Alvor-Silves

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

César, Kaisers e Czares

Poucos personagens tiveram uma influência tão marcante na História Mundial quanto Júlio César, a ponto do título máximo que se usou em nações germânicas (Kaiser) e eslavas (Czar ou Tsar) ser uma derivação directa e assumida do seu nome... para mais, usada em territórios externos ao domínio de Roma. 
A tentativa mais conhecida de imitar a designação imperial cesariana foi feita por Carlos Magno, mas o epíteto Carolus teve um sucesso reduzido, e apenas nalguns países eslavos (Kralj ou Krol como título de rei).

Júlio César chamava-se, tal como o pai e o avô, Gaius Julius Caesar, sendo que os Julius Caesar faziam assim parte da família patrícia Julia, a "gente Julia" ou "gens Julia". Esta gente Julia era latina do laço Lácio, que tinha a cidade de Alba Longa, conhecida pelo templo a Jupiter Latiaris (ou seja, Júpiter Latino). 
O prefixo "Ju" é comum a Júpiter (Ju-pater) e aos Jú-lia... 
Antes da completa identificação com os deuses gregos, o panteão principal romano tinha uma trindade arcaica - Jupiter, Marte e Quirino
Júpiter sendo deus dos céus, seria também um "deus da chuva", notando que Chove é foneticamente idêntico a Jove (nome alternativo de Jupiter).

Júlio César invocava ainda a sua ligação a Vénus, e no apogeu da sua fama acabou por se ver deificado na combinação de uma trindade a seu gosto - Venus Genetrix, Divus Iulius, e Clementia Caesaris, que o sucessor Octávio Augusto tratou de acomodar de forma interessante:
Divus Iulius, Divi filius, e Genius Augusti
... basicamente - "deus pai, deus filho, e geração augusta". Portanto, aproveitando o mito do pai adoptivo, manteve o "deus Júlio", acrescentou a noção de "deus filho" - que seria o próprio Octávio, e finalmente acrescentou uma terceira divindade dedicada à "gente Augusta", já que aqui o sentido de génio é ainda o da geração da gente, e não tanto o espiritual, da geração de ideias.

Factor decisivo para a consagração do estatuto divino de Júlio César foi o aparecimento de um dos cometas mais brilhantes da antiguidade, também denominado "Estrela de César", exactamente enquanto se procediam às exéquias após o seu assassinato em 44 a.C.
com Caesar Augusto, o filho, e o cometa, a estrela do pai, Divino Júlio.

O estatuto divino de Júlio César foi definitivamente consagrado quando em 40 a.C. Marco António se tornou flamen Divu Iulius, ou seja, primeiro sacerdote do culto a Júlio César. Por razões políticas, Octávio e Marco António procuravam ser protagonistas do mito de César, e alimentaram-no, apesar da rivalidade que terminaria com a morte de Marco António, Cleópatra e Cesarião (o seu filho com César).

O legado divino do par Júlio e Augusto acabou ainda por ficar inscrito nos meses que ainda hoje usamos - Julho e Agosto. Os restantes meses estão associados a outras divindades - Janeiro a Jano, Fevereiro a Febo, Março a Marte, Maio a Maia, Junho a Juno... e quanto a Abril foi considerado por Ovídio estar ligado a Vénus, na forma de Aphrodite, perdendo aqui o h, para um Aprilis. Há ainda a possibilidade funcional de significar um "Abrir do ano", já que 1 de Abril serviria esse propósito e a mudança é ainda hoje vista como o "dia da mentira".

De qualquer forma, ainda que Camões nos indique que os deuses "todos foram de fraca carne humana", apenas os casos de Júlio César e Augusto são os mais evidentes nesse processo. 
Por exemplo, os sete dias da semana eram associados aos 7 principais astros visíveis: 
- ao Sol (Sunday), à Lua (Monday, Lunes, Lundi), a Marte (Martes, Mardi), 
- a Mercúrio (Miercoles, Mercredi), a Jupiter-Jove... Thor (Jueves, Jeudi ... Thursday)
- a Vénus (Viernes), a Saturno (Saturday)

Na trindade de Augusto, a associação entre pai e filho é espiritual, já que Octávio era sobrinho-neto de Júlio César, e a afiliação foi feita por adopção para marcar o início da dinastia juliana, quebrando com a longa tradição republicana. 
À trindade acresce o aparecimento estelar do cometa, que foi considerado o mais brilhante da antiguidade, e que antecede em poucos anos o mito cristão da Estrela de Belém.

Há assim semelhanças que não são negligenciáveis, e acresce a persistência ibérica, e sobretudo portuguesa, em usar o calendário de Augusto, a Era Hispânica, ao invés do Anno Domini, algo que se manteve até 1422.

