Alvor-Silves

domingo, 25 de abril de 2010

Tagus Aureo

Juvenal, Decimus Iunius Iuvenalis (~60-127) nas suas Sátiras menciona por duas vezes o Rio Tejo...

Ah! Let not all the sands of the shaded Tagus, and the gold which it rolls into the sea, be so precious in your eyes that you should lose your sleep, and accept gifts, to your sorrow, which you must one day lay down, and be for ever a terror to your mighty friend!
Juvenal (Sátira 3)

The man for whose desires yesterday not all the gold which Tagus and the ruddy Pactolus rolls along would have sufficed, must now content himself with a rag to cover his cold and nakedness, and a poor morsel of food, while he begs for pennies as a shipwrecked mariner, and supports himself by a painted storm!

Juvenal (Sátira 14)


Portanto, concluímos desta pequena referência que no Séc.I/II era do comum conhecimento romano que o sítio que forneceria a maior parte do ouro que chegava a Roma, vinha essencialmente do Rio Tagus. César foi quaestor da Lusitânia, e parte do seu sucesso está ligado às moedas de ouro com que pagava às suas legiões...

Não é completamente clara a referência de Juvenal ao "ouro que rola" pelo "sombrio Tejo", parecendo já querer aludir a algum mistério. Sobre o "ruivo" Rio Pactolus, apurei que seria na Lídia... região já por si também sombria, e que como tal uma boa parte de "regiões sombrias" foram sempre situadas na Ásia Menor. Nessa península turca, couberam muitos reinos poderosos, muitas vezes contemporaneamente, sem que se percebesse o que delimitaria fisicamente as suas fronteiras e como se processaria a sua convivência.

É num mundo contraído por uma História reescrita, que encontramos também demasiadas semelhanças de nomes.

À força de querer limitar as navegações gregas a paragens próximas, nomes como Iberia ou Albania, aparecem associados a reinos do Cáucaso, próximos de uma Cólquida, no Mar Negro, associada à viagem do intrépido Jasão e dos Argonautas.
Não será porém de considerar que esse Mar Negro, o Pontus Euxinus, não foi renomeado pela escuridão medieval que se associou ao Oceano Atlântico... e que a viagem de Jasão foi para além do Estreito de Dardanelos, servindo como alias do Estreito de Gibraltar.

Afinal não será natural que o Rei Dardanus (filho de Zeus e Electra, neto de Atlas) tenha casado com Batea (associando-a à Baetia, região romana do Guadalquivir ~ Baetis Fluvius)?
Isto coloca-nos na zona de Tróia....

Mas, afinal, não será natural que Olissipos-Lisboa, derive de Ulisses por alguma razão?
Seria assim justificável o nome de Tróia para a península... que sempre teve esse nome.
Setúbal, antiga cidade do Rei Túbal teria talvez sido a antiga Tróia, após o Dardanelos?
O Rio Sado, era pelo Romanos denominado Calipos Fluvius. Não será também de associar esse nome à ninfa Calipso, filha de Atlas, que reteve Ulisses por 7 anos? Qual seria a ilha... uma ilha onde há uma Orquídea cuja variedade se chama Calipso?

Por que razão limitar as grandes navegações gregas à Asia Menor?
Se Duarte Pacheco Pereira cita Estrabão, e diz que Menelau, marido de Helena de Tróia, contornou toda a África, por onde teria andado Ulisses que mereceu de Homero um poema muito maior, uma Odisseia?

Teria Ulisses ficado perdido num Mar Mediterrâneo que os Gregos conheciam tão bem, ou terá Ulisses ficado perdido no grande Oceano Atlântico?... quiçá, no meio de sereias que os portugueses voltaram a encontrar!
Se as ilhas gregas estavam mais distantes entre si do que Micenas estava da Tróia na Anatólia, faria sentido embarcarem todos numa longa viagem, que afinal era tão próxima? Não faria mais sentido que essa viagem visasse uma distante Tróia, situada após o Mar Mediterrâneo?

Será demasiado nacionalismo?... há falta de objectividade, ou depois de um Tejo Mahalay, teremos agora uma Helena de Tróia, raptada por um Páris setubalense...

