Na obra "Portugal e os Estrangeiros", de Manoel Bernardes Branco (1879), encontramos um relato de uma troca de cartas entre o humanista italiano Angelo Policiano (1454-1494) e El-Rey D. João II... (a tradução do latim é de Teófilo Braga):
De Angelo Policiano a D. João II
Angelo Policiano a D. João por graça de Deus rei invictissimo de Portugal e dos Algarves, d'aquém e d'além mar em África e senhor de Guiné, saúde !
Comquanto nem a minha condição nem o meu saber nem merecimento algum meu sejam tais que eu julgue ser-me lícito escrever-vos, rei invicto, todavia a vossa grandeza, lustre e glória, os vossos louvores, espalhados já por toda a terra, têm-me assombrado de modo que, de si mesma, a própria pena arde em desejos de apresentar-vos letras minhas, atestar-vos os meus sentimentos, exprimir-vos a minha simpatia e, finalmente, render-vos graças em nome de todos quantos pertencemos a este século, o qual agora, por favor dos vossos méritos quasi-divinos, ousa já denodadamente competir com os vetustos séculos e com toda a antiguidade.
De feito, se a brevidade de uma carta ou a consideração do tempo o consentira, a mesma verdade me dera ousadia para que tentasse mostrar que nem lauréis nem dourados carros de nenhum antigo herói podem ser comparados às vossas glórias e imortais feitos.
Sim: — deixando atraz os combates que, ainda em tenros anos, empenhastes contra os povos Ímpios da insofrida Africa, os poderosíssimos exércitos de inimigos apartados uns dos outros que derrotaste, as praças que rendeste, as prêas que fizeste, as leis que impuseste a nações barbaras e indómitas, passando não menos em silêncio os brazões pacíficos, que não cederiam a palma às glórias guerreiras, — que grandioso e vasto quadro de proezas apenas acreditáveis se me não oferecia, se eu fosse comemorar as vagas do túmido e soberbo oceano, antes intactas e sem carreira aberta, provocadas e quebrantadas pelos vossos lenhos, as balizas de Hércules desprezadas, o mundo que havia sido mutilado, restituído a si mesmo, e aquela Barbaria, d'antes nem por vagas notícias de nós assaz conhecida, selvagem, feroz, vivendo sem organização regular, sem figura de lei, sem religião, quasi ao modo de brutos animais, agora trazida à policia humana, à brandura de trato, suavidade de costumes e, até, aos sentimentos religiosos!
Que lugar tão azado não teria eu então para recontar os preciosos benefícios que os habitantes do nosso continente d'ali receberam, os abundantes recursos que de lá vieram para nos melhorar e opulentar a existência, o engrandecimento que até à história antiga coube, a fé que adquiriram antigas narrativas que outr'ora escassamente se podiam acreditar; e, por outro lado, a quebra que tiveram na admiração? Então haveria eu também de absolver de toda a suspeita de falsidade o grande Platão e os annaes seculares do Egipto, que, sem prestarem crédito, fizeram menção d'esse Oceano por ti subjugado com poderosos exércitos.
De maneira que também confessaria que razão teve Alexandre de Macedónia em se amesquinhar lamentando que ainda restassem outros mundos às suas vitórias.
Na verdade que outra coisa nos fizestes vós, preclaro príncipe, senão — achar seria expressão inadequada — trazer de trevas eternas e, quasi diria, do antigo caos, para a luz que nos ilumina, outras terras, outro mar, outros mandos e, em cabo, outros astros?
— Mas a que fim veio espraiar-me agora n'este assunto?
Foi para vos rogar em nome não só do presente século, senão também de toda a posteridade e de todos os povos, que não sofrais que de tão sublimes obras feneça ou se perca a memória que deve ser eternizada, mas antes ordeneis lhe alce um padrão a voz dos varões doutos, à qual nem o dente roedor do tempo no seu curso silencioso vale a consumir.
E, se dais favor ao merecimento, porque não o haveis de dar à glória, companheira do merecimento? E se ganhais por mão a todos os monarcas em generosidade de brios e grandeza de ânimo, esta vida humana tão breve, tão instável, que de tão escassas e minguadas esperanças depende em tão angustiados limites é estreitada, porque a não haveis de prolongar com a carreira imortal de inacessível glória?
Por que não há-de a memória de feitos grandiosos transmitir-se aos vossos successores mesmos, para que essas illustres façanhas que jamais encontrarão segundas, lhes aproveitem servindo-lhes também de ensinamento e norma?
Porque não haveis de deixar um como typo a vossos filhos e futuros netos, para que nenhum degenére jamais da perene e abonada virtude dos seus maiores e a tenham diante dos olhos como traslado para se lhes formar o caracter e educar o coração segundo a príncipes convém?
Finalmente porque não hão-de também os outros reis que nascerem sob os desvairados climas do mundo, haver de vós, senão que imitar, ao menos que admirar?
Ora fazer extremadas proezas e não lhes dar realce e luz com as letras o mesmo vale que procriar filhos de peregrina gentileza e não lhes dar sustentação. Não aconteça, não, rei excelso, que essas vossas glorias, tão credoras da imortalidade fiquem escondidas n'aquele vasto acervo da nossa fragilidade, em que jazem sepultados os trabalhos de todos quantos não houveram os sufrágios dos varões de saber prestante.
