Alvor-Silves

segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Casanova e as velhas causas

A propósito da tenebrosa execução de Robert Damiens em 1757, que mencionei num comentário, e recuperando a descrição do famoso Casanova
... "tentou assassinar Louis XV; mas apesar do falhanço, tendo o rei apenas sofrido uma pequena ferida, [Damiens] foi feito em pedaços, como se o crime tivesse sido consumado ... Fui forçado várias vezes a virar a cara e a tapar os meus ouvidos pelos seus gritos agonizantes, quando metade do corpo lhe era arrancada, mas os Lambertini e a Mme XXX nem se mexeram."
... percebemos como uma sociedade pode ser maquinizada, desprovendo os indivíduos de qualquer visão reflexiva. A desproporcionalidade pensada pelos carrascos reais fora tal, que dificilmente haveria imaginação suficiente para pensar em penalizá-los em sofrimento com o mesmo nível de perversidade exagerada que ali cometiam. 

Ao contrário do que é vulgar pensar, os aspectos de crueldade, a frieza ou requintes de malvadez, não são propriamente novidade trazida com a espécie humana. Estiveram presentes na natureza de forma banal, a partir do instante em que uns serviram como alimentação de outros, de uma forma que podemos entender como mais, ou menos, perversa ou brutal. Nem a natureza foi propriamente condescendente na necessidade alimentar dos seres vivos. O tempo exigido às necessidades de sobrevivência foi sempre exigente, e praticamente, assim que o animal digeria a sua refeição, já deveria começar a procurar a próxima, numa labuta diária incessante. Aliás, apesar das diferentes fontes de recursos energéticos, houve o "cuidado" de criar estômagos dedicados a um tipo de alimentação específica, sendo raros os casos de animais omnívoros.
As situações em que animais se podem encontrar em situações particularmente funestas e perversas, são tão variadas como o caricato caso das tartarugas, que incapazes de se voltarem, perecem implacavelmente ao sol.
Para além das ameaças de grande dimensão, a natureza não descurou trazer ainda grandes ameaças de pequena dimensão, na forma de infestações, doenças por vírus, bactérias, ou até por simples rebelião interna das próprias células. O panorama natural teve uma inconstância tão grande, que os ocasionais momentos de paz, de alguma normalidade, seriam o maior factor positivo.

Assim, por muito criativas que sejam as mentes perversas, não serão propriamente originais nas suas formas de perversidade. O embrutecimento está na natureza, é natural, e do ponto de vista objectivo não há grande diferença entre uma devastação nuclear de uma cidade, ou a sua destruição completa por algum fenómeno natural. A maior diferença é que num caso podemos apontar responsáveis, e no outro não... pelo menos até ao momento em que haja responsabilidades humanas na manipulação de fenómenos aparentemente naturais, sendo por exemplo antigas as técnicas de infestações em cidades sitiadas.

O ponto principal na observação de Casanova não era propriamente a crueldade da execução de Damiens, seria muito mais o aplauso ou indiferença dos que assistiam. Aliás, o aspecto perverso da execução reside apenas em considerar-se que era realizada por humanos e não por bestas.
É perfeitamente inútil esperar racionalidade ou compaixão de bestas, tal como é perfeitamente inútil esperar racionalidade ou compaixão da violência de um fenómeno natural, ou da acção de uma máquina descontrolada. Um sujeito que seja vítima de violência gratuita só sofre mais se atribuir ao executor alguma humanidade... uma vítima de ataque de um lobo não tem grandes esperanças sobre as intenções do animal, e a coisa só poderá piorar se afinal estiver rodeado por uma matilha. Como se terá vindo a constatar posteriormente, no decurso do Regime de Terror, na sociedade francesa tinham-se criado todos os mecanismos educacionais propícios a matilhas sanguinárias.