É difícil distinguir as influências, mas seguindo esta linha, aparece ainda como consistente a ideia de Poliziano - Roma enquanto colónia Lusitana... É que segundo Virgílio, Afrodite terá sugerido a Eneias partir de Tróia, e fazer reviver a glória de Tróia numa outra parte... em Roma.

É nesta parte difícil distinguir o aproveitamento da lenda para interesse próprio... os portugueses do Séc. XV podem ter descoberto documentos nesta linha, ou podem ter seguido a linha de reescrever a história a seu belo prazer, associando alguns nomes convenientemente!

terça-feira, 20 de abril de 2010

Navegações islandesas

O mapa seguinte (obtido aqui) reporta as navegações de Nicolo Zeno e Antonio Zeno, à Islândia e Gronelândia, no final do Séc. XIV, mais concretamente em 1380.
O carta deve ser italiana (mesmo muito posterior à descrição do neto Catarino Zeno, provavelmente do Séc. XVII), mas reporta-se a essas viagens anteriores, conforme se vê na legenda superior do mapa:

É interessante saber que os italianos chamavam Tramontana à parte Ártica. Neste caso o meridiano zero passaria ao largo da Escócia, pela Irlanda e pela costa portuguesa.

Outros nomes relevantes:

  • habituais: Grolandia, Islanda, Norvegia, Svecia, Gocia, Dania, Scocia;
  • menos habituais: Engronelant, Estotiland, Drogeo, Icaria, Frisland;

Candido Costa, em 1896, relata uma versão dos descobrimentos medievais da América, em muito referindo-se à tese do antiquário Carl Christian Rafn (1795-1864):

Em 861 a Islândia terá sido descoberta por um pirata norueguês que a denominou "Sneeland", a que se seguiu um outro, de nome Floko que lhe deu o nome actual. Candido Costa não deixa de anotar que os piratas escandinavos visitariam a Gronelândia desde o Séc. VI.

Em 863 há ainda relato de uma viagem à Islândia de Gardar, normando de origem sueca. Logo de seguida, em 868, alguns aristocratas descontentes com o reinado do rei Harald da Noruega terão decidido formar governo na Islândia, sob regência de Ingolf. Em 928 a colónia florescia, e a partir da Islândia em 982, Eric "o Ruivo" estabelece uma outra colónia na Gronelândia.

Em 985, Bjorn Hieriolfson terá navegado nas costas da América e comunicado isso ao filho de Eric, que ficou conhecido como Leif Ericson. A viagem de Leif é colocada em 1001, estabelecendo colónias em Helleland (Terra Pedregosa), Markland (Terra de Mato) e Vinland (Terra do Vinho), a primeira das quais Candido Costa associa à Terra Nova, e as seguintes a partes do continente americano.

O sucessor de Leif é apontado como Thorfinn Harbefeue, que se casou na Gronelândia e teve um filho, já na América, em 1008, de nome Snorr. Desse Snorr descenderiam os bispos da Islândia: Thorlak, Bjoern e Brand.

Para confirmar esta presença, pelo menos na Gronelândia, C. Rafn apontou uma pedra rúnica descoberta por Pelinut em 1824, a 73ºN de latitude, que diria:

Erling Sigvalson, Bjorn Hordeson e Endride Addon, sábado antes de Gagnday (25 de Abril), levantaram este montam de pedras e limparam este lugar no ano de 1135.

Ou seja, estamos em latitudes acima do Estreito de Davis (1587), na Baía de Baffin (1616), com a diferença de 500 anos. As dificuldades surgidas 500 anos depois podem estar relacionadas com um "arrefecimento global" do planeta, que tornou impraticáveis viagens a latitudes tão elevadas. E este apontamento tem alguma relevância para as concepções actuais de "aquecimento global".

Acrescenta Candido Costa que a igreja de Hamburgo já reconheceria em 834 a Gronelândia, havendo mesmo menção numa Breve de Gregorio IV, papa em 827. Em 1383 chegou notícia de ter falecido 6 anos antes um bispo de terras americanas. Houve notícia em 1121 de um bispo Eric ter sido transportado da Gronelândia para Vinland, para conversão dos compatriotas que ainda seriam pagãos. Mesmo em 1443 o Papa Eugénio IV terá designado um bispo para a Gronelândia, e esse conhecimento é confirmado na Bula Exinjuncto de Nicolao V.