César e Octávio na Hispania
A Hispania parece ter insistido num calendário juliano de JC (Júlio César) ao invés de JC (Jesus Cristo), marcado por Augusto em declaração de 38 a.C. 
O estabelecimento oficial do Anno Domini foi promovido por Carlos Magno que marcou a sua sagração imperial para coincidir em 800 e apesar de ser depois considerado o nascimento de Cristo em 4 a.C., tal nunca afectou a data escolhida por Carlos Magno. 
Esta influência de Carlos Magno chegou tardiamente à Hispania porque os exércitos carolíngios tombaram em Roncesvalles, não concretizando a invasão.
Assim o anacronismo não foi desfeito pelas armas, mas sim por acordo posterior, que no caso português só chegou em 1422.

A influência de Júlio César na Hispania é conhecida em dois momentos, primeiro enquanto questor e pretor da República Romana, ainda antes das suas expedições na Gália, depois na perseguição aos filhos de Pompeu, que termina na Batalha de Munda. É reportada a ambição de César quando em Gades (Cadiz) comparou os seus pequenos feitos comparados com os de Alexandre Magno, ali celebrado.
A sua incursão pela Lusitania terá sido fulcral, tendo conseguido vitórias sobre os exércitos lusitanos que permitiram uma incursão romana até Lisboa e o estabelecimento de uma paz com as populações locais.
Assim aparecem três cidades portuguesas associadas a Júlio César:
- Pax Julia (Beja), Felicitas Julia (Lisboa), Liberalis Julia (Évora)
Isto indica que a sua progressão foi alcançada pela zona alentejana - onde a fortaleza de Juromenha também foi associada a Julio-mania. A partir dessa altura César aparece com uma riqueza surpreendente em ouro, que lhe permite conduzir legiões quase em nome pessoal... e tal pode ser entendido como fruto do Tagus Aureo.

Convém notar que a Hispania romana só incluiu toda a península ibérica com Augusto.
Mesmo após Viriato as regiões lusitanas e galegas continuaram fora do domínio romano. Seria apenas com Decimus Junius Brutus (avô do Brutus que também esfaqueou César), que haveria uma transposição do rio Lima, e uma entrada para além do esquecimento do Lethes. 
Mapa da evolução do estabelecimento romano na Ibéria, 
notando a última zona de resistência galaica.

Essa foi uma "entrada à Bruto", onde se reportaram suicídios colectivos em populações que evitavam a escravatura romana. As populações ibéricas resistiram sucessivamente contra a presença romana, aproveitando isso Sertório a ponto de unir o território contra Roma. 
Brutus (avô) foi denominado Calaicus porque a sua entrada além do Lima já era considerada em território Galaico. O termo Calaico viria de Cale, ou seja do Porto, conforme diz Annete Meakin no seu "Galicia, Switzerland of Spain":
Mela and others thought, on the other hand, that the term Calaicos was derived from the name of a town called Cale. Florez says that it is certain, from the writings of Sallust, that there once existed a town of the name of Cale to the north of the Duero, and that at the mouth of that river there was a Portus Cale, from which the name of Portugal is derived;
Algo muito diferente foi feito por Júlio César, que preservava os acordos de paz, a sua Pax Julia que depois passou a Pax Romana... aliás a escolha de Clementia Caesaris para divindade, estava relacionada com a postura de clemência que César pretendia ter perante os derrotados (não se parece aqui incluir o episódio do piratas que o raptaram e que ele depois mandou crucificar).
Nesse aspecto de apaziguamento é crucial a Lei Júlia de 90 a.C., introduzida por Lucius Julius Caesar, depois da Guerra Social que exigira um tratamento igual a todos os cidadãos da península italiana - algo que depois se iria estender a todo o Império Romano.
Assim, a estratégia de César na península foi integrar os novos territórios como iguais na pax romana, dando-lhes rapidamente o estatuto de municípios romanos. Em vez da confrontação há uma sedução, em vez de uma guerra constante com uma enorme potência militar, havia a hipótese de a integrar em igualdade com as restantes regiões... algo que acabou por reduzir a resistência.

A última resistência dos povos galaicos terminou com algumas vitórias locais em 39 a.C. de Octávio Augusto, que solidificou esse domínio a norte com algumas cidades agustinas que substituiriam a importância do porto Cale, nomeadamente Bracara Augusta, que foi sede de convento galaico, tal como Lugo e Astorga foram sedes de conventos. A Lusitania seria dominada por Emerita Augusta, que de "Emerita" passou simplesmente a "Mérida", tendo depois outros dois conventos (em Beja e Santarém).
Assim, a grande estratégia romana, que permitiu a uma única cidade, Roma, emergir num grande império estável acabou por ser a forma de integrar as suas conquistas numa política de igualdade com os restantes territórios, algo exigido na Guerra Social pelos aliados italianos de Roma, e que primeiro César e especialmente Augusto acabaram por implementar em larga escala, na sua Pax Augusta. Esse ideal de governação centralizado num poder quase divino do imperador que serve como garante de paz, acabou por ser modelo seguinte para os impérios de kaisers ou czares.
Foi sobre um Império Romano, pacificado por pai e filho adoptivo, que o cristianismo encontrou as vias de comunicação da sua expansão, sendo Roma e não Jerusalém o centro de onde continuaram a fluir as ordens divinas seguintes.

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Alvo de Maia (Volume 0, e 1 nº1)

A publicação PDF dos textos do blog continua muito atrasada, porque é coisa que demora algum tempo e não é especialmente algo muito motivante.