Acordai-vos de Alexandre, acordai-vos de César, os dois nomes principais que a fastosa antiguidade nos alardeia. De um, assaz memorada é a exclamação que soltou ao pé do túmulo de Aquiles, chamando afortunado ao mancebo por ter encontrado em Homero o pregoeiro das suas glorias. O segundo, ainda quando estava apercebido para travar combate, e quasi que até no meio do estrondo das pugnas, com tal esmero compunha as memórias dos seus feitos, que nenhuma obra a crítica julga por tão bem trabalhada que a puríssima elegância d'aquele autor lhe não leve a palma.
A estes, logo, vós deveis, ao menos imitar, a estes a quem nos outros respeitos desmesuradamente vos avantajais. O que vos acabo de dizer, compreendereis que é a expressão da verdade e não a linguagem da adulação, quando para vós mesmo volverdes os olhos da vossa inteligência soberana e tiverdes atentamente examinado os formosos títulos da vossa glória, magestade e poderio, e considerado reflectidamente a que fastígio estais subido nas cousas humanas.
De feito, ver-vos-eis rei da Lusitânia, isto é (para resumir em uma palavra o que entendo), de um povo de romanos de que outr'ora numerosas colónias, segundo a história refere, se achavam disseminadas n'esta região mais do que em nenhuma outra. Vereis em vós o libertador da Africa, essa terceira divisão do orbe, que desde já, pelos vossos esforços, solta dos ferros dos bárbaros, exulta cada vez mais com a esperança de completa liberdade. Vereis em vós também o domador d'aquelle vasto e indignado oceano, a cujos primeiros embates o mesmo Hércules, o subjugador do mundo, enfiou.
Reconhecereis em vós o defensor da santa fé cristã e da verdadeira religião, e o mais potente arbitro da paz e da guerra contra a perfídia de Mahomé, alagando só com a vossa magestade, aquela pestilencial fúria e acabando as guerras mais consideráveis só com o terror do vosso nome, só com a maravilha do vosso valor. E ao mesmo tempo, senhor das chaves de um novo mundo, como que abrangeis em um punhado os seus numerosos golfos e os promontórios e as praias e as ilhas e os portos e as praças e as cidades à beira-mar, e quasi tendes nas vossas mãos nações inúmeras, aonde, contudo, nem a própria fama com as suas azas tão velozes havia até então chegado.
E quão grandioso não é ver os reis mais ignotos arderem em desejos de vos visitar, venerar as vossas pisadas, e correrem açodados a ajoelhar aos vossos pés e a receberem à porfia das vossas mãos tão poderosas pela fé como pelas armas as águas purificadoras do baptismo?! e ver, espertados pelo amor de uma virtude jamais ouvida dos antigos séculos, os habitantes dos mais apartados confins da terra acudirem apinhados à vossa presença, e já todo o meio-dia, arrancado do fundo das suas moradas, dar-se pressa a correr venerabundo ante vós, para de mais perto contemplar esse semblante celestial, a auréola de gloria que vos adorna a régia fronte, essa magestade, fiel transumpto da divina?!
Com tais grandezas venha alguém pôr em parallelo a tomada de Babilónia, bem que ufana dos seus muros de tijolo, a rota dos bárbaros do oriente, já do próprio natural tão fugazes! Venha pôr em parallelo a provocação, não muito esforçada das iras do Scytha nómada, vagando por dilatadas campinas, contanto que não lance também à conta de louvor o assassinato, em meio dos festins, dos mais caros amigos, nem a adopção de estrangeiros costumes e desdourosas adulações! Ponha em parallelo também o vencimento das Gálias a custo subjugadas ao cabo de dez annos, ou outros feitos inferiores a este contanto que não tenha encómios para o sangue de concidadãos e parentes barbaramente vertido por todo o orbe!
— Assim que, rei sem par, vós sobre todos (estoure embora a inveja), vós sobre todos sois digno de eternas honras. A vós, primeiro do que a ninguém, devem de ser consagradas as nossas vigílias, quero dizer, as de todos quantos somos sacerdotes das Musas. Por tal razão (se, homem desconhecido, mas a vós mui dedicado, encontro alguma fé junto à vossa pessoa), seja incumbido, eu vos conjuro, a sujeitos idóneos o encargo de pôr em memória (sem duvida que interinamente), em qualquer língua, em qualquer estilo o assunto tão ubertoso dos feitos praticados por vós e pelos vossos, obra que, mais tarde, tanto os outros em quem ferve o mesmo entusiasmo, como também nós mesmos, envidando todas as forças, hajamos de polir e aperfeiçoar. Na verdade, pedi, não há muito, a estes súbditos vossos que estão aqui, mancebos de subido talento e elevado carácter, os filhos de Teixeira, vosso Chanceller-mór, que por sua intervenção me fossem aí copiadas as memórias (se é que existem) dos vossos feitos: prometeram eles desempenhar-se cuidadosamente no encargo em respeito da obrigação que devem ao seu preceptor; todavia não quiz eu faltar a mim próprio, mas assentei de vos endereçar eu mesmo esta carta, rei mui indulgente e clemente, a quem já posso dar também o nome de meu, querendo antes poder ser arguido de arrojado, se escrevesse, do que de apoucado de ânimo, se me conservasse silencioso.