A reportada a viagem à Islândia e Gronelândia, dos irmãos Antonio e Nicolao Zeno, conforme o mapa, em 1380, em serviço de um princípe das Ilhas Faroé, passa assim por novidade apenas nalgumas latitudes.

Em 1418 a Gronelândia sofre uma invasão e destruição completa da colónia. Isso é atribuído a um Princípe Zichmni (que alguns associam a um Conde de Orkney, Henry Sinclair, pretensamente templário... o nome parecerá mais árabe).

Há ainda a lenda do princípe de Gales, Madoc, que teria viajado com a sua corte para a América, no Séc. XII, e uma eventual relação linguistica com índios brancos, que falavam uma língua que estaria entre o Galês e o Português, de acordo com os primeiros colonos...

Mas talvez a parte mais interessante no trabalho de Candido Costa é ele centrar o seu trabalho na data da descoberta do Brasil (22 de Abril, corrigido pelo calendário a 3 de Maio). Apenas como trabalho de rodapé surge toda a restante descrição histórica... diz assim:

"Além do que fica exposto, este livro contém elementos que comprovam o conhecimento que tinham da América antigos povos do Oriente e da Europa, antes que Colombo houvesse aventurado à empresa da qual resultou a sua maior glória. Nesse contexto não se revela a forma elevada dos que se abalançaram com a filosofia da história a tornar sumptuoso e aprimorado o assunto, que descrevo pela rama, sem fitar as altitudes a que os mais competentes possam atingir. (...) Não entro tão pouco nos complicados meandros da lei geral da evolução para formar o conjunto de apreciações filosóficas, até à época do grande acontecimento pelo qual se tornou conhecido definitivamente o continente americano."

domingo, 18 de abril de 2010

Jerusalem no Livro de Marinharia

Na sequência de resposta anterior, coloco aqui Jerusalém no Mapa do Livro da Marinharia (João de Lisboa, m. 1525)




O Livro de Marinharia é uma fonte de surpresas...


No detalhe do mapa podemos ver Jerusalém com as "5 quinas" como bandeira...
(e no mapa geral podemos ver uma possível localização do Lago Vitória, nascente do Nilo)

Nem se trata de caso isolado, há outros mapas, de fonte diversa, como o Mapa de Cantino, que evidenciam bandeiras cristãs em Jerusalém (há também em Jaffa - actualmente Tel Aviv), e por todo o Mar Vermelho.

Jerusalém. O domínio do Mar Vermelho, Mar Pérsico, e da Península Arábica é efectivo no tempo de Afonso de Albuquerque, que conquista Suez, junto ao Sinai. Invencível, em 1515, ameaça a conquista de Meca para em troca do corpo do Profeta Maomé, obter as cidades santas. Nesse mesmo ano, é urgentemente substituído por Lopo Soares de Albergaria... Consta oficialmente que o "César do Oriente" terá então morrido, "combalido com o desgoto".

- Poderá ter acontecido que Jerusalém não precisasse de ser conquistada? Que a prerrogativa de paz/guerra que D. João II tinha auferido, e que Poliziano menciona, lhe permitisse ter o acesso de Jerusalém, a troco do acesso dos muçulmanos a Meca?...

Afonso de Albuquerque terá feito demasiadas conquistas em pouco tempo... Talvez seja por isso que D. Manuel irá insistir com o filho, Brás de Albuquerque, para que adopte o nome do pai, e assim lhe sejam tardiamente assacadas parte daquelas conquistas extemporâneas. Porém, o filho não terá aceite! No pequeno tempo de luzes posterior, com D. Sebastião, consegue uma publicação corrigida das cartas do pai.

Lago Vitória. Apesar de oficialmente o interior de África não ter sido explorado nesta altura, etc, etc... podemos ver neste mapa uma localização razoável para o Lago Vitória, enquanto nascente do Nilo, onde até se notam ilhas internas ao lago.

