quinta-feira, 13 de junho de 2013

Fernão de Oliveira (2)

Vamos fazer uma pequena mistura antigo-moderno neste texto.

Catedral de Salamanca
Muitos foram vendo na catedral espanhola a escultura de um astronauta, e isso ganhou algum espaço de divulgação, devido à internet, nos últimos anos:
Catedral de Salamanca - escultura de astronauta. (imagem)

O que isto tem de especial? Nada. Nada, porque descobre-se que afinal é habitual os escultores de catedrais espanholas colocarem astronautas, fotógrafos, dragões a comer gelados, telemóveis, etc...
Sim é verdade, mas a versão oficial diz-nos que não foram os escultores antigos... é fruto da inspiração artística dos restauradores modernos! A Igreja ou o Estado encomendam o restauro, e o sujeito pensa - não, vou mas é aqui colocar um astronauta (deve ser pelo efeito Axe, com um cheiro de sovaco diferente).

Depois alguém publica uma foto diferente... que tanto circula como sendo uma foto anterior (versão de que existia antes do restauro), como posterior (versão de que foi vandalizado o restauro - creio que correcta).
Por isso aparece uma terceira versão, que creio ser a actual, com um restauro mais grosseiro, substituindo a anterior cara por uma máscara, tirando a expressão dos olhos.

Curiosamente não encontrei fotos dessa parte da Catedral sem o astronauta, antes do restauro, algo que teria acontecido em 1992 (parece ser uma teoria lançada pela Wikipedia portuguesa), e vi muitas pessoas a queixarem-se do mesmo problema - ausência de fotos anteriores (ninguém fotografou antes de 1992?).
Num dos sites apresentam-se testemunhos de que o astronauta já estaria representado na catedral em 1970. Antes dos anos 1960 era natural que as pessoas nem soubessem o que era um astronauta, e por isso nem notavam nada de especial numa representação com aquele aspecto.

Há quem também possa ver referências a astronautas nas esculturas de Pensacola:
Seria possível que o "astronauta" da Catedral de Salamanca tivesse sido inspirado nas esculturas encontradas na América-Latina? 
Após 1960, pela sua parecença com os astronautas, talvez isso tivesse motivado a ideia de um restauro original... ou seja, substituir a imagem que se parecia com um astronauta por uma verdadeira representação de astronauta moderno. Isso seria uma solução para evitar polémicas - criando uma figura mais explícita eliminava-se a parecença. As imagens anteriores não teriam entretanto sido divulgadas porque afinal iriam revelar essa semelhança, não resolvendo o problema.

Isto é obviamente uma hipótese... outra hipótese será que qualquer dia se veja uma garrafa de Coca-Cola esculpida no túmulo de Camões, por inspiração dos restauradores. 
Finalmente, a outra hipótese é a de que a evolução da tecnologia pode não ter sido o que se pensa... e já assim dizia Fernão de Oliveira.

Artilharia de Fernão de Oliveira 
Fernão de Oliveira escreveu também uma "Arte da Guerra do Mar", em 1555.
Não, não encontramos na decoração do livro nada de estranho. Talvez se destaque uma Fénix que sempre renasce das cinzas, um poder que renasce sempre de todas revoluções... porque, enfim, parece que tem sido preciso "mudar para que nada mude". Esta "arte" de Fernão de Oliveira tinha sido "novamente escrita", agora "vista e admitida pelos senhores deputados da Santa Inquisição". Há uma parte rasgada, e a data de 1555 é confirmada no final.