— No que respeita a minha pessoa, não é, certo, ordinária a minha condição, mas, na profissão das letras, também alguns crêem que não é de todo inferior a minha reputação. Quasi de menino fui ou criado (e porventura que esta circunstância virá a propósito) no seio da honesta família d'aquele varão illustre, o primeiro personagem na sua tão florente república, Lourenço de Medícis. Não cedendo a ninguém em dedicação à vossa pessoa, soube ele, falando-me de vós, acender em mim entusiasmo tão ardente pelos vossos merecimentos, que dia e noite eu não largo de pensar no pregão dos vossos feitos, e o mais fervoroso voto que eu agora faço é que mo seja outorgada força, poder e finalmente ensejo, para que o vosso nome tão digno de divinos elogios, os testemunhos da vossa piedade, integridade, rectidão, temperança, prudência, juízo, os da vossa justiça, fortaleza, providência, liberalidade e grandeza de alma, e enfim os de tantas obras, tantas e tão exímias façanhas vossas, tenham monumentos fiéis levantados, ainda que seja por mim, na lingua latina ou grega, de modo que não haja vicissitude de humanos acontecimentos, nem assalto da varia e inconstante fortuna nem vetustade de séculos que valha a extingui-los.
Resposta de D. João II
D. João por graça de Deus, rei de Portugal e dos Algarves, d'áquem e d'além mar em África, e senhor de Guiné, ao mui douto varão e prezado amigo, Angelo Policiano, saúde !
A vossa agradável carta, que já há muito li, e, sobretudo o que amiudadas vezes nos tem referido o nosso querido Chanceller-mór João Teixeira, me deu cabal conhecimento de quanto vos interessa a nossa glória (se em cousas humanas alguma existe) e quanto desejais salvar do olvido com as vossas letras o nosso nome e feitos. Tal vontade, ainda que é uma prova assaz clara de entranhado afecto e summa deferência, todavia parece-nos que nasce ainda mais da bondade do vosso coração, da agudeza de engenho e da copia de saber, que miram a alvo mais remontado.
Assim que nos sentimos grandemente penhorados de vós, e, quando o tempo e as circunstâncias o demandarem, testemunharemos mais amplamente o nosso agradecimento, esperando que não hajais de vos arrepender da afeição que nos dedicais. Respondendo em breves termos ao assunto da vossa carta, dir-vos-emos que somos gratos sobremaneira ao oferecimento que tão frequentemente nos fazeis dos vossos serviços e affectuosa diligencia para nos alcançardes a imortalidade, e estimamo-lo. E para pôr em efeito o intento, teremos todo o cuidado de ordenar que a nossa crónica, que, seguindo o uso do nosso reino, mandamos escrever era língua vernácula, seja composta no idioma toscano ou pelo menos no latim comum, enviando-vo-la depois, o mais depressa que ser possa, para que vós, sem vos afastardes do caminho da verdade, assegurando a nossa memória, a adorneis com as graças e gravidade do vosso estilo e com a vossa erudição, e a aperfeiçoeis de forma que, ao menos com o auxílio da vossa eloquência, se torne digna de ser lida.
Com efeito, muito releva (e melhor o sabeis) o estilo em que é recontado cada feito, embora ilustre. Porquanto, assim como a experiência mostra que as comidas melhores de natureza, se houve menos asseio em as guisar, são avisadamente engeitadas, assim a história, se lhe falecem as devidas galas e donaire próprio, havemo-la por sem mérito e merecedora de que a enjeitem.
Defeitos d'esta ordem, porém, não há que receá-los, se fordes vós, sujeito de tão subidas partes e tão versado em todas as boas letras, quem haja de tomar a peito a história dos nossos feitos. Esta é pois a nossa intenção. Resta, Angelo amigo, que aos filhos do nosso Chanceller-mór, fidalgos da nossa casa, consagreis os maiores disvelos. Sem duvida que a vossa bondade não havia mister recomendação para assim o fazerdes espontaneamente, contudo, encarecidamente vos rogamos que por nosso respeito tenha ainda algum aumento vosso zelo. E na verdade a eles deveis toda a gratidão, porque o pai e os filhos, aquele com os louvores, estes com os testemunhos provadíssimos do vosso saber, não cessam de vos exaltar, falando-nos de vós, e de fazer chegar até estes confins da terra, a fama do vosso nome, o que não faz pouco era prole da vossa glória e reputação. Mas aos próprios mancebos nós damos os emboras, por lhes ter cabido o viver em tempo em que da fonte abundante da vossa ciência possam beber alguma instrução, para que, servindo primeiro a Deus, e depois a nós, hajam de merecer e conquistar tanto a bem-aventurança celeste, como a terrestre.
De Lisboa, aos 23 dias do mês de Outubro de 1491.