Tejo Mahalay. Após o post anterior, recebi uma mensagem [de Knight-Templar], assinalando que se discutia que o monumento "mais belo do mundo" teria efectivamente o nome do Rio Tejo.
De facto, pode-se seguir uma discussão corrente num fórum da BBC.... gerada por um livro de 1965 de Shri P. N. Oak, que o associa a um Templo de Shiva, hindú. No entanto, julgo que ninguém procurou associar nada à presença portuguesa. Terá sido obra dos "senhores de Agra"...
Parece ninguém estranhar o facto de Agra ter sido fundada (ou refundada) em 1504... numa altura em que Francisco de Almeida era Vice-Rei da Índia. Francisco de Almeida que dizia justamente ser melhor política colocar/apoiar "marajás colaborantes", do que andar permanentemente em guerra.
Terá sido isto a continuidade da política de paz, de D. João II, que tanto Poliziano elogiava?
Acras. Não será também estranho haver:
  • Acra (Terra Santa),
  • ..... e surgirem na transição de 1500:
  • Accra (África, perto da Fortaleza da Mina), e
  • Agra (na Índia)...
A bandeira portuguesa alternou entre 7 e 8 castelos, durante os reinados de D. João II/D. Manuel. As arquitecturas octogonais estão presentes na Charola do Convento de Cristo (de origem no início templário), na Cúpula da Rocha em Jerusalém, e também de forma mais discreta no tal "Tejo Mahalay", conforme parece que os senhores de Agra lhe chamavam:

Tejo Mahalay
... que tal como uma estória camoniana, ficou imortalizado como um monumento ao amor.

domingo, 11 de abril de 2010

Correspondência de D. João II

Na obra "Portugal e os Estrangeiros", de Manoel Bernardes Branco (1879), encontramos um relato de uma troca de cartas entre o humanista italiano Angelo Policiano (1454-1494) e El-Rey D. João II... (a tradução do latim é de Teófilo Braga):


De Angelo Policiano a D. João II

Angelo Policiano a D. João por graça de Deus rei invictissimo de Portugal e dos Algarves, d'aquém e d'além mar em África e senhor de Guiné, saúde !

Comquanto nem a minha condição nem o meu saber nem merecimento algum meu sejam tais que eu julgue ser-me lícito escrever-vos, rei invicto, todavia a vossa grandeza, lustre e glória, os vossos louvores, espalhados já por toda a terra, têm-me assombrado de modo que, de si mesma, a própria pena arde em desejos de apresentar-vos letras minhas, atestar-vos os meus sentimentos, exprimir-vos a minha simpatia e, finalmente, render-vos graças em nome de todos quantos pertencemos a este século, o qual agora, por favor dos vossos méritos quasi-divinos, ousa já denodadamente competir com os vetustos séculos e com toda a antiguidade.

De feito, se a brevidade de uma carta ou a consideração do tempo o consentira, a mesma verdade me dera ousadia para que tentasse mostrar que nem lauréis nem dourados carros de nenhum antigo herói podem ser comparados às vossas glórias e imortais feitos.
Sim: — deixando atraz os combates que, ainda em tenros anos, empenhastes contra os povos Ímpios da insofrida Africa, os poderosíssimos exércitos de inimigos apartados uns dos outros que derrotaste, as praças que rendeste, as prêas que fizeste, as leis que impuseste a nações barbaras e indómitas, passando não menos em silêncio os brazões pacíficos, que não cederiam a palma às glórias guerreiras, — que grandioso e vasto quadro de proezas apenas acreditáveis se me não oferecia, se eu fosse comemorar as vagas do túmido e soberbo oceano, antes intactas e sem carreira aberta, provocadas e quebrantadas pelos vossos lenhos, as balizas de Hércules desprezadas, o mundo que havia sido mutilado, restituído a si mesmo, e aquela Barbaria, d'antes nem por vagas notícias de nós assaz conhecida, selvagem, feroz, vivendo sem organização regular, sem figura de lei, sem religião, quasi ao modo de brutos animais, agora trazida à policia humana, à brandura de trato, suavidade de costumes e, até, aos sentimentos religiosos!

Que lugar tão azado não teria eu então para recontar os preciosos benefícios que os habitantes do nosso continente d'ali receberam, os abundantes recursos que de lá vieram para nos melhorar e opulentar a existência, o engrandecimento que até à história antiga coube, a fé que adquiriram antigas narrativas que outr'ora escassamente se podiam acreditar; e, por outro lado, a quebra que tiveram na admiração? Então haveria eu também de absolver de toda a suspeita de falsidade o grande Platão e os annaes seculares do Egipto, que, sem prestarem crédito, fizeram menção d'esse Oceano por ti subjugado com poderosos exércitos.