Casanova na Maçonaria
Na vida de Giacomo Casanova, plena de negócios e viagens aventurosas, para além dos mais conhecidos registos amorosos, terá tomado parte integrante a Maçonaria.
Nas suas memórias, deixa alguns apontamentos sobre uma sociedade secreta que começava então a impor-se no panorama europeu (excertos daqui)
It was in Lyon that a respectable individual, whose acquaintance I made at the house of M. de Rochebaron, obtained for me the favour of being initiated in the sublime trifles of Freemasonry. I arrived in Paris a simple apprentice; a few months after my arrival I became companion and master; the last is certainly the highest degree in Freemasonry, for all the other degrees which I took afterwards are only pleasing inventions, which, although symbolical, add nothing to the dignity of master.
É especialmente interessante a sua constatação pragmática de que apenas os 3 primeiros graus, conducentes ao título de "Mestre", seriam efectivas novidades, remetendo os restantes títulos a meras invenções aprazíveis. Sendo certo que não terá chegado aos famosos 33, talvez não visse mais no segundo 3 do que uma repetição do primeiro. Não é propriamente uma novidade que os 3 primeiros graus são os mais importantes, mas não tinha ainda encontrado uma afirmação tão contundente sobre a aparente frivolidade dos restantes.
No one in this world can obtain a knowledge of everything, but every man who feels himself endowed with faculties, and can realize the extent of his moral strength, should endeavour to obtain the greatest possible amount of knowledge. A well-born young man who wishes to travel and know not only the world, but also what is called good society, who does not want to find himself, under certain circumstances, inferior to his equals, and excluded from participating in all their pleasures, must get himself initiated in what is called Freemasonry, even if it is only to know superficially what Freemasonry is. It is a charitable institution, which, at certain times and in certain places, may have been a pretext for criminal underplots got up for the overthrow of public order, but is there anything under heaven that has not been abused? Have we not seen the Jesuits, under the cloak of our holy religion, thrust into the parricidal hand of blind enthusiasts the dagger with which kings were to be assassinated! 
Casanova continua, dizendo claramente que quem não quiser "sentir-se inferior aos seus iguais", não pode deixar de procurar a Maçonaria. E se a reputa como instituição benemérita, não deixa de afirmar o seu uso para conspirações na alteração da ordem pública, ao mesmo tempo que remetia também aos jesuítas outras conspirações regicidas.
All men of importance, I mean those whose social existence is marked by intelligence and merit, by learning or by wealth, can be (and many of them are) Freemasons: is it possible to suppose that such meetings, in which the initiated, making it a law never to speak, 'intra muros', either of politics, or of religions, or of governments, converse only concerning emblems which are either moral or trifling; is it possible to suppose, I repeat, that those meetings, in which the governments may have their own creatures, can offer dangers sufficiently serious to warrant the proscriptions of kings or the excommunications of Popes?
In reality such proceedings miss the end for which they are undertaken, and the Pope, in spite of his infallibility, will not prevent his persecutions from giving Freemasonry an importance which it would perhaps have never obtained if it had been left alone. Mystery is the essence of man's nature, and whatever presents itself to mankind under a mysterious appearance will always excite curiosity and be sought, even when men are satisfied that the veil covers nothing but a cypher.
Esta última constatação, sobre o crescimento da maçonaria por via do mistério que a envolvera, e também por resultado da perseguição papal - "que lhe dera uma importância que antes não teria", acaba de forma bastante reveladora sobre o efeito do véu não esconder nada mais que uma simples cifra. Ou seja, de certa forma Casanova acaba por sugerir que a sociedade, que cativara os membros pela revelação de ocultações significativas, encontrara formas de os manter entretidos noutras ocultações, que pouco mais seriam que simples codificações.
Upon the whole, I would advise all well-born young men, who intend to travel, to become Freemasons; but I would likewise advise them to be careful in selecting a lodge, because, although bad company cannot have any influence while inside of the lodge, the candidate must guard against bad acquaintances.
Those who become Freemasons only for the sake of finding out the secret of the order, run a very great risk of growing old under the trowel without ever realizing their purpose. Yet there is a secret, but it is so inviolable that it has never been confided or whispered to anyone. Those who stop at the outward crust of things imagine that the secret consists in words, in signs, or that the main point of it is to be found only in reaching the highest degree. This is a mistaken view: the man who guesses the secret of Freemasonry, and to know it you must guess it, reaches that point only through long attendance in the lodges, through deep thinking, comparison, and deduction. He would not trust that secret to his best friend in Freemasonry, because he is aware that if his friend has not found it out, he could not make any use of it after it had been whispered in his ear. No, he keeps his peace, and the secret remains a secret.
Este parágrafo de Casanova é ainda mais pragmático, e continua a sua visão anterior. A ideia de que os membros são enredados em múltiplos mistérios, e persistem na procura do último segredo em códigos, ou trepando até ao último degrau. Assumindo que há esse segredo, Casanova acaba por suspeitar que se mantém pelo simples facto de que quem o encontra acaba por concordar com o seu secretismo.
Everything done in a lodge must be secret; but those who have unscrupulously revealed what is done in the lodge, have been unable to reveal that which is essential; they had no knowledge of it, and had they known it, they certainly would not have unveiled the mystery of the ceremonies.
The impression felt in our days by the non-initiated is of the same nature as that felt in former times by those who were not initiated in the mysteries enacted at Eleusis in honour of Ceres. But the mysteries of Eleusis interested the whole of Greece, and whoever had attained some eminence in the society of those days had an ardent wish to take a part in those mysterious ceremonies, while Freemasonry, in the midst of many men of the highest merit, reckons a crowd of scoundrels whom no society ought to acknowledge, because they are the refuse of mankind as far as morality is concerned.
In the mysteries of Ceres, an inscrutable silence was long kept, owing to the veneration in which they were held. Besides, what was there in them that could be revealed? The three words which the hierophant said to the initiated? But what would that revelation have come to? Only to dishonour the indiscreet initiate, for they were barbarous words unknown to the vulgar. I have read somewhere that the three sacred words of the mysteries of Eleusis meant: Watch, and do no evil. The sacred words and the secrets of the various masonic degrees are about as criminal.
Casanova continua com a mesma argumentação. Os que acabam por revelar o que se passa nas lojas simplesmente não entendem o mistério das cerimónias... porque se o tivessem entendido, não o teriam revelado.
Tirando um pouco mais do véu da antiguidade dos segredos, e como comparação benigna no conteúdo, Casanova vai buscar o exemplo dos mistérios de Eleusis (ou Elísios), centrados na fertilidade agrícola de Demeter.
Placa evocativa dos mistérios de Eleusis dedicados a Demeter (Ceres)

