domingo, 16 de agosto de 2015

O Carmo e a Trindade (2)

É bem sabido que a morte do Rei D. José correspondeu ao fim político do Marquês de Pombal.
Uma parte do clero rodeara a filha do rei, D. Maria I, e esta nunca teria perdoado ao Marquês a bárbara execução dos Távoras, procurando recompor a velha sociedade da destruição pombalina...
Desse período que se seguiu, encontrei um manuscrito "comemorativo" da morte do ditador (1782), extremamente satírico, revelando o sentimento odioso que uma parte da sociedade, especialmente a ligada à antiga nobreza, lhe dedicava:

Textos, predominantemente satíricos e jocosos, 
contra o Marquês de Pombal e a sua política.


São muitas páginas manuscritas, nem sempre de fácil transliteração, e escolhi este trecho satírico (o autor é desconhecido), por se incluir algumas críticas específicas e não o simples ataque pessoal - que faz o prazer dos cortesãos.
Ao Hiperbólico, Fantástico, Extravagante, Antidevoto, Antideista, Sebastião José de Carvalho,
Primeiro-Ministro, e Marquês do Pombal, D. Quixote dos Ministros do Estado, Sublime Engenheiro de Castelos de Vento, Legislador de vacatelas [bagatelas], Autor de Leis Enigmáticas, Inimitável criador de palavras gigantescas, Único descobridor da pedra filosofal, Defensor em voz, Destruidor na ré, Virtuoso nas palavras, Vicioso nas obras, Abundante de projecto, Falto de execuções, Restaurador quimérico das letras, Real perseguidor dos sábios, Protector aparente do comércio, Arruinador verdadeiro da lavoura, Povoador dos cárceres, Despovoador dos campos, Grande dentro, Pequeno fora, Richelieu na vingança, Mazarin na ambição, Nas virtudes, nem um nem outro, Agradecido por sistema, Ingrato por natureza, Digno para vizir de um príncipe maometano, Indigno par ministro de um príncipe cristão. 
O Povo Português, Sumamente agradecido à sua odiosa memóriaPelo haver governado com ceptro de ferro, Por ter armado uma parte dos seus cidadãos contra a outra parte, Por ter enriquecido o particular, empobrecendo o público, Por ter aniquilado a antiga nobreza, e levantando outra de nova invenção, Por ter acrescentado o número dos processos, como a censura multidão de informes leis, Por ter enriquecido a língua, com uma prodigiosa cópia de palavras exóticas, e insignificantes, Por outros muitos favores, que deve à sua liberal e prodigiosa mão, Mandou levantar este mausoléu, construído de ossos de inumeráveis homens vítimas do seu bárbaro, cruel e sanguinário génio, amassados com lágrimas: De tantas desamparadas viúvas, De tantas arruinadas donzelas, De tantos órfãos pupilos, Cujo servirá de memória indelével à posteridade, depois de fielmente se ter dado a execução, o seu bem justo, como abominável testamento e última vontade, bem conforme à sua depravada vida, por ele feito na forma seguinte (...)
Bom, e a sátira prossegue, não com muito sucesso humorístico ou literário, inventando um "Testamento secreto" que começava por
Sebastião 2º, isto é 2º carrasco, e primeiro Nero português. Monstro de todas as maldades, inimigo comum da Pátria (...)
Interessa aqui notar que, apesar de todo este rancor, raramente se encontra algo de objectivo que contrarie as versões oficiais e oficializadas. Ou seja, se procuramos elementos mais contundentes sobre a fabricação dos estragos do terramoto, a única coisa que se vê sistematicamente é o epíteto de "Nero".
Isto seria a forma mais simples de o ligar aos incêndios, que destruíram Lisboa depois do terramoto, mas não encontrámos nada de mais específico, nesse sentido. Para além disso, quando Camilo Castelo Branco reduziu o epíteto a "Nero da Trafaria", ligou-o mais ao episódio macabro do incêndio levado a cabo por Pina Manique, a mando do Marquês, contra os aldeões da Trafaria.

O facto do documento ser manuscrito e não impresso, parece um detalhe, mas normalmente mostra que os donos das Impressoras lisboetas não estariam tão disponíveis para certos trabalhos, neste caso contra a memória do Marquês.
Há imensos textos que nunca passaram a caracteres de impressora. Por acaso, não é o que acontece com esta parte, que é até citada numa tese de doutoramento da Georgia University (Belinda Sauter, 2005, pág. 44)... mas é o caso de muitas outras.
Apesar de haver muita mão de obra disponível, muita gente com muito tempo, com jeito e com pouco que fazer, estes textos permanecem na sua forma original... e já é uma "certa sorte" que a Biblioteca Nacional os tenha tirado do pó, e pelo menos os tenha digitalizado e lhes tenha dado acesso público (... sendo um mistério a razão que leva alguns a estar em "acesso privado").