De maneira que também confessaria que razão teve Alexandre de Macedónia em se amesquinhar lamentando que ainda restassem outros mundos às suas vitórias.
Na verdade que outra coisa nos fizestes vós, preclaro príncipe, senão — achar seria expressão inadequada — trazer de trevas eternas e, quasi diria, do antigo caos, para a luz que nos ilumina, outras terras, outro mar, outros mandos e, em cabo, outros astros?
— Mas a que fim veio espraiar-me agora n'este assunto?
Foi para vos rogar em nome não só do presente século, senão também de toda a posteridade e de todos os povos, que não sofrais que de tão sublimes obras feneça ou se perca a memória que deve ser eternizada, mas antes ordeneis lhe alce um padrão a voz dos varões doutos, à qual nem o dente roedor do tempo no seu curso silencioso vale a consumir.
E, se dais favor ao merecimento, porque não o haveis de dar à glória, companheira do merecimento? E se ganhais por mão a todos os monarcas em generosidade de brios e grandeza de ânimo, esta vida humana tão breve, tão instável, que de tão escassas e minguadas esperanças depende em tão angustiados limites é estreitada, porque a não haveis de prolongar com a carreira imortal de inacessível glória?

Por que não há-de a memória de feitos grandiosos transmitir-se aos vossos successores mesmos, para que essas illustres façanhas que jamais encontrarão segundas, lhes aproveitem servindo-lhes também de ensinamento e norma?
Porque não haveis de deixar um como typo a vossos filhos e futuros netos, para que nenhum degenére jamais da perene e abonada virtude dos seus maiores e a tenham diante dos olhos como traslado para se lhes formar o caracter e educar o coração segundo a príncipes convém?
Finalmente porque não hão-de também os outros reis que nascerem sob os desvairados climas do mundo, haver de vós, senão que imitar, ao menos que admirar?
Ora fazer extremadas proezas e não lhes dar realce e luz com as letras o mesmo vale que procriar filhos de peregrina gentileza e não lhes dar sustentação. Não aconteça, não, rei excelso, que essas vossas glorias, tão credoras da imortalidade fiquem escondidas n'aquele vasto acervo da nossa fragilidade, em que jazem sepultados os trabalhos de todos quantos não houveram os sufrágios dos varões de saber prestante.
Acordai-vos de Alexandre, acordai-vos de César, os dois nomes principais que a fastosa antiguidade nos alardeia. De um, assaz memorada é a exclamação que soltou ao pé do túmulo de Aquiles, chamando afortunado ao mancebo por ter encontrado em Homero o pregoeiro das suas glorias. O segundo, ainda quando estava apercebido para travar combate, e quasi que até no meio do estrondo das pugnas, com tal esmero compunha as memórias dos seus feitos, que nenhuma obra a crítica julga por tão bem trabalhada que a puríssima elegância d'aquele autor lhe não leve a palma.
A estes, logo, vós deveis, ao menos imitar, a estes a quem nos outros respeitos desmesuradamente vos avantajais. O que vos acabo de dizer, compreendereis que é a expressão da verdade e não a linguagem da adulação, quando para vós mesmo volverdes os olhos da vossa inteligência soberana e tiverdes atentamente examinado os formosos títulos da vossa glória, magestade e poderio, e considerado reflectidamente a que fastígio estais subido nas cousas humanas.

De feito, ver-vos-eis rei da Lusitânia, isto é (para resumir em uma palavra o que entendo), de um povo de romanos de que outr'ora numerosas colónias, segundo a história refere, se achavam disseminadas n'esta região mais do que em nenhuma outra. Vereis em vós o libertador da Africa, essa terceira divisão do orbe, que desde já, pelos vossos esforços, solta dos ferros dos bárbaros, exulta cada vez mais com a esperança de completa liberdade. Vereis em vós também o domador d'aquelle vasto e indignado oceano, a cujos primeiros embates o mesmo Hércules, o subjugador do mundo, enfiou.