Semelhantes mistérios iniciáticos, estiveram ligados primordialmente às religiões, e seriam encontrados desde o Egipto até à Frígia. Para além da hierarquia masculina dos panteões divinos, estes cultos recuperavam a ligação às "grandes deusas" neolíticas, ou mesmo paleolíticas.
Os mistérios de Eleusis foram reduzidos por Santo Hipólito (Séc. III) ao "mais perfeito mistério" - uma espiga ceifada em silêncio. 
Entre os múltiplos significados que tal imagem pode ter, uns vistos como mais profundos que outros, podemos cair facilmente nas cifras inconsequentes, num falar tudo sobre nada. No entanto, e notando que Camões cita Petrarca no famoso verso "Tra la spica e la man qual muro he messo", entre a espiga e a mão habitualmente levantam-se os muros que para a mão querem outros usos.
Mas aqui, e apenas a título de curiosidade rápida, é interessante saber que Spica é uma estrela de Virgo, constelação bem associável a Demeter, e pela sua posição na eclíptica é por vezes ocultada pela Lua, e por outros planetas (reportando-se a última ocultação por Vénus em 1783). Por isso, facilmente Spica poderia ser ceifada da vista em silêncio, e foi-se até talvez um dia pela foice de Saturno... confirmando a maior proximidade de todos os planetas.

Conforme Casanova perspicazmente nota, basta um mistério, bastará dar relevo a uma ocultação, para que isso capte a atenção dos curiosos. Muitas vezes mais do que pela importância do mistério em si, o que move será o simples desafio lançado.


Memoirs of Jacques Casanova De Seingalt 1725-1798
Episode 6 - To Paris and Prison (Chapter 5)
Translated by Arthur Machen, 
The Rare Unabridged London Edition, 1894 

quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

ESA a gora

Foi notícia, há coisa de mês e tal, a tentativa gorada da ESA em cavalgar um cometa com a Rosetta.
A ESA agora procurava imitar a congénere americana na espectáculo hollywoodesco, em que se colocam uns tantos fulanos, pretensos cientistas, a bater palmas e a exultar um ânimo exagerado, para definir o sucesso de uma missão espacial.
Estas missões são "espaciais" porque ganham "espaço" na imaginação popular. Essencialmente é esse o espaço que procuram captar - uma pequena janela aberta para além da prisão terrena.
Este episódio teria ainda algo de místico relacionado com a época natalícia, passados dois mil anos, se um cometa, estrela anunciadora do nascimento cristão, fosse cavalgada pelo engenho humano.