Por outro lado, convém notar que se os adeptos da Igreja portuguesa tinham razões de satisfação com o afastamento do Marquês, passados 50 anos sofreriam um ataque ainda mais forte, aquando das revoluções liberais e extinção das ordens religiosas. Grande parte do espólio e documentação constante de grandes conventos foi abandonado ao vandalismo público, para depois ser comprado por coleccionadores privados, em boa parte, estrangeiros.

Conforme é dito no poema sarcástico, apareceram rapidamente duas aristocracias, algo semelhante ao que ocorreria depois com Napoleão. Uma aristocracia "imperial" saída da bonapartismo, e a antiga aristocracia real. A experiência maçónica com o Marquês foi depois repetida com Napoleão, praticamente nos mesmos termos, mas com as diferenças de dimensão dos personagens, dos estados, etc. Ambos tiveram uma rápida ascensão, grande propaganda, e uma rápida queda.
A própria experiência com o Marquês não era inovadora, pois o primeiro sucesso "revolucionário", no sentido de mudar a aristocracia, tinha ocorrido com Cromwell, na guerra civil inglesa.
O grande incêndio no terramoto de Lisboa tinha tido um precedente igualmente devastador no Grande Incêndio de Londres de 1666.

Curiosamente, em 1662, na sua chegada a Inglaterra, Catarina de Bragança foi acompanhada por Edward Montagu, 1º Conde de Sandwich, anterior embaixador em Portugal, que favoreceu o casamento com Charles II. Isto é apenas "curioso", porque já falámos aqui de Cook e de outro Sandwich, (descendente deste), a propósito da Inglaterra se ter afiambrado com o domínio do Pacífico, entre a América e a Ásia, por via do cozinhado de Sandwich com a viagem de Cook.

Ao mesmo tempo que Cook abria novo ovo de Colombo, e descobria praticamente tudo o que havia por descobrir, isto ainda em época do Marquês de Pombal, começava também a Revolução Americana, que levou à criação da primeira república moderna, por um punhado de maçons.

Pouco interessa hoje a planta quadriculada da Baixa de Lisboa do Marquês, é muito mais polémico o desenho de Washington. Curiosamente, Washington está praticamente à mesma latitude de Lisboa (digamos, a Casa Branca está à latitude de Alfarrobeira), e foi desenhada de raiz seguindo os planos de Pierre L'Enfant, por indicações de Washington e Jefferson (todos eles maçons).

Avenidas Novas
Esta propaganda sistemática à intervenção do Marquês em Lisboa, faz uma parte da população crer que esse planeamento incluía algumas das Avenidas Novas, até à zona da rotunda, pelo menos.
Porém, a sua influência foi apenas na Baixa Lisboeta, do Rossio até ao rio. Muitos empreiteiros em Portugal tiveram empreendimentos à escala pombalina (com maiores dificuldades burocráticas nas expropriações, do que certamente Pombal após o terramoto).

A grande expansão da cidade de Lisboa deu-se apenas quase 100 anos depois, no final do Séc. XIX com o planeamento do Eng. Ressano Garcia. Esse sim, definiu a estrutura arterial de circulação que Lisboa ainda tem hoje, e que depois seria complementada com intervenção semelhante do Eng. Duarte Pacheco (já com Salazar).

Planta de Lisboa em 1909 - um ano antes da implantação da República... os nomes eram outros!
Este mapa de 1909 mostra a Avenida Ressano Garcia... um reconhecimento por parte do regime monárquico, mas que haveria de chamar-se depois Avenida da República, no ano seguinte, e assim o nome de Ressano Garcia foi suprimido, bem como outras dezenas de alterações.