Reconhecereis em vós o defensor da santa fé cristã e da verdadeira religião, e o mais potente arbitro da paz e da guerra contra a perfídia de Mahomé, alagando só com a vossa magestade, aquela pestilencial fúria e acabando as guerras mais consideráveis só com o terror do vosso nome, só com a maravilha do vosso valor. E ao mesmo tempo, senhor das chaves de um novo mundo, como que abrangeis em um punhado os seus numerosos golfos e os promontórios e as praias e as ilhas e os portos e as praças e as cidades à beira-mar, e quasi tendes nas vossas mãos nações inúmeras, aonde, contudo, nem a própria fama com as suas azas tão velozes havia até então chegado.
E quão grandioso não é ver os reis mais ignotos arderem em desejos de vos visitar, venerar as vossas pisadas, e correrem açodados a ajoelhar aos vossos pés e a receberem à porfia das vossas mãos tão poderosas pela fé como pelas armas as águas purificadoras do baptismo?! e ver, espertados pelo amor de uma virtude jamais ouvida dos antigos séculos, os habitantes dos mais apartados confins da terra acudirem apinhados à vossa presença, e já todo o meio-dia, arrancado do fundo das suas moradas, dar-se pressa a correr venerabundo ante vós, para de mais perto contemplar esse semblante celestial, a auréola de gloria que vos adorna a régia fronte, essa magestade, fiel transumpto da divina?!

Com tais grandezas venha alguém pôr em parallelo a tomada de Babilónia, bem que ufana dos seus muros de tijolo, a rota dos bárbaros do oriente, já do próprio natural tão fugazes! Venha pôr em parallelo a provocação, não muito esforçada das iras do Scytha nómada, vagando por dilatadas campinas, contanto que não lance também à conta de louvor o assassinato, em meio dos festins, dos mais caros amigos, nem a adopção de estrangeiros costumes e desdourosas adulações! Ponha em parallelo também o vencimento das Gálias a custo subjugadas ao cabo de dez annos, ou outros feitos inferiores a este contanto que não tenha encómios para o sangue de concidadãos e parentes barbaramente vertido por todo o orbe!
— Assim que, rei sem par, vós sobre todos (estoure embora a inveja), vós sobre todos sois digno de eternas honras. A vós, primeiro do que a ninguém, devem de ser consagradas as nossas vigílias, quero dizer, as de todos quantos somos sacerdotes das Musas. Por tal razão (se, homem desconhecido, mas a vós mui dedicado, encontro alguma fé junto à vossa pessoa), seja incumbido, eu vos conjuro, a sujeitos idóneos o encargo de pôr em memória (sem duvida que interinamente), em qualquer língua, em qualquer estilo o assunto tão ubertoso dos feitos praticados por vós e pelos vossos, obra que, mais tarde, tanto os outros em quem ferve o mesmo entusiasmo, como também nós mesmos, envidando todas as forças, hajamos de polir e aperfeiçoar. Na verdade, pedi, não há muito, a estes súbditos vossos que estão aqui, mancebos de subido talento e elevado carácter, os filhos de Teixeira, vosso Chanceller-mór, que por sua intervenção me fossem aí copiadas as memórias (se é que existem) dos vossos feitos: prometeram eles desempenhar-se cuidadosamente no encargo em respeito da obrigação que devem ao seu preceptor; todavia não quiz eu faltar a mim próprio, mas assentei de vos endereçar eu mesmo esta carta, rei mui indulgente e clemente, a quem já posso dar também o nome de meu, querendo antes poder ser arguido de arrojado, se escrevesse, do que de apoucado de ânimo, se me conservasse silencioso.