Há mais uma vez muito material de interesse, começando por uma dissertação sobre a necessidade de manter guerra constante para não ser surpreendido em paz pela guerra alheia.
Passamos directamente à artilharia. Diz ele, na página XXV:
A invenção da artilharia, segundo dizem alguns, foi achada na Alemanha do ano de Cristo de c. 1380, mas a mim me parece que é mais antiga. Porque nós temos que os homens da Fenícia se defendiam de Alexandre Manho com tiros de fogo. E que as gentes de Russia pelejavam com pelouros de chumbo lançados de canos de metal com fogo de enxofre. E alguns filósofos que fizeram fogo artificial que voava, o que parece que fariam com os materiais de pólvora que se acostuma nas bombardas e arcabuzes. Finalmente a fábula de Prometeu, o qual dizem que quis imitar os trovões e coriscos de Jupiter, disto parece que teve seu fundamento, que no princípio da Grécia sendo ela rústica, Prometeu trouxe este artifício de tiros de fogo do exército de Jupiter, rei de Creta ou da África, o qual artifício os rústicos Gregos imaginaram ser trovões, como também cuidaram que os homens de cavalo eram monstros. Como quer que seja, a invenção da artilharia quer velha, quer nova, ela é mais danosa que proveitosa para a geração humana.
(clique na figura para aumentar)

Portanto temos aqui uma explícita referência à existência de armas de fogo, artilharia, desde o tempo dos Fenícios, contra Alexandre Magno (ele diz Manho), e que também era usada na Rússia (muitas vezes o nome aparece só Rusia ou ainda como Rufia...).
Se "tiros de fogo" pode ter alguma ambiguidade, saber que o cerco foi a Tiro, diz muito sobre o conceito de "tiro"... e depois não atirem mais nossa língua, com o objectivo de atirar para a tirar.

No caso russo a descrição é bastante completa, e não parece oferecer grandes dúvidas. Afinal, já é aceite a utilização de dispositivos explosivos na China, praticamente desde a Antiguidade. A sua utilização apenas para efeitos pirotécnicos seria uma limitação filosófica benigna, pouco realista dada a capacidade humana, e desumana, de transformar invenções positivas em armas negativas... conforme Fernão de Oliveira salienta no final.

A referência a um Júpiter rei de Creta (ou África, talvez Cyrene, Líbia, que seria ilha), é bem mais antiga, e tem muito maior ambiguidade interpretativa. Pode servir como pista para entendermos como um rei passou a ser associado a raios e coriscos, e depois a um deus de raios e trovões, pela utilização da artilharia.
Não deixa ainda de ser curioso Fernão de Oliveira dizer que os gregos primitivos entendiam os cavaleiros como um conjunto monstruoso... sendo natural que daí tivesse surgido a noção de Centauro

Lembramos que também é dito que os cavaleiros espanhóis foram vistos como um conjunto homem-cavalo pelos Incas.

No fundo...
O que hoje é associado a representações de "antigos astronautas" tem algo de moda passageira...
Podemos usar uma imagem meso-americana, que encontrámos, para ilustrar a questão:

Acontece que hoje pode ser habitual ver esta figura como um Astronauta... mas no Séc. XIX seria muito mais natural ver esta representação como um Escafandrista.
Escafandristas em 1873 (wikipedia)

Portanto, estas interpretações estão sujeitas às modas dos tempos... convenientemente confundidas.
Depois, é preciso rever um pouco da história do mergulho.
No fundo, chegamos mesmo aos Assírios, que nos ofereceram esta representação:
Representação de um mergulhador num friso Assírio (c. 900 a.C.)

Trata-se provavelmente de um Anedoto, do homem-bacalhau, de que já falámos... e aqui torna-se mais evidente como ele poderia desaparecer nos mares, parecendo um homem-peixe.
A imagem pode ser encontrada no US-Navy Diving Manual. Acrescenta-se aí que a origem do mergulho poderia ser remetida a 3000 a.C., há ainda a lenda de Scyllis e da filha Cyana, ao tempo de Xerxes.

Mas, ainda mais interessante, voltamos ao cerco de Alexandre "Manho" aos fenícios de Tiro, que usavam "tiros", a que se contrapunha a "manha" de mandar mergulhadores ao fundo do Porto de Tiro para remover os obstáculos, em 332 a.C.
Nesse manual encontra-se ainda uma figura de 1511, que ilustra a utilização de um tubo de respiração:
Ilustração de 1511, mostrando o uso de um tubo de respiração em mergulho.