Por agora coloco aqui os links para o Volume 0, ou seja os primeiros textos que escrevi em Dezembro de 2009. Fico com a sensação que demorei menos tempo a escrevê-los do que a compilá-los neste formato...

Quanto aos textos de 2010, espero colocá-los rapidamente, começando com os textos publicados entre Janeiro e Maio de 2010, que fazem o Volume 1.


Até agora, só o ano de 2011 está completo, com os seus 8 números, fica aqui o link para essoutros:


quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Besouro

Pode ler-se, no Archivo Popular (de 6 de Agosto de 1842):
É por certo para lamentar, que não haja sido possível descobrir a chave para a inteligência dos hieróglifos, que acompanham estas exumações egípcias. Consta que os sábios do Egipto usavam de três métodos de comunicação, a epistolográfica ou vulgar; a hierática ou sagrada; e a hieroglífica ou misteriosa. Alguns antiquários nestes dois últimos séculos procuraram decifrar estes hieroglíficos, especialmente um literato francês, Champollion; mas depois de ter desperdiçado muitos anos em procurar desentranhar estes misticismos, morreu de enfado por não o poder conseguir. Outro francês pretendeu ultimamente ter encontrado uma chave para descobrir o sentido daqueles escritos por meio das iniciais de alguns nomes antigos da língua egípcia, porém é já certo que a sua descoberta reduz-se a algumas inscrições em que havia maior probabilidade de as decifrar, sendo em geral falhas de exactidão. A destruição da Biblioteca de Alexandria contribuiu sem dúvida para envolver nas trevas a literatura egípcia; e até os primeiros filósofos gregos e romanos, que viajaram naquele país, berço de todos os conhecimentos intelectuais, não nos comunicaram noticia alguma do estilo hieroglífico usado naquelas academias.
Ou seja, antes das Revoluções de 1848 que varreram a Europa, parecia haver um consenso de que não tinha sido possível decifrar a linguagem hieroglífica. O artigo refere explicitamente Champollion, que é considerado hoje como aquele que conseguiu decifrar os hieróglifos, usando a Pedra de Roseta:
A Pedra de Roseta, com inscrições hieroglíficas 
e uma provável tradução em grego, foi usada para decifração.

A pedra de Roseta ficou tão famosa que também serviu de nome a uma sonda espacial que foi anunciado agora ter atingido um cometa (ver artigo da Euronews)
(não se encontram imagens reais)

Sobre toda a filmografia e enredo das novelas espaciais uso normalmente o blog Odemaia, aqui deixo apenas a interrogação sobre Champollion, e o seu famoso decifrar dos hieróglifos. Em 1842, alguns anos após a sua morte, tal estava muito longe de ser minimamente reconhecido, como foi peremptoriamente afirmado no Archivo Popular (publicação muito credível à época).
Essa dúvida, sobre a validade das traduções dos hieróglifos e da escrita cuneiforme, já a tínhamos aqui levantado, sem conhecer este texto.
Este texto surgiu por mero acaso... pelo caso do momento. Como já não publicava aqui há algum tempo, e quis ligar ao caso BES, pensei no bes-ouro, ou seja no besouro. Há coisa de uma hora atrás procurei nestes textos do Séc. XIX se havia algo escrito sobre os besouros egípcios. Neste texto do Archivo Popular dizia-se então sobre a mumificação:
Algumas vezes pintavam sobre o peito um escaravelho, insecto que em suas ideias alegóricas significava regeneração; outras vezes um ídolo como símbolo da fé que o defunto havia professado.
A regeneração aparecia assim no ciclo solar. Desaparecia um Sol ao anoitecer e depois reaparecia ao amanhecer, movimento que era visto ser simulado nos Besouros se encarregavam de empurrar os dejectos em forma de pequenas bolas.
Mas, o mais interessante não eram os besouros, era a Roseta - e não a sonda que tinha feito notícia ontem por atingir um cometa - mas sim a pedra que afinal não tinha convencido ninguém sobre a decifração dos hieróglifos, nem o próprio Champollion.

Portanto, e como já afirmei aqui, continuo a usar como fontes passadas principais as traduções do latim e do grego, e não outras linguagens supostamente decifradas. Interpretações há muitas, e até eu sem perceber patavina de hieróglifos posso fazer uma e ser tão consistente com ela, como são os outros que usam e abusam de várias interpretações, ditas oficiais.

O outro ponto importante, bem frisado no Archivo Popular, é que apesar de romanos e gregos terem sido perfeitamente contemporâneos da civilização egípcia, nada restou que pudesse esclarecer a tradução. Só este facto por si seria suficientemente estranho para podermos ver o tipo de selecção cuidada do que foi permitido guardar da Antiguidade. Aparentemente, os escribas árabes e os monges europeus, tão entretidos no seu copismo, esqueceram-se de transportar esse conhecimento. Azar... ou parece que é azar, e há de facto quem tenha a chave e se entretenha a validar traduções aqui e ali, conforme aprouver à narrativa.