É interessante a pressa na mudança de nomes, logo em reunião no dia seguinte:
Quinta-feira, 6 de Outubro de 1910 - Alterações na toponímia da cidade de Lisboa
Em Reunião na Câmara Municipal de Lisboa, presidida por Anselmo Braamcamp Freire, Nunes Loureiro apresenta uma proposta aprovada por aclamação. A Avenida Ressano Garcia passou a denominar-se Avenida da República e a Rua António Maria de Avelar passou a designar-se Avenida Cinco de Outubro. Uma semana depois são feitas novas alterações: a Rua Bela da Rainha passa a denominar-se Rua da Prata; a Avenida D. Amélia passa a Avenida Almirante Reis; a Rua D. Carlos I passa a chamar-se Avenida das Cortes; a Rua d'el-Rei passa a Rua do Comércio; a Avenida José Luciano passa a denominar-se Avenida Elias Garcia; a praça D. Fernando passa a praça Afonso de Albuquerque; a Avenida Hintze Ribeiro passa a Avenida Miguel Bombarda; a rua da Princesa a Rua dos Fanqueiros; a praça do Príncipe Real passa a praça Rio de Janeiro; o Paço da Rainha passa a largo da Escola do Exército.
Mas como já tratei do assunto da instauração republicana, interessa apenas como curiosidade o regime republicano ter poupado à borracha personagens como o Duque de Saldanha, Fontes Pereira de Melo, ou os Duques de Ávila, de Loulé, entre tantos outros. Por exemplo, a Avenida José Luciano passar a Elias Garcia entende-se, pois foi o primeiro Grão Mestre do Grande Oriente Lusitano... mas já se entende menos que a Rua Alfredo Keil tenha passado a Av. Júlio Dinis, até porque de Keil ficaria o hino nacional republicano. Se a Trindade passou a cervejaria, o Convento do Carmo manteve-se imperturbável nas suas altivas ruínas, 

O Marquês não foi o primeiro nem o último terraplanador de monumentos antigos. Da Muralha Fernandina, que circundou a cidade de Lisboa com 34 torres, não restou tijolo... apesar de muitas dessas torres terem resistido ao terramoto, algumas já tinham sido derrubadas antes, e uma boa parte foi derrubada depois. O que o terramoto não fez cair, outros abalos, de planeamento urbanístico, encarregaram-se do assunto... e não apenas por ordem do Marquês, já que várias foram demolidas no Séc. XIX. E, afinal, a estrutura mais provável de cair com um grande abalo - o Aqueduto das Águas Livres, foi uma das poucas grandes construções antigas a ser preservada.
Dessas antigas torres ficaram poucos nomes, associados às "portas", nomes que ainda assim ficaram na memória, e nas placas de algumas ruas, apesar dos nomes de ruas terem uma tendência natural.
É bastante ridículo, mas a generalidade dos nomes em ruas são de maçons. Parece que foi vendida uma certa promessa de eternidade, digamos uma menção "eterna"... pelo menos, até que seja revisto novo arruamento! Para clarificar ideias, pensemos nos nomes das ruas da cidade romana de Conimbriga, ou noutra cidade desaparecida, a uma simples distância "eterna" de dois milénios. O que lhes aconteceu? Este tipo de ilusões de destaque é de um gozo especial, de ridículo, como se cada maçã que comemos quisesse ser conhecida para a eternidade pela contribuição que deu para a alimentação da humanidade. Mas suponhamos, que sim, que cada registo individual ficava guardado no tempo. O que mostraria afinal, uma maçã limpa, ou uma maçã podre?

2 comentários:

  1. Palácio do Rei do Lixo (...) "Diz a vox populi que foi a sua vingança republicana sobre o regime monárquico, pousando no lugar dos antigos cortesãos lixo e porcos" http://www.ruralea.com/palacio-do-rei-do-lixo/

    Cpts.
    José Manuel CH-GE

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    1. O edifício e a história é de facto estranha.
      Por acaso é interessante o terreno ter pertencido a Pina Manique, já que este era também alvo das críticas do tal "Testamento fictício" do Marquês:

      Corregedores do Cível, e Crime, da mesma Casa e Corte
      Luis Rebello Quintella, isto é o Desembargador Comissário do Azeite e Peixe, Diogo Inácio da Pina Manique, isto é o Desembargador Quadrilheiro Mor dos Ladrões, sendo ele o primeiro
      (...)

      Outro que se incluía era o deu um Frei João de Mansilha:
      Esmoler Mor
      O grande Mansilha contratador dos Vinhos, e destruidor do Povo do Porto, Alto Douro e Minho, aquele indigno filho de um tão grande pai como é o nosso Patriarca S. Domigos


      ... e este é um apontamento que mostra que a política monopolista da Companhia do Vinho do Porto terá sido razão de bastante ruína dos agricultores.

      Obrigado pela informação.

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