Conforme é ilustrado na wikipedia, o cometa 67P manifestava logo os problemas fotográficos que têm caracterizado o espaço destas missões. 

Ou seja, e sem perder demasiado tempo com estas historietas, o suposto cometa, que até era visto com cauda a cores no grande telescópio do Atacama, revelava-se um pedregulho a preto-e-branco nas câmaras da Rosetta, sem cauda nem coisíssima nenhuma que o distinguisse de um vulgar asteróide. 
A sonda espacial, nomeada com o nome icónico da suposta pedra decifradora dos hieróglifos, apresentava-nos assim um grande calhau. 
Depois, os detalhes do fracasso da missão de "alunagem" ou "acometagem", com o resultado final sendo uma "câmara escura", acabam por ser relatados no site da ESA... onde destaco a resposta a um jornalista intrigado com o facto das imagens mostrarem o cometa como um calhau sólido, e o fracasso da missão ser justificado pela "superfície esponjosa". A resposta elucidativa da ciência actual foi simples - tais interrogações eram pois muito pertinentes, pouco ainda se sabia, e para se saber mais, conviria enterrar mais dinheiro no projecto. 

É perfeitamente plausível querer-se manter uma janela aberta para a imaginação da criançada e da populaça, mas agora, quando a ESA a gora de forma bacoca, fica cada vez mais difícil acreditar nestes calhaus vestidos a preto-e-branco. 
Essa é agora a situação com pouco espaço de imaginação.

Eça é agora, tal como antes, um bom registo natalício. 
Nas suas Cartas de Inglaterra, a propósito do Natal, queixava-se da falta de neve para a efectiva imaginação necessária ao período natalício, acrescentando uma imagem a cores da Inglaterra do Séc. XIX.
Basta então ver uma pobre criança, pasmada diante da vitrine de uma loja, e com os olhos em lágrimas para uma boneca de pataco, que ela nunca poderá apertar nos seus miseráveis braços - para que se chegue à fácil conclusão que isto é um mundo abominável. 
D'este sentimento nascem algumas caridades de Natal; mas, findas as consoadas, o egoísmo parte à desfilada, ninguém torna a pensar mais nos pobres, a não ser alguns revolucionários endurecidos, dignos do cárcere - e a miséria continua a gemer ao seu canto! 
Pode parecer um retrato cinzento da pobreza arrastada pelo capitalismo devorador, mas ali estavam as cores de uma época de grande progresso científico e industrial. Eça aterrou na luz brilhante daquele cometa britânico e tirou imagens coloridas do que se cometia.
Os philosophos afirmam que isto há-de ser sempre assim: o mais nobre de entre eles, Jesus, cujo nascimento estamos exactamente celebrando, ameaçou-n'os, n'uma palavra imortal, que teríamos sempre pobres entre nós. Tem-se procurado com revoluções sucessivas fazer falhar esta sinistra profecia - mas as revoluções passam e os pobres ficam.
N'este momento, por exemplo, na Irlanda, os trabalhadores, ou antes os servos do ducado de Leicester estão morrendo de fome, e o duque de Leicester está retirando anualmente, do trabalho duro que eles fazem, quatrocentos contos de reis de renda! É verdade que a Irlanda está em revolta; é verdade que, se o duque de Leicester se arriscava a visitar o seu ducado da Irlanda, receberia, sem tardar, quatro lindas balas no crânio. E o resultado? D'aqui a vinte anos os trabalhadores de Leicester estarão de novo a sofrer a fome e o frio—e o filho do duque de Leicester, duque ele mesmo então, voltará a arrecadar os seus quatrocentos contos por ano.
Não é possivel mudar. O esforço humano consegue, quando muito, converter um proletariado faminto n'uma burguesia farta; mas surge logo das entranhas da sociedade um proletariado pior. Jesus tinha razão: haverá sempre pobres entre nós. D'onde se prova que esta humanidade é o maior erro que jamais Deus cometeu. 
Bom, e logo que a burguesia é tocada pela superioridade aristocrata, mais se incomoda com a ociosidade e deficiência proletária, justificando assim em contraponto de falsete as virtudes do sucesso burguês. 
Os escravos romanos, passados a servos medievais, passados a trabalhadores industriais, e agora a colaboradores de empresas, numa sucessão de eufemismos sarcásticos, não poderiam esperar mais dos burgueses, habitantes dos novos burgos, do que antes esperavam os aldeões dos habitantes das velhas vilas, ou seja, dos então chamados vilões.