Bom... e haverá quem possa ver no mergulhador uma cabeça com aspecto alienígena?
Talvez... porém, serviria para isolar a cabeça para a respiração.
Outras imagens que nos aparecem com aspecto alienígena são, por exemplo, estas:

Ora, fica mais ou menos evidente que o halo que envolve a cabeça também poderia ser visto como uma "representação de santidade".
Essa foi uma outra interpretação... mas nos tempos que correm nem sequer se pensa em santos, nem em capacetes de escafrandos, vai-se directamente para astronautas ou alienígenas.

Enfim... o que concluir?
- Não vou discutir a versão dos "restauradores brincalhões", até porque esse caminho é uma contradição com a noção de obra "restaurada", é mais uma visão de "rês tourada". Quando a cozinha aventar uma "restauração" com ares desses, acaba-se a credibilidade do serviço, entra-se no fast-food justificativo.
- Tenho dúvidas sobre a capacidade tecnológica dos Anedotos. Já percebemos que impressionavam as civilizações menos desenvolvidas com um aspecto estranho. Tanto poderiam ser homens-peixe, como homens-falcão, homens-crocodilo, etc... dependia do povo e da religião que quisessem impor. Pelo lado homem-peixe justificar-se-iam os acessórios de mergulho. Porém, creio que o mais importante seria protegerem o seu corpo... A última imagem indicia uma possível vestimenta imune a alguma flecha perdida, que os poderia vitimar. Assim, para não serem vítimas de ataques de populações hostis, ou de um atirador incauto, uma fatiota-armadura com um elmo de vidro espesso seria suficiente para lhes conferir um estatuto de imunidade, de divindade.
- Bom, e sobre os Anedotos mais não sei, mas como também percebemos, as Anedotas continuam...

14/06/2013

3 comentários:

  1. No site:
    http://humansarefree.com/2011/09/amazing-astronaut-carving-in-900-yo.html

    pode ler-se:

    Message from Marc, 27, Barcelona - Spain


    "Hi there, My name is Marc and I'm from Barcelona, Spain. I've been in Salamanca like a hundred times since I was a kid (I'm 27). The first time I visited Salamanca was definately before the Barcelona 1992 olympics, and I clearly remember how my father took me on his shoulders and showed me the astronaut carving. I've also asked to my mother-in-law about the carving, and she told me that she visited Salamanca in the 1970's and the carving was already there. So the Wikipedia "fact" seems to be a LIE."


    Procurei saber se, antes dos anos 1950, havia alguma indicação da Catedral de Salamanca ter um "escafandrista", mas sem sucesso. Também não consegui encontrar nem fotografias nem gravuras antigas.
    Faltam registos de Salamanca anteriores a 1992... eu por acaso creio que fui lá depois, e não tenho nenhuma foto da Catedral.

    No entanto, como se pode ver neste vídeo, trata-se de um local típico para tirar fotos:
    http://www.youtube.com/watch?v=06HHX1XoxPg

    A ideia de que a lei do património espanhol explicaria o assunto, conforme se diz neste programa de "mistérios" chileno:
    http://www.youtube.com/watch?v=frZsA4rXIqk

    ... encontra o abuso de se entender "dever identificar a alteração" com "esculpir algo completamente despropositado e inexistente".

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  2. A propósito das Esferas Negras que invadiram o céu da Suiça no Século XVI, e segundo testemunhos, combateram entre si, lembrei-me da "Tentação de Stº Antão" de Hierónymus Bosch, à vista, no Museu de Arte Antiga em Lisboa.

    Cpts

    Maria da Fonte

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    1. É muito bem observado, Maria da Fonte.
      Os painéis da Tentação da St. Antão (http://odemaia.blogspot.pt/2010/11/santo-antao.html)
      também são uma boa fonte de máquinas voadoras, barquinhos com velas e tudo!

      Isso lembra-me que já deveria ter actualizado há muito o post de St. Antão, por causa deste filme mosqueteiro:
      http://www.youtube.com/watch?v=-WvQ6XN7LiE
      ... que tem um Buckingham que controla os céus, com navios-balão voadores!

      Hollywood às vezes gosta de mostrar o que está escondido.
      Afinal deve ser frustrante fazer uma ilusão tão bem feita que quase ninguém topa que é ilusão!

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