sábado, 11 de junho de 2011

Campo Damasceno

No texto anterior mencionámos as citações de Carvalho da Costa a Camões, e na estrofe que se segue, ou seja, a 9ª do Canto III, aparece uma referência ao Campo Damasceno:
       Aqui dos Citas grande quantidade 
       Vivem, que antigamente grande guerra
       Tiveram, sobre a humana antiguidade, 
       Co'os que tinham então a Egípcia terra;
       Mas quem tão fora estava da verdade, 
       (Já que o juízo humano tanto erra)
       Para que do mais certo se informara, 
       Ao campo Damasceno o perguntara.

Começamos com a referência a uma grande guerra entre Citas e Egípcios...
A noção de Citas está ainda mais mal definida do que a de Celtas, servindo esta palavra para resolver com uma única designação um eventual grande grupo de tribos nómadas para além da Pérsia, e que se estenderia da Samárcia à Tartária.
No entanto isso não nos ajuda relativamente a esta "grande guerra" com os que tinham a terra egípcia... e a propósito do Campo Damasceno.

O que temos de mais próximo para se ajustar a tal menção será a Batalha de Kadesh entre Hititas e  o Egípto de Ramsés II. Atrevemos a sugerir isto porque a noção de "Hitita" é razoavelmente recente... na realidade só começou a fazer parte dos livros comuns de História no final do Século XX, apesar de hipóteses já colocadas no Séc. XIX. Ou seja, Camões, ou qualquer outro escritor até ao Séc. XIX nunca falaria de Hititas... os Hititas apareceram do nada, sem referências perceptíveis em textos antigos.
Batalha de Kadesh (Síria)

A situação é de tal forma surpreendente que, apesar da ausência de menção durante milénios, os Hititas renascem no Séc. XX como se sempre tivessem sido mencionados. São encontrados os documentos de relações diplomáticas com o Egipto e com os Gregos, o que vai levar rapidamente à descodificação da sua linguagem! Ao contrário do habitual, tudo corre sem grande polémica...
Para já não quero dizer mais nada sobre o assunto, apenas que é tão estranho os hititas terem estado fora da inspecção cuidadosa dos investigadores anteriores, como é estranho a súbita aceitação, mais uma vez na zona da Turquia - região que é um autêntico depósito de vestígios antigos. 
A existência de Hititas permitiu resolver uma lacuna de inexistência civilizacional nessas paragens na altura do Antigo Egipto, e deu assim consistência a muitos achados na Ásia Menor que não encaixavam nos períodos temporais posteriores.

Para o que interessa, podemos admitir que Camões se referia a esta guerra entre Hititas e Egípcios... ou melhor, com "quem tinha então o Egipto", algo que já tinha sido também mencionado no século anterior (Séc. XV) por Marco António Sabélico.
Em ambos os casos, o assunto era o Campo Damasceno, território na Terra Santa, que foi consagrado como primeiro local onde se povoou o mundo... ou seja, seria aí o Jardim do Éden.

O nome Damasceno está associado a Damasco, na Síria, mas acabou por ficar mais ligado a Hebron e ao monumento árabe que celebra o Túmulo dos Patriarcas: Adão e Eva, Abraão e Sara, Isaac e Rebeca, Jacó e Lea.

O Túmulo dos Patriarcas, em Hébron. Construção muçulmana (em 1906 e actualmente)

Portanto, a disputa sobre a aparecimento do Homem (que hoje é colocada no Vale de Rift, África), e do local do Jardim do Éden, teria entretido Citas e Egípcios em poderosas guerras... mas como dizia Camões, para certeza do local bastava visitar o Campo Damasceno.

Convém fazer um pequeno parentesis para dizer que não é muito claro o que Camões pretende dizer... há quem pretenda que os restos encontrados seriam sim de gigantes, ou seja pode ler-se nalguns textos criacionistas que Adão e Eva para além de lhe ser atribuída longevidade quase milenar, seriam ainda gigantes! Já vimos em muitos filmes que era frequente no final do Séc. XIX, princípio do Séc. XX, aparecerem registos de monstruosidades ou anormalidades, que faziam atracção em feiras (não sendo reconhecidos oficialmente, não poderiam fazer sucesso em mais nenhum lugar). Um dos casos é justamente o de um gigante petrificado encontrado na Irlanda (Revista Strand, em Dez. 1895):

Se houvesse já na altura de Camões alguma suspeita dessa dimensão gigantesca, pois faria sentido perguntar ao Campo Damasceno, onde estariam as ossadas... já que assim a resposta teria alguma evidência auto-explicativa!

Em 1817 o Frei João de Jesus Christo é sensato ao dizer:
(...) a terra he roxa, o que a palavra Adam significa. Santo Arnulfo, antiquissimo peregrino da Terra Santa, afirma, que ali vira o sepulcro de nossos proloplastas Adam, e Eva. Alguns querem, que neste vale fosse o Paraiso, onde Deos colocou Adam. Porém apesar dos belos discursos, que se tem feito sobre estes objectos, eles serão sempre ignorados; e muito mais sabendo-se, que o Diluvio mudou a face da terra. O melhor é confessar, que visto o alto silêncio da Escritura, e tradição sobre isto, nada se sabe de certo.
Não tanto, por nenhum dilúvio ou fenómeno natural, mas muito mais pela acção humana, se tal sepulcro existisse dificilmente se manteria, resistindo a toda a pressão de encobrimento e destruição.

Adam significaria "a terra é roxa", o que é especialmente curioso já que no Séc. XIX o escocês McAdam (filho de Adam) vai desenvolver estradas de macadame, que associamos a estradas de terra batida, de cor semelhante à que vemos nos courts de ténis! E de forma não relacionada, um outro MacAdam australiano do Séc. XIX irá dar nome a uma planta, talvez do Jardim do Paraíso, a que associamos a macadamia!

Não sei se o nome Damasceno deriva de Adam, por deturpação de Adamasceno... mas é de admitir essa ligação, e assim Damasco poderia ter essa referência primeva importante.
Pela parte dos gregos, era comum usar a palavra Adamas, de onde deriva Adamantino como nome para matéria quase inquebrável, dura como o diamante, ou para pessoas marcadas pela integridade. Essa matéria adamantina fez parte do elmo herculano. Para além de Hércules, Perseu matou a Medusa com um punhal adamantino, e era dessa matéria as correntes que prendiam Prometeu, ou a faca usada por Cronos para castrar o pai Urano, entre outros exemplos.

Notas: (12/6/2011)
1) O recente texto Ager Damascenus de Anthony Hilhorst (Univ. Gröningen, 2007) explora justamente a localização do Campo Damasceno, entre Jerusalém, Hébron e Damasco, seguindo a evolução na tradição milenar.
2) Camões usou a figura de Adamastor, titã quase não referenciado na mitologia greco-romana, e que poderia ter ligação etimológica a Adamantino e a Adam, conforme dito em cima.
3) Por isso, quando há um ano ligámos Adamastor a um eventual anagrama com Madrasto, estávamos obviamente concentrados num único enigma... e longe de suspeitar na altura a extensão e confusão de múltiplas ocultações. Ou seja, se hoje abandonamos essa ligação ao anagrama, ainda não abandonamos uma propositada caracterização da figura de D. João II através de Adamastor.

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