Entre vários, oferece ao cosmos ser especialmente digno de nota este parágrafo de Eça
Aqui estamos sobre este globo há doze mil anos a girar fastidiosamente em torno do Sol e sem adiantar um metro na famosa estrada do progresso e da perfectibilidade: porque só algum ingénuo de província é que ainda considera progresso a invenção ociosa d'esses bonecos pueris que se chamam máquinas, engenhos, locomotivas, etc., e essas prosas laboriosas e difusas que se denominam sistemas sociais.
Nos dois ou três primeiros mil anos de existência trepámos a uma certa altura de civilização; mas depois temos vindo rolando para baixo n'uma cambalhota secular.
Certamente que Eça não refere estes 12 000 anos de humanidade descuidadamente, e como pessoa informada das mais recentes conclusões científicas, no final do Séc. XIX remete um início humano para aquilo a que se identifica hoje como sendo a "época glaciar".
Mas é ainda mais misterioso, e arruma um grande progresso inicial nos primeiros milénios, sendo certo que nenhuma grande civilização era publicamente reportada entre 10 000 e 7 000 a.C. 
Portanto, a que outra civilização ocultada se estaria ele a referir?
Ao jeito da época, a sua referência ariana seguinte vai fazer escola -  "O tipo secular e doméstico de uma aldeia Arya do Himalaia, tal como uma vetusta tradição o tem trazido até nos, é infinitamente mais perfeito que o nosso organismo domestico e social."

Encontramos aqui um certo deslumbre romântico por uma cultura indo-europeia, imaginada a um expoente superior, especialmente pelo movimento nazi alemão, que se quis herdeiro de tal manifestação, se não real na História, pelo menos de influência real nas histórias que alimentaram a mitologia nazi. 
Assim, numa certa ilusão de ordem que se propõe para superar o caos, mas que a ele é impotente, Eça manifesta um profundo descontentamento pela espécie humana:
(...) o servo, o escravo, essa miséria da Antiguidade, não era mais desgraçado que o proletário moderno.
De facto, pode-se dizer que o homem nem sequer é superior ao seu venerável pai - o macaco: excepto em duas coisas temerosas - o sofrimento moral e o sofrimento social.
Deus tem só uma medida a tomar com esta humanidade inútil: afogal-a n'um diluvio. Mas afogal-a toda, sem repetir a fatal indulgencia que o levou a poupar Noé; se não fosse o egoísmo senil d'esse patriarca borracho, que queria continuar a viver, para continuar a beber, nós hoje gozaríamos a felicidade inefável de não sermos...
E talvez o Natal acabe por ser uma época muito propícia a esse descontentamento social.
Toda a parte positiva é vista, na sua ausência, como uma parte negativa.
A tradição que celebra o aconchego familiar torna-se dolorosa para os desprovidos ou isolados. 
Sempre que a sociedade exulta demasiado certas virtudes, tende a esquecer que penaliza implicitamente um desvirtuosismo pela sua ausência. A instabilidade social nunca se manifesta pela diferença, manifesta-se pela acumulação exagerada da diferença. Pior, não é o estabelecimento da diferença que fere, é a ideia de que é o indivíduo que faz a diferença, é a ideia de culpabilizar o indivíduo pela impotência de mudar o seu fado que é mais perversa. No entanto, apesar de ser educado no sentido contrário, o indivíduo tem uma forma simples de lidar com a sua impotência - assumi-la. Pretender iludir potência, em especial sobre coisas onde há manifesta impotência, é uma simples roleta... as águas que não se controlam tão depressa podem fazer emergir em euforias, como submergir em depressões. A luz do cometa é vista por todos, mas só alguns têm a pretensão de que o podem cavalgar sem se queimar.