— No que respeita a minha pessoa, não é, certo, ordinária a minha condição, mas, na profissão das letras, também alguns crêem que não é de todo inferior a minha reputação. Quasi de menino fui ou criado (e porventura que esta circunstância virá a propósito) no seio da honesta família d'aquele varão illustre, o primeiro personagem na sua tão florente república, Lourenço de Medícis. Não cedendo a ninguém em dedicação à vossa pessoa, soube ele, falando-me de vós, acender em mim entusiasmo tão ardente pelos vossos merecimentos, que dia e noite eu não largo de pensar no pregão dos vossos feitos, e o mais fervoroso voto que eu agora faço é que mo seja outorgada força, poder e finalmente ensejo, para que o vosso nome tão digno de divinos elogios, os testemunhos da vossa piedade, integridade, rectidão, temperança, prudência, juízo, os da vossa justiça, fortaleza, providência, liberalidade e grandeza de alma, e enfim os de tantas obras, tantas e tão exímias façanhas vossas, tenham monumentos fiéis levantados, ainda que seja por mim, na lingua latina ou grega, de modo que não haja vicissitude de humanos acontecimentos, nem assalto da varia e inconstante fortuna nem vetustade de séculos que valha a extingui-los.

Resposta de D. João II
D. João por graça de Deus, rei de Portugal e dos Algarves, d'áquem e d'além mar em África, e senhor de Guiné, ao mui douto varão e prezado amigo, Angelo Policiano, saúde !

A vossa agradável carta, que já há muito li, e, sobretudo o que amiudadas vezes nos tem referido o nosso querido Chanceller-mór João Teixeira, me deu cabal conhecimento de quanto vos interessa a nossa glória (se em cousas humanas alguma existe) e quanto desejais salvar do olvido com as vossas letras o nosso nome e feitos. Tal vontade, ainda que é uma prova assaz clara de entranhado afecto e summa deferência, todavia parece-nos que nasce ainda mais da bondade do vosso coração, da agudeza de engenho e da copia de saber, que miram a alvo mais remontado.

Assim que nos sentimos grandemente penhorados de vós, e, quando o tempo e as circunstâncias o demandarem, testemunharemos mais amplamente o nosso agradecimento, esperando que não hajais de vos arrepender da afeição que nos dedicais. Respondendo em breves termos ao assunto da vossa carta, dir-vos-emos que somos gratos sobremaneira ao oferecimento que tão frequentemente nos fazeis dos vossos serviços e affectuosa diligencia para nos alcançardes a imortalidade, e estimamo-lo. E para pôr em efeito o intento, teremos todo o cuidado de ordenar que a nossa crónica, que, seguindo o uso do nosso reino, mandamos escrever era língua vernácula, seja composta no idioma toscano ou pelo menos no latim comum, enviando-vo-la depois, o mais depressa que ser possa, para que vós, sem vos afastardes do caminho da verdade, assegurando a nossa memória, a adorneis com as graças e gravidade do vosso estilo e com a vossa erudição, e a aperfeiçoeis de forma que, ao menos com o auxílio da vossa eloquência, se torne digna de ser lida.
Com efeito, muito releva (e melhor o sabeis) o estilo em que é recontado cada feito, embora ilustre. Porquanto, assim como a experiência mostra que as comidas melhores de natureza, se houve menos asseio em as guisar, são avisadamente engeitadas, assim a história, se lhe falecem as devidas galas e donaire próprio, havemo-la por sem mérito e merecedora de que a enjeitem.

Defeitos d'esta ordem, porém, não há que receá-los, se fordes vós, sujeito de tão subidas partes e tão versado em todas as boas letras, quem haja de tomar a peito a história dos nossos feitos. Esta é pois a nossa intenção. Resta, Angelo amigo, que aos filhos do nosso Chanceller-mór, fidalgos da nossa casa, consagreis os maiores disvelos. Sem duvida que a vossa bondade não havia mister recomendação para assim o fazerdes espontaneamente, contudo, encarecidamente vos rogamos que por nosso respeito tenha ainda algum aumento vosso zelo. E na verdade a eles deveis toda a gratidão, porque o pai e os filhos, aquele com os louvores, estes com os testemunhos provadíssimos do vosso saber, não cessam de vos exaltar, falando-nos de vós, e de fazer chegar até estes confins da terra, a fama do vosso nome, o que não faz pouco era prole da vossa glória e reputação. Mas aos próprios mancebos nós damos os emboras, por lhes ter cabido o viver em tempo em que da fonte abundante da vossa ciência possam beber alguma instrução, para que, servindo primeiro a Deus, e depois a nós, hajam de merecer e conquistar tanto a bem-aventurança celeste, como a terrestre.

De Lisboa, aos 23 dias do mês de Outubro de 1491.