer agora, que se comemoram os cem anos, que Amundsen não foi o primeiro a chegar ao Pólo Sul, porque afinal não estavam presentes 1000 pessoas como testemunhas. Abria-se nova corrida ao Pólo Sul e, passados alguns anos, a História ignoraria o feito de Amundsen... que convenhamos, dado o contexto, não é nada claro que tenha sido o primeiro!

Nada disto era novo... afinal a certificação da viagem de Colombo, de Cook, e de tantos outros, passou por um processo de chancela. É óbvio que não se trataram dos primeiros descobridores!...
É notável que passados séculos, os procedimentos não tenham mudado em nada.
Continua a ensinar-se uma versão oficial que distorce os feitos, e o contexto em que foram produzidos. Como se viu, Stanley e Livingstone limitaram-se a calcorrear caminhos já gastos, ficando com louros para a glória vitoriana, acordada com Leopoldo II.
Um Victoria's Secret... afinal congeminado na corte europeia de Bruxelas por Leopoldo I, permitiu uma partilha de África que agradava à Prússia de Bismark, e reordenou a velha ordem com um novo fôlego.

Este processo de descoberta, de atribuição deslocada, imprópria, condicionado pela política, não terminou no Séc. XVI, nem no Séc. XVIII ou XIX... e como é óbvio é claro que não terminou depois.
Nem tão pouco este processo de glorificação pessoal se resumiu às explorações territoriais... todo o processo de descoberta, mesmo científica, teve o seu processo de escolha de heróis glorificados.

Por essa razão nada disto é ensinado, e a História e os seu feitos singulares, envolvem-se num conjunto de enfabulações destinadas a moldar a nossa percepção...

2 comentários:

  1. Fizémos uma pequena alteração ao texto inicial, por termos conseguido acesso ao 1º volume do livro de Capelo e Ivens, que complementa a descrição do Cardeal Saraiva, deixando algumas dúvidas menores.

    Para Saraiva, o único nome mencionado é o do promotor, António Saldanha da Gama, e não menciona Honorato, e muito menos os "pombeiros" enviados:
    - Pedro Baptista, e Amaro José
    ... afinal os verdadeiros protagonistas do descobrimento.
    Para Capelo e Ivens a viagem teria demorado 9 anos (1802-1811)... coisa contraditória com a certeza de Saraiva, que coloca a primeira viagem em 1807-1809 e a sua repetição até à costa logo em 1809.

    O problema fica mais claro... a viagem teria sido feito sem o mínimo cuidado científico, empreendida por 2 simples plebeus "pombeiros".

    Para um contexto da corte europeia do Séc. XIX isso serviria de pretexto para reduzir tudo à estaca zero, e começar de novo. A expedição teria que ter à frente alguém com o mínimo estatuto social europeu...

    Afinal também Hillary sobe o Everest puxado pelo seu sherpa Norgay. Talvez Norgay já o tivesse escalado sozinho, mas era claro que a sociedade europeia só iria reconhecer o esforço de Hillary... um inglês da Nova Zelândia.

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  2. Caro Alvor

    Agora que já conhecemos os métodos do Establishment, que pecam pela imensa falta de imaginação, já que se repetem ao longo dos Séculos, diga-me:
    O que acha que aconteceu aos ruivos Fenícios, e aos Ruivos Faraós do Egipto?
    É que toda essa gente desapareceu como por encanto, e os povos que habitam aquelas paragens não têm com eles, nada em comum.
    Foi como se os Faraós tivessem ido ao Egipto, apenas sepultar Múmias.
    Já com os Maias, se passou o mesmo.
    Todos desapareceram sem deixar rasto.

    Abraço

    Da Fonte

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